Uma disputa em torno da genética do altruísmo e da origem da bondade
por JONAH LEHRER
O morcego-vampiro surge da caverna na hora mais escura da noite, depois
que a lua se põe. Voa baixo, percorrendo toda a área, seguindo rastrosde
cheiro e usando seu sonar. Quando encontra uma vítima – ele se alimenta
da maioria dos animais de sangue quente, de passarinhos até cavalos e
vacas –, começa a perseguição. Aterrissa em silêncio a 1 ou 2 metros da
presa e, em seguida, avança em direção ao som de uma veia pulsante. Dois
dentes, mais afiados que um bisturi, cortam a carne. O sangue escorre
do ferimento; o morcego o lambe. Às vezes ele chega a consumir o
equivalente a seu próprio peso em sangue durante uma única noite.
Embora o morcego-vampiro costume ser visto como um predador sanguinário,
ele interessa aos biólogos por outra razão: é um animal profundamente
altruísta. Essa espécie vive em enormes colônias, com centenas ou
milhares de indivíduos dividindo a mesma caverna escura. Os morcegos
precisam se alimentar constantemente – eles morrem de fome se ficarem
sessenta horas sem comer –, o que os levou a desenvolver uma maneira
inusitada de compartilhar o alimento. Se um morcego não consegue
encontrar uma vítima durante a noite, ele começa a lamber debaixo das
asas e dos lábios de algum outro membro da colônia. Os dois animais
então unem as bocas e o caçador bem-sucedido começa a vomitar sangue
quente na garganta de seu companheiro. Sem essa partilha de alimento,
cientistas estimam que mais de 80% dos morcegos-vampiros adultos
morreriam de fome todos os anos.
Charles Darwin considerava o problema do altruísmo – o ato de ajudar
alguém, mesmo a um alto custo pessoal – como um desafio potencialmente
fatal para sua teoria da seleção natural. Se a vida fosse uma cruel
“luta pela existência”, como um indivíduo altruísta poderia viver o
tempo suficiente para se reproduzir? Por que a seleção natural iria
favorecer um comportamento que reduz nossas chances de sobreviver? Em A Origem do Homem,
Darwin escreveu: “Os indivíduos que preferiam se sacrificar a trair
seus companheiros – como muitos selvagens faziam – frequentemente não
deixavam descendentes que pudessem herdar sua natureza nobre.” E, no
entanto, como Darwin sabia, o altruísmo está por toda parte – uma
teimosa anomalia da natureza. Os morcegos alimentam seus companheiros
famintos; as abelhas cometem suicídio dando ferroadas para defender a
colmeia; os pássaros criam filhotes que não são seus; o ser humano pula
nos trilhos do metrô para salvar gente estranha. A onipresença desses
comportamentos sugere que a bondade não é uma estratégia derrotista para
a vida.
m
século depois de Darwin, o altruísmo continuava sendo um paradoxo.
O primeiro vislumbre de solução surgiu certa noite em um bar do bairro
londrino de Bloomsbury, nos anos 50. Diz a lenda que o biólogo J. B. S.
Haldane já havia entornado várias canecas nesse pub quando lhe
perguntaram até onde ele iria para salvar a vida de outra pessoa.
Haldane pensou um momento e começou a rabiscar números em um guardanapo.
“Pularia em um rio para salvar dois de meus irmãos, mas se fosse um só
eu não pularia”, disse Haldane. “Ou então para salvar oito primos, mas
não sete.” A resposta do cientista embriagado resumia uma poderosa ideia
científica. Como os indivíduos compartilham grande parte de seu genoma
com parentes próximos, a sobrevivência de suas características genéticas
também está atrelada à sobrevivência de seus familiares. Segundo a
aritmética moral de Haldane, fazer um sacrifício por um membro da
família é apenas mais uma maneira de promover nosso próprio DNA.
Haldane nunca detalhou seus cálculos de guardanapo em uma teoria
matemática formal. Essa tarefa coube a William Hamilton, aluno de
pós-gradua-ção da University College London. Ele batalhou durante anos
por esse projeto. Muitas vezes, ficava até tarde da noite trabalhando em
um banco da estação de Waterloo, onde a multidão chegando e partindo
abrandava sua solidão. Em 1964, apresentou dois artigos ao Journal of Theoretical Biology.
Os artigos se baseavam em uma equação muito simples: rB > C.
Ou seja, os genes do altruísmo podiam evoluir se o benefício (B) de uma
ação excedesse o custo (C) para o indivíduo, levando-se em conta o grau
de parentesco (r). A equação confirmava a verdade por trás da
brincadeira de Haldane: uma vez que o parentesco entrasse nos cálculos, o
altruísmo podia ser facilmente explicado em termos genéticos. Hamilton
chamou seu modelo de “teoria da aptidão inclusiva”, pois ampliava a
definição darwinista de “aptidão” – ou seja, quantos filhos um indivíduo
consegue ter, passando a incluir os filhos dos parentes vivos. Esse
cálculo parecia resolver o problema biológico, mas, ao fazer isso,
introduzia um problema moral: segundo a equação, o altruísmo não seria
fruto de uma bondade, e sim apenas mais uma maneira de disseminarmos
nossos genes. Em vez de fazer sexo, salvamos parentes.
