O que têm em comum o fechamento da videolocadora da
esquina de casa, em São Paulo, e o lançamento nos EUA daquela que será a
última edição do mais popular dicionário de filmes do planeta?
Primeiro, a mesma razão: ambos modelos de negócio foram transformados em
cinzas pela internet.
Localizada em Higienópolis, a HM Home Video já fazia parte
do cotidiano do bairro quando para cá me mudei no começo dos anos 2000,
em dois movimentados endereços, de um total de quatro lojas da rede. A
matriz que eu frequentava reunia cerca de 15 mil títulos, com um perfil
diferenciado, apostando tanto nos últimos grandes lançamentos dos
estúdios hollywoodianos quanto numa coleção de clássicos do cinema,
filmes de arte, documentários e títulos nacionais. O único similar
paulistano é agora a 2001 Video.
Com suas amplas coleções de Buñuel e Kurosawa, Bergman e
Fellini, John Ford e Billy Wilder, para ficar em poucos exemplos, era
natural encontrar rotineiramente na HM Home Video com cinéfilos como o
diretor Carlos Reichenbach (1945-2012). O fechamento da segunda locadora
do bairro, há seis meses, já acendera o sinal amarelo. Um mês atrás,
uma placa de “Passa-se o Ponto” jogava a toalha.
“Mantivemos aberto muito além do limite”, confessou-me na
semana passada um dos sócios, Hermínio Paschoal Filho, em meio à
liquidação de cópias que levou compradores a esvaziar num par de dias as
estantes meticulosamente preenchidas durante 27 anos. “Foi como uma
nuvem de gafanhotos”, me disse a gerente, Magali Hamaoka.
Em 2007, o fim das atividades em lojas físicas da sucursal
brasileira da gigante americana Blockbuster, o que no final do ano
passado repetiu-se nos EUA, foi o primeiro grande símbolo do fim de uma
era. Uma nova forma de consumo impôs-se rapidamente no mercado, por meio
de operadoras de streaming digital de filmes como a Netflix e a
multiplicação dos canais de TV por assinatura e suas crescentes
plataformas digitais.
No fecho de uma bela crônica na “Folha” em 18 de agosto
passado, Leão Serva foi certeiro em destacar uma dimensão para além da
cinematográfica do fechamento da locadora: “como será a vida sem
locadoras, esse espaço público de afeto que se esvai”? Seu texto
lembrou-me um comentário com a sensibilidade habitual de Fernando
Gabeira num de seus primeiros livros após a volta ao Brasil, quando
indagava quem faria, no balanço da repressão e do exílio, o inventário
dos afetos perdidos, dos encontros, beijos e abraços para sempre
brutalmente inviabilizados.
No incessante cotidiano das metrópoles contemporâneas, com
a esfera do trabalho invadindo ininterruptamente o cotidiano privado
por meio da vida 24 horas online dos smartphones e tablets, somado ao
severo agravante no caso brasileiro da violência urbana disseminada,
videolocadoras e livrarias representam oásis de sociabilização.
Reencontros casuais e interações com desconhecidos quebram a rigidez das
agendas e dos restritos círculos de amigos, familiares e colegas de
trabalho. Com a progressiva desativação destes pontos de encontro,
impera cada vez o enclausuramento em torno do novo totem: as grandes e
pequenas telas frente às quais nos isolamos dentro de casa.
Do ponto de vista da cultura cinematográfica, sem temer
soar como um dinossauro reclamão, tampouco sou otimista frente a
aparentemente avassaladora oferta online. Creio que perdemos tanto em
diversidade quanto em qualidade.
Nem mesmo a Netflix americana, que desembarcou na França
nesta semana, apresenta um cardápio minimamente comparável a de uma
videolocadora antenada com o público mais cinéfilo. Não apenas por
razões legais, éticas e estéticas, o acervo online de cópias piratas
tampouco representa uma alternativa. Além disso, por melhor que seja sua
conexão com a internet e mais avançado seu “home theater”, tenho
dúvidas de que a curto prazo teremos por aqui uma experiência como
espectador tecnicamente próxima a hoje possível com as cópias em
blu-ray.
Deve-se também à internet a extinção do “Movie Guide”
anual do crítico americano Leonard Maltin. Aquela que será sua última
edição, com 1632 páginas e cerca de 16 mil resenhas breves, acabada de
ser lançada nos EUA (Signet, US$ 16,44). Sua primeira edição datava de
1969, quando Maltin contava apenas 18 anos. Em 1978, seu dicionário de
filmes tornou-se bienal e, em 1986, um evento editorial a cada começo de
outono americano.
“Uma geração inteira cresceu acostumada a buscar toda sua
informação em seus celulares ou computadores”, explicou Maltin em
entrevista a Pete Hammond, um dos tradicionais colaboradores do guia,
publicada sintomaticamente no site “Deadline Hollywood”. “Não são estes
os consumidores potenciais de livros físicos de referência. Nossas
vendas declinaram radicalmente nos últimos anos”.
Nada que surpreenda, com a facilidade de pesquisas online
em sites especializados como o IMDb, gerais como Wikipedia e numa
infinita blogosfera. Maltin já adiantou que não incluirá o “Movie Guide”
nesta onda, pois seu estilo de “resenhas e informações concentradas”
foram desenvolvidas para o formato livro. “A internet tem um imperativo
diferente e regras distintas”.
São mais sutis as as razões para lastimar-se o fim do
“Movie Guide”. Como espectador cotidiano e crítico profissional, eu
preferiria continuar combinando os dois modelos de pesquisa, somando a
hierarquização subjetiva do guia de papel à multiplicidade informativa
da internet. Perde-se online, por outro lado, uma vantagem colateral: a
leitura aleatória, com o correr dos olhos pela mesma página impressa,
dos verbetes para outros filmes que não aquele especificamente
pesquisado.
Uma última razão, reconheço de pronto, é eminentemente
pessoal: a bibliofilia. Sou fascinado pela fisicalidade do objeto livro,
pelo contato tátil com o papel, pelo ritual da virada de páginas. As
videolocadoras podem estar condenadas mas espero que se cumpra uma
profecia do crítico americano Harold Bloom: “Não acho que apenas a
conveniência, mas a aura que envolve o livro impresso jamais
desaparecerá”.
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* É um crítico de cinema, jornalista , curador e escritor brasileiro.
Imagem da Internet
Fonte: http://etudoverdade.com.br/br/noticia/1414-A-Cinefilia-na-Era-da-Internet
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