Paulo Ghiraldelli Jr*
Para Olgária Matos
Ouvi a filósofa Olgária Matos falar em “espírito do capitalismo”, lembrando Weber, mas também em “capitalismo sem espírito”, a partir
dela mesma, apontando aí para a fase atual das sociedades ocidentais.
Ela acredita que a penetração das relações de mercado em todas as
esferas de nossa vida, fazendo tudo ser guiado pela mesma lógica das
mercadorias que é a lógica da imposição do abstrato, do vazio, é
responsável por essa situação. Não sei o quanto eu acho boa, ainda, a
idéia marxista, em especial de Adorno, de responsabilizar o mercado não
apenas pelas mercadorias, mas também por formas várias de pensar e
sentir. Todavia, independentemente disso, não posso deixar de considerar
boa a expressão de Olgária Matos para a vida atual: “capitalismo sem
espírito”.
É interessante imaginar que não nos
interessa, a não ser para tarefas escolares, o “espírito do
capitalismo”, mas sim o “capitalismo sem espírito”. Parece bem útil
termos de nos ver como aqueles que não podem ficar consigo mesmos, no
cultivo de si próprios porque nos surpreenderíamos como vazios, como sem
espíritos, necessitando estar, então, o tempo todo ou escutando algo ou
vendo algo. O silêncio é ensurdecedor. A visão do que não muda e não
range e quebra é tediosa e/ou amedrontadora. A solidão deixa de ser o
pior dos males porque perde para o simples estar sozinho. Não podemos
voltar para a casa uma vez que, estando nossas casas sem livros ou sendo
os livros coisas que não aprendemos a achar interessantes, devemos
estar com alguém ou com algo. Não raro, ligamos a TV, embora não
estejamos querendo ver qualquer programa ou mesmo prestar a atenção em
alguma coisa. O problema todo é este: como me defrontar comigo mesmo se
eu não sou portador senão do vazio?
Não se trata aqui, no “capitalismo sem
espírito” apontado pela Olgária Matos, da experiência do machadiano
alferes que, para se reconhecer, precisa colocar seu velho uniforme,
como no conto “O espelho”. Não! Nesse caso, do alferes, a busca era pela
identidade esvaziada. No caso apontado pela filósofa, é a do
esvaziamento completo do bípede-sem-penas. Quero dizer algo a mim mesmo,
mas vou dizer o que se, para dizer algo a mim mesmo, estando eu
sozinho, deveria tirar esse algo de mim. Como tirar algo de mim, para
contar para mim, se eu estou vazio e nada há para tirar? Mas e tudo que
já escutei e vi, não valeria? Mas tudo que já escutei e vi já escutei e
vi. Agora, sozinho, seria a hora de refletir sobre isso. Mas sem
espírito, como iria eu refletir?
O problema todo é este: como me defrontar comigo mesmo se
eu não sou portador senão do vazio?
É aqui que entra a grande salvação do
homem e da mulher de nosso tempo: a Internet. Eis aí a salvação dos
vazios, isto é, de todo nós.
Longe de mim uma crítica à Internet.
Qualquer crítica à Internet é retrógrada e chata. Minha crítica é ao
vazio do usuário, não à Internet. Raramente acho a tecnologia alguma
coisa que deveria ser questionada. O questionamento mais interessante é
dirigido às peças que ficam à disposição das máquinas, o
bípede-sem-penas vazio diante da Internet.
Ninguém mais sabe de quanto estamos
vazios. A Internet sabe e, nela, o Facebook sabe mais ainda – ele é
doutor nisso. O que há nele? Frases no mural. A maior parte delas
reproduz algo que nos dá a impressão de um túnel do tempo. A moça que se
imagina escritora, põe lá: “cada escola aberta é uma cadeia fechada”.
Quantas vezes essa frase foi repetida, para tapar buraco do tipógrafo,
pelos jornais do início da República ou, em tempos mais recentes, por
jornais do interior? O senhor aposentado, que sempre quis falar para o
mundo, dando lições morais, também põe: “os governos desejam povos sem
educação para poder dominá-los”. Também aí encontramos uma boa
freqüentadora de jornais velhos. Não os do início da República, mas
alguns jornais estudantis, talvez dos anos sessenta ou de antes até. No
meio disso, a garota evangélica ou católica, sabe-se lá o que, bota sua
cunha com a frase: “Deus pode tudo e ele está comigo, nada temo”. Ora,
nesse caso, não se trata de se lembrar de jornal algum e nem mesmo de
pára-choque de caminhão, mas de alguma coisa que estava no adesivo do
carro do pai dela ou, pior, do sogro! Quando você imagina que tais
frases vão acabar, vem uma senhora e põe sua poesia, impossível de ser
lida para além da primeira linha, com uma foto de um gostosão e uma moça
seminua, o símbolo da frustração mais categórica que se poderia ter
ali!
Algumas dessas pessoas gastam horas e
horas colocando tais frases, mas nenhuma delas forja um pensamento
sequer produzido por elas mesmas. Nada. Nem mesmo os ateus, que agora
deram para acreditar que a Internet deverá ser um Olimpo dos não-deuses,
e que querem se parecer mais inteligentes que os crentes, são capazes
de estampar alguma coisa original em texto ou desenho. Como fariam isso,
se olham para si mesmos e se apavoram diante do vazio? Ou, melhor
dizendo, não olham para si mesmos. Desconfiam de si mesmos, que são
vazios, e temem olhar para um poço sem fundo.
O tal “capitalismo sem espírito” é
engraçado até. O bípede-sem-penas não fica sem mente ou sem alma, fica
sem espírito. Em certo sentido, ficam sem aquilo que nosso professores
do ginásio, ao menos para os da minha geração, diziam de vez em quando:
“menino espirituoso”. O que significava? Ora, significava que, mesmo se
tivéssemos sentido algum vazio, poderíamos, a qualquer momento, com uma
“tirada”, sacar algo de nós mesmos, um chiste que fosse, mas nosso! Não
há mais meninos espirituosos nem garotas espirituosas. E não falo da
juventude apenas. Falo de todos. Não há idade para ficar vazio. Todos
podem ficar vazios. Todos têm direito, em uma democracia com Internet,
ganhar o direito de serem vazios.
O vazio é de tal ordem que, quando se
torna insuportável e, enfim, frases copiadas de antanho não mais
satisfazem a mentira que somos nós mesmos, são substituídas por relatos
de nossas conversas íntimas postas no mural do Facebook. Queremos que
todos fiquem sabendo de recados que passamos de modo que todos possam
nos enganar dizendo ou pensando: “eis aí gente que com alguma vida
interior”. Mas que nada! Os relatos que contamos não dizem nada. Somos
todos iguais às mulheres americanas que no Valentine’s Day mandam flores
para si mesmas e as recebem na frente de amigas ou, no caso que agora
se generaliza, as recebem sozinhas e acreditam de fato que receberam de
outros, de pretendentes!
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*Filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/07/11/
Imagem da Internet
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