No início, as ideias de Hamilton sobre aptidão inclusiva foram
totalmente ignoradas. Muitos biólogos a rejeitaram devido ao componente
matemático e poucos matemáticos se interessavam pelos problemas da
biologia. No ano seguinte, porém, um ambicioso entomologista chamado
Edward Osborne Wilson leu o artigo, durante uma viagem de trem de
dezoito horas entre Boston e Miami. “Como eu não tinha nada para fazer,
tratei de botar em dia toda a minha leitura atrasada”, disse-me Wilson
recentemente, quando fui visitá-lo em seu escritório em Harvard. “Quando
comecei a ler o artigo de Hamilton, minha primeira reação foi achar a
equação pequena demais. Pensei: não é possível que isso seja tão fácil.
Mas depois reli o artigo. E reli mais uma vez. E foi aí que fiquei com
inveja.” Wilson queria compreender como o altruísmo funcionava dentro
das colônias de formigas, e se convenceu de que Hamilton havia resolvido
o problema. Para promover a causa da aptidão inclusiva, Wilson debateu a
ideia em uma série de artigos e livros influentes, apresentando aos
biólogos a lógica surpreendente da equação de Hamilton. “Tornei-me um
divulgador dessa ideia”, diz Wilson. “E não era uma ideia fácil de
vender. Ninguém queria acreditar que uma única equação fosse capaz de
explicar o altruísmo. Ao final, as pes-soas viram que nós tínhamos
razão. Venci essa disputa de lavada.”
o
fim da década de 70, o trabalho de Hamilton já aparecia com destaque em
livros didáticos e seus artigos estavam entre os mais citados da
biologia evolutiva. A equação permitia que os naturalistas entendessem a
lógica do comportamento animal com base em modelos genéticos, o que
dava um novo rigor a esse campo. “Antes de Hamilton, havia explicações
diferentes para cada espécie”, diz Wilson. “Não havia nenhuma teoria
geral, nenhuma forma de conectar aquilo que víamos em campo com o que
estávamos aprendendo no laboratório sobre os genes e a cooperação.
Hamilton ajudou a resolver os dois problemas.” Na verdade, a teoria da
aptidão inclusiva resolvia esses problemas tão bem que logo foi aplicada
a características biológicas sem relação nenhuma com o altruísmo, como o
homossexualismo, a violência tribal ou os chamados de alarme. Em um
obituário publicado após a morte de Hamilton, em 2000, Richard Dawkins,
famoso biólogo de Oxford, chamou Hamilton de “o mais eminente darwinista
desde Darwin”.
Agora, porém, em uma abrupta reviravolta intelectual, Wilson diz que
cometeu um grave erro científico ao adotar a equação de Hamilton. “Vou
dizer sem meias palavras: a equação não funciona”, diz ele. “É uma
medida fantasma. Ela não explica tudo isso que as pessoas pensam que ela
explica, nem de longe. Na época em que li Hamilton pela primeira vez, a
aptidão inclusiva parecia explicar muitos mistérios diferentes. Agora
já sabemos mais coisas e não tenho medo de reconhecer que eu estava
errado.” A apostasia de Wilson, que desencadeou um verdadeiro furor
científico, foi explicada com mais detalhes em seu livro recém-lançado
nos Estados Unidos, The Social Conquest of Earth [A Conquista Social da Terra].
A grande maioria de seus colegas acadêmicos está convencida de que ele
estava certo antes, não agora, e que sua retratação prejudicou a área.
Houve denúncias na imprensa e cartas coletivas assinadas em publicações
de prestígio; alguns sugeriram que Wilson, que está com 83 anos, deveria
se aposentar. A polêmica é alimentada por um debate mais amplo sobre a
evolução do altruísmo. Será possível existir o altruísmo verdadeiro?
Será que a generosidade é um traço sustentável? Ou serão os seres vivos
inerentemente egoístas, criaturas que apenas usam máscaras de bondade? O
que está sendo discutido é ciência com conse-quências existenciais em
jogo.
saúva,
ou formiga-cortadeira, é a melhor cultivadora de cogumelos do mundo.
Abundante nas florestas tropicais do Novo Mundo, essas formigas de cor
vermelho-escura vivem em vastos formigueiros subterrâneos. As operárias
se organizam em sete funções, como numa linha de montagem. Algumas
formigas não fazem mais nada além de cortar folhas, coletando até 17% da
produção anual das folhas de uma floresta tropical. Outras carregam os
pedaços das folhas para o formigueiro, enquanto outras, ainda, os cortam
em pedacinhos bem pequenos. Mas as formigas não podem simplesmente
comer essas folhas, visto que contêm substâncias químicas tóxicas. Em
vez disso, precisam decompô-las em um fungo que só cresce dentro de suas
colônias. Um grupo de formigas cuida dessas plantações subterrâneas de
cogumelos, arrancando outros fungos rivais e mantendo as câmaras no
nível ideal de temperatura e umidade. É dessa forma que as
formigas-cortadeiras administram suas fazendas monocultoras há dezenas
de milhões de anos.
E. O. Wilson dedicou sua carreira às formigas. Como ele observa, esses
pequenos seres talvez sejam a mais bem-sucedida forma de vida
multicelular da história do planeta, com cerca de 14 mil espécies
conhecidas. Elas compõem aproximadamente a mesma quantidade de biomassa
que os seres humanos. Esse sucesso biológico é especialmente notável
porque depende inteiramente de sua capacidade de cooperação, de formar
sociedades complexas estruturadas em torno do trabalho duro e do
sacrifício comum. Como disse o rei Salomão nos Provérbios: “Observe a
formiga, preguiçoso! Reflita sobre os caminhos dela e seja sábio!”
