sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Lugar de ser feliz não é supermercado

Matheus Pichonelli*

 Supermercado

Hong Kong Supermarket, em Chinatown

As pessoas não vão ao supermercado apenas 
para fazer compras. Vão para serem acolhidas. 
Para tapear a solidão. 
E para catequizar os que 
não votam como elas 
Apressado, com a ponta do cigarro de canela em umas das mãos, ele custou a me reconhecer por trás do capuz do moletom. Queria saber que horas encostava o ônibus no terminal, e nos reconhecemos antes que eu ensaiasse uma resposta. Esperávamos o mesmo coletivo.

O menino parecia mudado, o semblante mais sério do que quando descia para a quadra do prédio vizinho para jogar bola, quase sempre descalço. Na época, não tenho certeza, não fumava. Ele andava sumido dos jogos, e só fui descobrir o motivo quando o encontrei, dias antes, em uma esteira de supermercado, onde ajuda a empacotar as compras dos clientes. Era novo para trabalhar, pensei comigo, mas parecia animado, embora cansado, ao fim do expediente. O motivo: as gorjetas.

-Hoje foi bom. Teve cliente que chegou a dar até nota de cinco.

Perguntei se estava gostando do trabalho, e ele relutou. Gostava e desgostava. Mas ia começar a gostar mais ao fim da eleição.

-Como assim?

-Não sei, parece que o pessoal fica mais idiota nessa época.

Pedi que explicasse. Ele explicou. Em pouco tempo de trabalho, ele percebera que as pessoas não iam ao supermercado apenas para fazer compras. Iam para lembrar que estavam vivas. Parte dos clientes ia ao local todos os dias, quase sempre nos mesmos horários. Um senhor chegava a gastar mais de cem reais todos os dias. E havia os que deixavam fortunas para pagar o carrinho cheio de tralhas que seriam compradas novamente em poucos dias. Parte era aposentada, mas a maioria era sozinha: zanzava pelos corredores, olhava as gôndolas, questionava os preços, dava voltas, e mais voltas, e sobretudo puxava papo. Sobre a estiagem, o futebol, a novela. E agora, época de eleição, sobre política. Meu amigo andava desolado.

-O cara começa perguntando em quem eu vou votar e eu finjo que não escuto. Depois começa a dizer que todo político é igual. Que tudo é um grande absurdo. A gente percebe de quem ele não gosta. Daí ele começa a falar alto. Começa a ficar alterado. E se você discorda dele, é capaz de apanhar.

Era isso: enquanto empacotava as sacolas dos clientes, o meu amigo emprestava os ouvidos para ouvir todo tipo de queixas sobre a “presidAnta”, a “Marina vai com as outras”, o “playboy mineiro que só vive no Rio” e outras tantas definições que nós, os que temos a sorte de não trabalhar em supermercado, só encontramos no Facebook. Ele não: era como se a esteira de supermercado fosse a esteira de memes da TV Revolta com rostos e identidades, cada um com suas meia-dúzias de meias-verdades erguidas para a catequização do mundo. A esteira do supermercado era o termômetro de um período de verdades rasas: todo mundo, de todas as classes, quisesse ou não, precisava passar por ali em algum momento da semana, para deixar não apenas seus rendimentos, mas as suas opiniões resumidas em 140 caracteres.

Naquela ponta de esteira, o rapaz ouvia sentenças do tipo "nunca se roubou tanto como hoje em dia no Brasil", "bandido bom é bandido morto", "a Justiça só vai ter jeito quando houver pena de morte", "na ditadura a escola era boa", "o filho do Lula é o dono do frigorífico", "bom mesmo é aquele um que mandou prender todo mundo", "o Aranha está querendo se promover em cima da torcida do Grêmio", "a tal da Sininho tem uns cinco cadáveres escondidos na mochila".

Não perguntei se para isso ele ganhava qualquer adicional de insalubridade, mas não era preciso. Aquele supermercado era a ágora dos que decoram as linhas dos memes de Facebook e vão treinar o discurso na boca do caixa.

O desemboque fazia sentido. Quem já ouviu falar em posicionamento de marca sabe do desafio das empresas hoje em dia para se consolidar não apenas como fornecedoras de determinados produtos, mas de valores, e se fixarem assim como uma espécie de abrigo para grupos de indivíduos cada vez mais atarefados, cada vez mais ansiosos, cada vez mais dispersos e cada vez mais carentes de acolhimento.

O acolhimento que já não existe em casa, no trabalho, na escola, no relacionamento, nas igrejas, nas vizinhanças ou mesmo na política é encontrado assim na marca favorita, seja um tablet, seja um tênis, seja um portal, seja o canal de tevê, seja um supermercado de slogan “feito pra você”. O supermercado, afinal, é lugar de gente feliz, garante a propaganda, e é por isso que, sem mais o que fazer, as pessoas desembocam aos montes entre cestas e carrinhos de ferro para simplesmente sentirem-se protegidas e compartilharem na vida real o que estão cansadas de compartilhar na rede virtual.

-Têm uns que a gente precisa chamar a atenção para avisar que já está na hora de fechar. Se não eles dormem lá e continuam falando: "isso é um absurdo, isso não pode, está tudo errado".

Pobres consumidores, pobres cidadãos, pobres eleitores. Talvez eles não se lembrem de uma velha música dos anos 90 que avisava: “lugar de ser feliz não é supermercado”. O meu amigo se lembra. Teve de aprender, muito cedo, na marra.

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*Jornalista e cientista social, escreve sobre cultura e comportamento no site de CartaCapital
Fonte: Carta Capital online, 26/09/2014

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