á
sessenta anos Wilson estuda insetos na Universidade Harvard. Sua sala,
no Museu de Zoologia Comparada, fica num corredor escuro, cheio de
arquivos e gaveteiros metálicos. A sala é colada ao museu, o que
significa que os gritinhos das crianças que visitam o local em passeios
escolares ressoam pelo ar. “Não me incomodo com esse barulho”, diz
Wilson. “É como o gorjeio dos pássaros.” Seu cabelo grisalho é cortado
rente e, como o cabelo de um garotinho, tem muitos fios rebeldes que se
recusam a ficar no lugar. Nascido em Birmingham, no Alabama, ele teve
seu sotaque sulista suavizado por décadas de vivência nos arredores de
Boston. Hoje, os traços mais característicos de sua pronúncia são um
leve cicio e as longas pausas de um homem acostumado a ser ouvido.
As estantes do escritório abrigam, sobretudo, seus próprios livros – ele
já publicou 24, dois deles vencedores do prêmio Pulitzer –, além de
vo-lumosas obras de referência sobre insetos.
A descoberta que fez a reputação de Wilson ocorreu em 1959, quando ele
era um jovem professor em Harvard. Ele estava tentando entender de que
modo uma colônia de formigas-de-fogo, ou lava-pés, coordenava seu
funcionamento. O biólogo notou que, sempre que uma formiga encontrava
algum alimento grande demais para ser carregado, ela voltava para o
formigueiro arrastando o abdômen pelo chão. Por causa disso, Wilson
presumiu que os insetos estavam deixando uma trilha de odor. Não demorou
muito e lá estava ele dissecando dezenas de barriguinhas de formigas,
procurando a origem da substância química. Era um trabalho
enlouquecedor: como os órgãos das formigas são microscópicos, Wilson
tinha que usar agulhas de costura e pinças de relojoeiro, extraindo
cuidadosamente cada glândula das criaturas. “Eu queria roubar a
substância sinalizadora das formigas e usá-la para falar, eu mesmo, por
meio dela”, diz Wilson. Mas nada dava certo.
Wilson já estava esgotando os órgãos. Numa de suas últimas tentativas,
retirou a glândula de Dufour, uma estrutura minúscula perto do ferrão da
formiga, sobre a qual pouco se sabia. Usou então essa glândula para
traçar uma trilha. “A resposta foi explosiva”, diz Wilson – e até hoje
sua voz se acelera com a empolgação. “A colônia inteira veio correndo
atrás de mim!” Wilson, ao lado de outros pesquisadores, começou a
identificar os compostos específicos secretados pela glândula. Como cada
formiga continha menos de um milionésimo de grama de ferormônios, ele
teve que recolher dezenas de milhares de formigas, jogando colônias
inteiras em um riacho e pescando os insetos quando subiam à tona.
O trabalho de campo não era nada divertido – Wilson foi picado dezenas
de vezes –, mas lhe permitiu identificar o idioma das formigas-de-fogo,
um vocabulário de líquidos voláteis que consiste em vinte sinais de
comunicação.
A requintada lógica desse sistema o convenceu de que o comportamento
biológico poderia ser compreendido e que até algo tão complexo quanto
uma colônia de insetos poderia ser explicado em termos químicos e por
leis. “Fui convencido pelas formigas de que a biologia precisava
desenvolver uma teoria do comportamento social”, diz ele. “Uma teoria
assim era inevitável. Tinha que existir. E foi por isso que fiquei tão
animado com os artigos de Hamilton.”
Hamilton mostrou que a natureza cooperativa de muitas sociedades de
insetos poderia ser explicada por uma peculiaridade genética conhecida
como haplodiploidia. Em algumas espécies de insetos, as fêmeas são
produzidas a partir de um ovo fertilizado, enquanto os machos se
desenvolvem a partir de ovos não fertilizados. Uma das consequências
desse esquema bizarro é que os machos têm a metade dos cromossomos das
fêmeas. Eles também têm avô, mas não têm pai. Levando-se em conta a
haplodiploidia, a solidariedade extrema entre irmãs observada em
colônias como a das saúvas deixava de ser um mistério. Normalmente,
irmãos compartilham 50% dos genes, mas as formigas operárias fêmeas
compartilham três quartos – todos os genes do pai e metade dos genes da
mãe. E, um dado crucial: as formigas mantêm relações mais próximas com
suas irmãs do que com suas próprias proles. Para Hamilton, as operárias
estão dispostas a cuidar da rainha porque ela é, basicamente, uma
máquina de fabricar irmãs. Seu serviço aparentemente desinteressado é
pura ganância genética.
As formigas não são os únicos insetos que dependem das haplodiploidia.
Como notou Hamilton, a mesma lógica poderia explicar a evolução das
abelhas, vespas e vespões. Todos esses insetos apresentam uma forma
extrema de altruísmo conhecida como eussociabilidade, em que os
indivíduos vivem juntos em grandes sociedades cooperativas. Embora a
eussociabilidade seja uma adaptação relativamente rara, é incrivelmente
bem-sucedida: apenas 2% das espécies de insetos são eussociais, mas
respondem por cerca de 80% de toda a biomassa de insetos do planeta.
O fato de que a equação de Hamilton pudesse se aplicar a várias formas
de vida sugeria que se tratava de um princípio geral do comportamento
social, e que muitos dos exemplos mais importantes de cooperação
biológica não passavam de subprodutos do parentesco genético.
Wilson ficou fascinado pela hipótese da haplodiploidia e fez da aptidão inclusiva uma parte importante de seu livro Sociobiology: The New Synthesis [Sociobiologia: a Nova Síntese],
de 1975, que explorava o papel da evolução na formação do comportamento
social. No capítulo final, tentou aplicar esses mesmos princípios
biológicos aos seres humanos, se esforçando para “enxergar o homem pelas
lentes imparciais da história natural, como se fôssemos zoólogos vindos
de outro planeta”. No fim das contas, por que o Homo sapiens deveria estar isento da lógica egoísta dos genes e do parentesco? A equação era uma verdade universal.
O livro provocou bastante controvérsia. Wilson foi atacado por
cientistas eminentes, muitos deles vindos de seu próprio departamento em
Harvard. Uma carta coletiva publicada na New York Review of Books afirmava que o conceito de sociobiologia oferecia “uma justificação genética do status quo e
dos privilégios de determinados grupos, segundo critérios de classe,
raça ou sexo”. Wilson manteve a serenidade. “Eu sabia que tinha razão
quanto à parte científica”, diz ele – e agora a aplicação da teoria da
evolução aos seres humanos já não é controversa. A ideia de Wilson gerou
um volume colossal de pesquisas científicas, inspirando décadas de
investigação sobre genética comportamental, neurociência e psicologia
evolutiva. O professor mal consegue disfarçar seu orgulho: “Essa foi
outra discussão que eu ganhei”, diz ele. “Demorou alguns anos, mas eu
venci, venci de longe.”
Apesar do sucesso, enquanto fazia campanha pela sociobiologia, Wilson
começou a ficar desiludido com a estrutura científica que a tornava
possível. “Percebi que os fundamentos da aptidão inclusiva iam
desmoronando”, diz ele. “O raciocínio que tinha me convencido de que ela
era correta não se sustentava mais.” Depois de investigar a hipótese de
Hamilton sobre a haplodiploidia, os cientistas descobriram, por
exemplo, que muitas espécies de insetos mais coo-perativas, tais como os
cupins e os besouros-de-ambrosia, não eram realmente haplodiploides.
Além disso, dezenas de milhares de espécies que manifestavam
haplodiploidia nunca desenvolveram a eussociabilidade – isto é, embora
esses insetos fossem intimamente aparentados, eles não compartilhavam o
alimento nem serviam à rainha. No fim dos anos 90, a relação entre
haplodiploidia e eussociabilidade já não era estatisticamente
significativa.
“O que aconteceu é que, muito discretamente,os teóricos da aptidão
inclusiva pararam de falar sobre a haplodiploidia, embora ela fosse a
melhor evidência de que eles dispunham”, diz Wilson.No começo, ele
guardou seu ceticismo para si. Tinha pouco interesse em desmontar uma
teoria que havia convencido tantos outros a aceitar. Mas, depois de
pesquisar a literatura em detalhes enquanto escrevia um livro didático
sobre as formigas, acabou concluindo que a aptidão inclusiva era
simplesmente um conceito insustentável. “As falhas começaram a pesar na
minha consciência”, diz ele. “Olhei para aquilo tudo e fiquei bem
surpreso com a estagnação em que a área se encontrava. Eu não podia
continuar negando que talvez nosso campo de pesquisa tivesse enveredado
pelo caminho errado.” Foi nesse momento que Wilson tomou conhecimento do
trabalho de Martin Nowak, um matemático, alguém alheio a seu campo de
trabalho que havia chegado a uma conclusãosemelhante.
s machos jovens do tagarela australiano (Pomatostomus temporalis),
pequeno pássaro florestal com o bico preto e curvado, sempre espantaram
os biólogos. Em vez de agir como outros jovens, transbordantes de
sexualidade, caçando fêmeas e arrumando brigas territoriais, eles se
contentam em ficar em casa, no ninho dos pais. E, o mais estranho:
passam boa parte do tempo ajudando a criar os irmãos mais novos,
chocando os ovos e buscando alimentos para toda a família. Esse
comportamento, conhecido como criação cooperativa, faz pouco sentido em
termos darwinistas. Por que os jovens machos desperdiçariam seus anos
mais férteis presos ao ninho em vez de competir para se reproduzir? Foi
só com o surgimento da teoria da aptidão inclusiva que os biólogos
puderam explicar esse comportamento altruísta. Em 1976, em um dos
primeiros testes experimentais da hipótese de Hamilton, os pesquisadores
Jerry e Esther Brown começaram a manipular o número de ajudantes nos
ninhos desse pássaro. Quando eles retiravam os machos ajudantes, o
índice de sobrevivência dos irmãos mais jovens despencava. De fato, o
casal de pesquisadores descobriu que cada ajudante garantia a
sobrevivência de 1,6 filhote a mais – um benefício que compensava a sua
própria perda reprodutiva.
Eram histórias como essa – relatos vívidos sobre o comportamento animal,
envoltos por equações simples – que despertaram o interesse de Martin
Nowak pela biologia, enquanto cursava a Universidade de Viena, nos anos
80. Mas ele não queria ser naturalista – a observação da natureza lhe
parecia muito ineficiente. Em vez disso, Nowak queria compreender os
detalhes da vida através de modelos matemáticos subjacentes. Hoje com
46 anos, Nowak tem uma careca lustrosa e grossas sobrancelhas negras.
Fala com um sotaque austríaco tão perfeito que parece estar fazendo uma
imitação de brincadeira. Suas frases densas ganham leveza graças à
cadência de sua voz. Nowak é considerado um dos principais
biomatemáticos do mundo, com mais de quarenta artigos publicados na
revista Nature e quinze na Science. Em 2003, tornou-se
diretor do Programa de Dinâmica Evolucionista, um centro de estudos em
Harvard voltado para teóricos que trabalham com problemas biológicos.
O interesse de Nowak pela teoria da aptidão inclusiva começou no início
dos anos 90, quando fazia pós-graduação em Oxford e ouviu uma observação
casual de seu orientador, o biólogo Robert May. “Ele se referiu à
aptidão inclusiva como um culto, e não como uma ciência”, recorda Nowak.
“Achei interessante, mas na verdade não entendi o que ele quis dizer.”
Apenas em 2006, mais de dez anos depois, foi que ele começou a examinar
atentamente a equação de Hamilton. E logo ficou frustrado com sua
imprecisão. “Todo mundo falava nessa regra, mas de maneiras muito
vagas”, disse ele. “Parecia uma espécie de matemática de faz de conta.”
Na época, Nowak estava muito absorvido em outros projetos e não deu
sequência à investigação dos motivos de seu ceticismo. Mas foi então
que, em outubro de 2007, recebeu um e-mail de uma jovem matemática de
Harvard chamada Corina Tarnita, solicitando uma reunião.
arnita,
que cresceu em uma fazenda na Romênia, era um prodígio da matemática –
na graduação, ganhara todos os prêmios importantes do Departamento de
Matemática de Harvard. No meio da pós-graduação, no entanto, ela se
desencantou com sua pesquisa, que focava um ramo hermético da geometria
algébrica. “Umas cinco pessoas no mundo se interessavam pelo meu
trabalho”, diz ela. Então Tarnita disse a seu orientador que precisava
de um tempo. Imediatamente, começou a folhear os livros de matemática da
biblioteca, procurando algum assunto que pudesse lhe interessar. Foi
quando descobriu um livro didático que Nowak havia escrito sobre a
matemática da evolução. “Abri o livro e percebi que essa matemática não
era tão abstrata”, disse-me ela. “Ali estava uma matemática da vida.” Na
época em que mandou o e-mail para Nowak, Tarnita enfrentava um dilema.
Tinha acabado de receber uma oferta de emprego de um grande fundo de
investimentos, para um cargo muito bem pago como analista. Sentiu-se
tentada pelo dinheiro. “Gosto de roupas bonitas e carros velozes”, diz
ela. “Prometi a mim mesma que, se Martin não respondesse ao meu e-mail,
eu sairia de Harvard.”
Felizmente, Nowak respondeu e logo convidou Tarnita para participar de
seu grupo de trabalho. Uma de suas primeiras tarefas foi entender a
aptidão inclusiva. Ela passou um ano lendo artigos e se debruçando sobre
centenas de estudos referentes à aplicação da equação de Hamilton. “Eu
queria descobrir como ela era utilizada pelos biólogos na prática”, diz
Tarnita. “E o que eu descobri é que ninguém realmente usava a equação
para fazer cálculos porque ela não era muito útil para isso.”
Na visão de Tarnita, o problema da equação de Hamilton – e do conceito
de aptidão inclusiva de modo geral – é que ela tentava analisar cada
ação isoladamente, como um ato distinto, com seus custos e benefícios.
“Bem, esse é um objetivo admirável”, diz Tarnita. “Mas como se podem
calcular, na prática, esses custos e benefícios?” Para exemplificar o
desafio, Tarnita imagina uma situação. “Digamos que seu primo está se
afogando e você arrisca a vida para salvá-lo. É uma boa coisa, certo?
Você aumentou a sua aptidão inclusiva. Mas o que você não percebe é que o
seu primo está competindo com o seu irmão por uma mulher. Ambos amam a
mesma pessoa, mas ela escolhe o seu primo. Com isso, o seu irmão não vai
se casar, nem vai ter três filhos. Sendo assim, será que era mesmo uma
boa ideia salvar a vida do seu primo?”
O argumento de Tarnita é que o apelo da equação de Hamilton não passa de
uma fachada. Quando aplicada ao mundo real, a matemática logo se torna
extremamente complicada, pois ela tenta abranger consequências
posteriores a cada decisão. É por isso que, segundo os testes
matemáticos feitos por ela, a aptidão inclusiva só pode ser aplicada em
circunstâncias biológicas muito específicas, que quase nunca existem.
Enquanto Tarnita destrinchava os modelos matemáticos, Nowak procurava
aliados dentro da biologia. A busca logo o levou a Edward Wilson, que
tinha começado a criticar publicamente Hamilton e a aptidão inclusiva,
apontando as limitações dos dados sobre insetos e sugerindo hipóteses
alternativas. “Na nossa primeira conversa, Wilson me disse ter sempre
assumido que a base matemática da aptidão inclusiva devia ser muito
forte, porque a base biológica era bastante fraca”, recorda Nowak. “E eu
lhe disse o contrário: que sempre acreditei que a base biológica fosse
sólida, pois a base matemática era muito obscura.”
s
três cientistas começaram a se encontrar toda semana, trocando
histórias sobre insetos e sobre a teoria dos jogos. Logo se concentraram
no paradoxo que queriam explicar: já que a cooperação é uma estratégia
eussocial tão bem-sucedida – as espécies eussociais predominam sobre
suas primas egoístas –, então por que é tão rara? Por que outras
criaturas não imitam o estilo de vida altruísta das abelhas e das
formigas?
Wilson convenceu os matemáticos de que eles precisavam se aprofundar nas
especificidades dos seres vivos. “O que aprendi com o fracasso da
aptidão inclusiva é que não se pode construir uma teoria feita apenas de
ar”, diz Wilson. “Nossas teorias precisam começar com o trabalho de
campo, examinando de perto as espécies em questão.”
Essa ênfase no trabalho empírico marcou uma mudança para Wilson. “Sempre
tive a ambição de sintetizar”, disse-me ele. “Mas agora já sei o
suficiente para conhecer as limitações dessa abordagem.” Hoje em dia,
ele considera os livros que fizeram a sua fama – Sociobiology e Da Natureza Humana (1979)
– relatos incorretos da evolução, prejudicados pela adesão acrítica à
teoria da aptidão inclusiva. Ele se orgulha mais de um livro didático de
800 páginas que escreveu sobre as Pheidole, o gênero mais
abundante de formigas.Em certo ponto da nossa conversa, Wilson foi até a
estante, retirou cuidadosamente um enorme e pesado volume, e começou a
folhear as páginas e admirar as ilustrações. “Há 624 espécies neste
livro, e eu desenhei à mão uma por uma”, disse. “Levei vinte anos. Sei
que parece obsessivo, mas é esse o tempo necessário. Se você quer
explicar as formigas, precisa conhecer as formigas.”
O profundo conhecimento de Wilson sobre os insetos o levou a propor um
novo modelo para explicar a evolução do altruísmo. Sua conclusão é que o
altruísmo está enraizado nas contingências da história natural.
O motivo pelo qual a eussociabilidade é tão rara, acredita ele, é
simplesmente porque exige uma longa série de pré-adaptações – isto é,
características que já devem existir antes que outra característica
possa evoluir. A mais importante delas é a formação de um grupo coeso, o
que em geral ocorre quando as filhas não deixam o ninho. Se o grupo
persistir por um período extenso, os insetos do sexo feminino podem,
então, construir um ninho defensável. É a partir daí que as espécies
podem começar a desenvolver as adaptações genéticas que permitem
eussociabilidade, tais como a alimentação das larvas e a divisão do
trabalho. Quando isso acontece, a lógica da seleção natural assume o
comando, já que o estilo de vida intensamente altruísta dos insetos
permite que eles se reproduzam em ritmo acelerado. O ponto principal é
que o parentesco da colônia de formigas – todos esses parentes
trabalhando juntos – é uma consequência da
eussociabilidade, e não a causa. As irmãs não se dão bem porque são
irmãs. O que ocorre é que os grupos de fêmeas são os que têm mais
probabili-dade de desenvolver as pré-adaptações necessárias para a
eussociabilidade se concretizar. Elas trabalham juntas porque não podem
sair do ninho; elas se tornaram escravas da rainha.
Essa ideia era atraente, mas carecia de provas. Para testar a teoria de
Wilson, Nowak e Tarnita desenvolveram um modelo matemático. Fizeram
simulações computacionais comparando o desem-penho de rainhas eussociais
com o de rainhas solitárias e concluíram que a eussociabilidade
aumentava em oito vezes a taxa de natalidade de uma rainha e reduzia em
dez vezes sua taxa de mortalidade. Uma vantagem competitiva dessa
magnitude poderia explicar por que a eussociabilidade gera tamanho
êxito. Por outro lado, o modelo também documenta as barreiras à evolução
da eussociabilidade, já que ela normalmente exige um conjunto de
mutações incomuns e condições ecológicas muito específicas.
m 2010, Tarnita, Nowak e Wilson publicaram essas ideias na revista Nature,
em um artigo de sete páginas intitulado “A evolução da
eussociabilidade”. (A base matemática vinha em um suplemento online de
39 páginas, cheio de equações muito complicadas.) Os cientistas sabiam
que o artigo poderia ser polêmico, mas acharam que o debate se
concentraria em detalhes técnicos do modelo. Em vez disso, a publicação
desencadeou uma tempestade de críticas, muitas delas expressas em
público. (Esses debates ocorrem regularmente na biologia evolutiva,
campo que parece cair em discórdia mais ou menos a cada dez anos.) Andy
Gardner, biólogo evolucionista da Universidade de Oxford, disse ao New York Times que
era “um artigo realmente péssimo”. Jerry Coyne, biólogo da Universidade
de Chicago, escreveu em seu blog que “a única razão pela qual esse
artigo foi publicado é que dois dos autores são grandes nomes, Nowak e
Wilson, oriundos da Mãe Harvard. [...] Conclusão: se você é um biólogo
famoso, pode publicar bobagem impunemente”.
As críticas feitas em particular foram ainda mais pesadas. Robert
Trivers, eminente biólogo da Universidade Rutgers e ex-colaborador de
Wilson, escreveu um e-mail pessoal e raivoso para Nowak. A mensagem
terminava do seguinte modo: “Martin, você acha mesmo que um artigo
rápido e barato como esse vai substituir W. D. Hamilton e a teoria do
parentesco? Você acha que alguém realmente especializado nesses assuntos
vai engolir esse lixo? Você acha que vale a pena gastar seu tempo com
isso? Espero que não.”
Não demorou muito para que um grupo de biólogos elaborasse uma resposta para enviar à Nature.
A carta era assinada por 137 cientistas. Afirmava que Wilson e os dois
matemáticos não compreendiam bem a teoria da evolução e apresentavam a
literatura cientí-fica de forma equivocada. Ficaram aborrecidos, em
especial, com a afirmação de que a teoria da aptidão inclusiva teria
produzido “parcos” resultados. Os cientistas citavam uma longa lista de
ideiasque decorrem diretamente da equação de Hamilton, como, por
exemplo, a explicação do que pode levar os animais a agir de maneira
vingativa e por que algumas espécies têm uma proporção tão desigual de
indivíduos de cada sexo. “O argumento em favor da aptidão inclusiva é
esmagador”, diz Richard Dawkins. “Insistir no contrário é simplesmente
um erro.”
Tarnita e Nowak responderam na Nature e depois em seu site,
deixando claro que não estavam tentando desacreditar Hamilton nem
ignorar a importância do parentesco. Nowak, em uma edição de seu livro SuperCooperators,
expressa uma grande vontade de aprender com seus detratores, mas
sustenta que a aptidão inclusiva é um “recurso” sem utilidade,
caracterizado por uma tendência para “teorizar sem precisão”.
Mesmo assim, o debate ainda não chegou a uma conclusão satisfatória.
Os matemáticos insistem que seus críticos não entendem os fundamentos
matemáticos, enquanto os biólogos insistem que os matemáticos não
compreendem os fundamentos biológicos. Wilson reconhece que não
acompanha muito bem o raciocínio matemático dos colegas, mas diz que
conhece bem os insetos. Um dos poucos capazes de falar a linguagem de
ambos os lados é o cientista que ajudou a coordenar a carta à Nature,
David Queller, da Universidade Washington, em Saint Louis, no estado do
Missouri. Ele argumenta que, embora as páginas de equações empregadas
por Nowak e Tarnita possam ser tecnicamente corretas, elas não sustentam
as conclusões grandiosas desses cientistas. “Martin está sempre dizendo
que a aptidão inclusiva não funciona no mundo real”, disse-me Queller.
“Mas o modelo dele certamente não é melhor. O fato é que a aptidão
inclusiva já foi testada de diversas maneiras. Ela já fez previsões, e
essas previsões se revelaram corretas.”
Os matemáticos parecem se arrepender um pouco da linguagem usada no artigo da Nature.
“Se eu pudesse escrevê-lo de novo, gostaria de deixar mais claro que a
equação de Hamilton inspirou muitas pesquisas boas”, diz Tarnita. “Ele
fez as pessoas pensarem na questão do parentesco, e isso foi muito
importante.” No entanto, Tamita e Nowak continuam insistindo que a
equação de Hamilton não é a expressão exata de um fenômeno biológico.
Pelo contrário, é pouco mais do que uma regra prática geral, um truísmo
disfarçado de verdade.
Esse desentendimento científico é especialmente difícil de resolver
porque está enraizado nas perspectivas distintas dos matemáticos e dos
biólogos. Tarnita e Nowak querem que as equações sobre o altruísmo sejam
literais; quando falam so-bre a aptidão inclusiva, estão falando sobre
os detalhes matemáticos de rB > C. Esses cálculos, é claro,
são extremamente difíceis. E é por isso que eles julgam o trabalho de
Hamilton tão insatisfatório. “Sei que a equação dele é simples, e isso é
bom”, diz Tarnita. “Todo mundo gosta de equações simples. Mas ela é
simples demais. Nosso modelo é mais confuso do que o de
Hamilton, mas se podem extrair muito mais coisas dele.” Nowak é ainda
mais direto. “Se a teoria funciona, então tem que funcionar no nível
matemático”, diz ele.
Os biólogos não se importam com o fato de que a aptidão inclusiva muitas
vezes não pode ser calculada. Em vez disso, eles a consideram uma
estrutura para dar sentido ao mundo, um princípio importante que nos
ajuda a compreender o comportamento variado dos morcegos, das formigas e
de outras espécies. Em outras palavras, a equação não é realmente uma
equação. É apenas um pequeno resumo de uma grande ideia, tal como a
descrição de Darwin da seleção natural.
Wilson é o único que parece estar gostando da controvérsia. Seu apetite
pelas disputas científicas tem aumentado com a idade. Ele gosta de citar
Schopenhauer, quando disse que todas as novas ideias passam por três
fases. “Primeiro, a verdade é ridicularizada”, diz ele. “Depois é
recebida com indignação. E depois, dizem que ela é óbvia, que sempre foi
óbvia. Atualmente estamos na fase da indignação, mas logo seremos
óbvios.”
Da mesma forma, Wilson não parece preocupado com a reação de seus
colegas. “Quando Einstein publicou sua teoria da relatividade,
100 físicos escreveram um artigo que a condenava”, diz Wilson. “A
resposta de Einstein foi maravilhosa. Ele disse: ‘Se a teoria está
errada, por que não bastou um só autor?’ Eu sinto o mesmo. Quando lemos a
argumentação deles, eles nunca dizem em qual ponto nós erramos. E o
motivo é que não erramos em nada. Não quero parecer arrogante, mas acho
que esse artigo é muito importante. Ele dá uma virada no jogo.”
E assim o debate continua, com ambos os lados prometendo publicar novos
artigos provando que o outro lado está errado. O problema, naturalmente,
é que é difícil imaginar como seriam essas provas. Apesar do
impressionante conjunto de ferramentas da biologia moderna, esse ainda é
um debate sobre uma história longínqua, repleta de fatos ambíguos e
princípios básicos contestados. Enquanto isso, parece que ninguém
percebeu a ironia da situação: eles estão brigando a respeito da origem
da bondade.
á alguns anos, Wilson ficou obcecado pelo pica-pau-de-faces-brancas (Picoides borealis),
uma espécie em extinção que habita as florestas de pinheiros do sudeste
dos Estados Unidos. Tal como o tagarela australiano, essas aves
praticam a criação cooperativa: a maioria dos jovens machos passa vários
anos ajudando a criar os filhotes da família. Mas Wilson não ficou
fascinado apenas pelo altruísmo das aves. Também ficou maravilhado com
outro hábito peculiar desse pica-pau: ele perfura árvores vivas.
Enquanto a maioria dos pica-paus faz o ninho em troncos de árvores
mortas, já que a madeira podre é mais fácil de escavar, o
pica-pau-de-faces-brancas passa até três anos bicando a madeira saudável
de um pinheiro. A tarefa, no entanto, não é tão ingrata quanto parece.
Perfurar um pinheiro vivo tem vantagens adicionais. Quando o pica-pau
perfura um buraco, a resina escorre para fora, revestindo o tronco da
árvore com uma cola grudenta, impedindo que os principais predadores do
pica-pau, como as cobras, alcancem o ninho. O pássaro construiu uma
armadilha.
Embora não seja exatamente incomum que Wilson mergulhe na história
natural de uma determinada espécie, seu interesse por essa ave tem sido
excepcionalmente intenso. “Acho incrível que esses pássaros perfurem
árvores vivas”, diz ele. “E comecei a me perguntar se isso poderia ter
alguma relação com o fato de os jovens machos permanecerem no ninho dos
pais.”
Pouco tempo depois, Wilson partiu para o litoral do Golfo do México,
para ver os locais de formação de ninhos com seus próprios olhos.
Consultou especialistas em pica-paus e passou muitas horas vagando pelas
florestas de pinheiros da Flórida, que estão em extinção, procurando
troncos com pequenos furos e resina escorrendo, tentando entender qual
seria o motivo da criação cooperativa. “Foi aí que percebi que se pode
chegar a uma explicação muito melhor do que a aptidão inclusiva”, diz
ele. Segundo Wilson, a força motriz é a escassez de locais adequados
para a nidificação. As espécies que praticam a criação cooperativa,
observa ele, “sempre têm territórios muito limitados e são muito
exigentes quanto ao local onde vivem”. Isso sugere que os jovens machos
permanecem no ninho da família porque não conseguem encontrar uma árvore
adequada para si mesmos, e têm a esperança de herdar o ninho dos pais.
Assim, tomar conta dos irmãos menores é apenas uma maneira de pagar
aluguel, uma tarefa realizada em troca de abrigo. “Acho que posso
explicar o comportamento desses ajudantes sem falar em parentesco nem
aptidão inclusiva”, diz Wilson. “Essas aves estão apenas lidando com a
dificuldade de encontrar moradia.”
Nos dias em que acorda mais falante, Wilson vai além dos hábitos dos
pica-paus e começa a especular sobre forças mais amplas que atuam na
evolução do altruísmo. Ele não se contenta em arrasar com a aptidão
inclusiva – quer substituí-la por algo melhor. Como de costume, a mais
recente proposta de Wilson é motivada por sua fé no poder da observação
cuidadosa, assim como por uma espécie de empatia intuitiva com a fauna,
que parece ser produto de toda uma vida observando o mundo natural.
Embora ele goste, sem dúvida, de ter o apoio da matemática, tem-se a
sensação de que mesmo sem ela não mudaria de ideia. Nessa fase tardia de
sua carreira, Wilson está menos interessado em equações do que em
narrativas. E de fato, há alguns anos ele publicou um romance – mas um
romance sobre formigas.
atual explicação de Wilson para o altruísmo retomou uma hipótese originalmente proposta por Darwin em A Origem do Homem:
a generosidade humana pode ter evoluído como uma propriedade emergente
não do indivíduo, mas sim do grupo. “Não pode haver dúvida de que uma
tribo incluindo muitos membros [...] sempre prontos para ajudar uns aos
outros e para se sacrificar pelo bem comum seria vitoriosa sobre a
maioria das outras tribos”, escreveu Darwin. Embora os atos de altruísmo
possam custar caro para o indivíduo, Darwin argumentou que eles
ajudavam a sustentar a colônia, o que dava aos indivíduos da colônia
mais chances de sobreviver.
Essa ideia é conhecida como seleção de grupo, e é uma explicação que a
maioria dos biólogos evolutivos agora rejeita, pois as vantagens da
generosidade são muito menos tangíveis do que os benefícios do egoísmo.
(Uma tribo cheia de sujeitos bonzinhos seria presa fácil de um
trapaceiro, o qual logo propagaria seus genes pela população.) Mas
Wilson acredita que a ideia pode conter a chave para a compreensão do
altruísmo.Como argumento, ele cita estudos recentes de “cooperação”
entre micróbios, plantas e até mesmo leoas. Em todos esses estudos,
muitos deles rea-lizados em condições controladas de laboratório, os
grupos de cooperadores prosperam e se reproduzem, enquanto os grupos
egoístas definham e morrem. Em um artigo do qual foi coautor, em 2007,
Wilson resume sua nova visão em três frases lapidares: “O egoísmo vence o
altruísmo dentro de um grupo. Os grupos altruístas vencem os grupos
egoístas. Todo o resto é comentário.”
O argumento mais geral de Wilson é que, na medida em que o altruísmo
existe, ele não é uma ilusão. Em vez disso, a bondade pode ser, na
verdade, um traço adaptativo, permitindo que os grupos mais cooperativos
superem seus primos maldosos. Em um campo definido pela cruel lógica da
seleção natural, a seleção de grupo parece ser um raro vislumbre de
virtude, a única força biológica que atua contra as vantagens óbvias da
ganância e da trapaça. “Vejo a natureza humana como suspensa no
equilíbrio entre esses dois extremos”, diz Wilson. “Se o nosso
com-portamento fosse totalmente motivado pela seleção de grupo, então
nós seríamos cooperadores robóticos, como as formigas. Mas se a seleção
no nível individual fosse a única coisa importante, então seríamos
totalmente egoístas. O que nos torna humanos é que a nossa história foi
moldada por essas duas forças. Estamos presos entre elas.”
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Fonte: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-70/
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