sábado, 27 de setembro de 2014

Entrevista; FREI BENTO DOMINGUES - Dominicano português.

Frei Bento Domingues: “No meu quarto, só tenho um espacinho para ir até à cama e ao computador”

Há quem diga que é um dos maiores teólogos do País. Desde 1992 que assina no 'Público' uma crónica incómoda sobre religião. Tem 80 anos e é frade dominicano. Foi homenageado no dia 19 de Setembro na Gulbenkian

Por Rita Garcia, com imagem e fotografia de Alexandre Azevedo e edição de Daniel Pousada

Começa a conversa com uma provocação: “Sabes o que são estas entrevistas? Missa de corpo presente.” Chama-se Basílio Domingues, mas desde 1953 que todos o conhecem por Frei Bento. Diz que foi nos dominicanos que aprendeu a ser democrata. Escondeu clandestinos, apoiou presos políticos, afrontou a PIDE e esteve fora do País. Foi amigo de Sá Carneiro e Sottomayor Cardia, mas nunca quis ser político. Diz que a sua maior obra foi a teologia com os povos de África e da América Latina e que não pode passar sem dizer o que pensa.

Nasceu em Terras do Bouro. Como era a vida da sua família?
Nasci em Travassos, lugarejo acima da Geira. Lá eram todos agricultores, os meus pais também. O meu pai sabia ler, mas teve de aprender longe.

É o mais velho dos seus irmãos?
Tinha um irmão muito mais velho que já morreu, e outro que é o frei Bernardo [também dominicano], vive no Porto. Tinha uma irmã que morreu aos 15 anos e há três irmãos mais novos: o José, um irmão adoptivo e uma irmã que teve 12 filhos.

Em miúdo admirava-se que ainda ninguém tivesse tocado o céu.
Isso são coisas das montanhas.

Esticava-se para lá chegar?
Sim, numa aldeia cada miúdo tem as suas manias. Para mim, o problema era a escola. Adorava ir, mas fazíamos 4 km para cada lado, descalços, chovesse ou fizesse sol.

Não havia sapatos?
Havia, mas até os adultos os levavam às costas para as romarias para não os gastar. Havia socos e chancas, e, na vida normal, os sapatos que Deus nos deu [os pés]. Não tínhamos fome, porque era uma agricultura de subsistência, mas não havia dinheiro para nada. A escola era importante: aprendia-se uma nova língua. A linguagem local parecia um dialecto.

Dê-me um exemplo.
Mandavam-nos ler um texto e dizia lá ‘maçã’. A gente lia ‘mação’ e levava bofetadas porque estava mal. Fomos todos à escola quando poucos miúdos faziam a 4ª classe. Havia poucos livros em casa, só o jornal.

Com quem aprendeu a rezar?
Rezávamos o terço em casa, a seguir ao caldo, à noite, a cabecear. A única que estava desperta era a minha mãe: estava a lavar a loiça.

Teve logo uma relação especial com a religião?

Foi mais tarde, depois de ouvir as pregações do padre Adriano, um brasileiro que veio falar à [festa em honra de Nossa] Senhora do Livramento [perto de Barcelos]. Antes dele, tinha contacto com duas religiões – a católica e a dos mitos locais. Tinha medo de tudo. Havia bruxas e ameaças por todo o lado. O padre Adriano não falava sob o cunho da ameaça, do pecado e dos inimigos da alma. Esteve lá nove dias. Não me lembro dos conteúdos, mas da ruptura entre uma religião opressiva e a alegria de ser cristão.

Contou ao padre Adriano que ele lhe tinha feito essa revelação?

Fui-me confessar e ele perguntou-me o que eu queria ser. Disse-lhe: “Quero ser como você.” Ele riu-se. Aos 19 anos, fui para uma escola apostólica na Aldeia Nova, perto de Fátima. O meu irmão tinha lá andado. Depois entrei nos dominicanos, uma ordem com cultura democrática desde o século XIII: todos os superiores são escolhidos. Aprendi a viver em democracia na ordem. 

A partir daí esteve onde?
Primeiro em Fátima. Depois Salamanca, Roma, Toulouse, Alemanha, voltei a Roma. Quando cheguei a Portugal, em 1962, o que me interessava era a teologia com os jovens. Estava a anunciar-se o Concílio [Vaticano II]. Tive uma experiência colossal em Génova. Veio ter comigo um senhor com os 100 mandamentos da república universal. Disse-me que tínhamos de fazer um mundo novo e que eram precisas três bombas: uma em Washington, outra em Moscovo, outra no Vaticano. A do Vaticano já lá estava, dizia. Pensei: mais um tonto. Em Florença, o grande representante da ala esquerda da democracia cristã, Giorgio La Pira, disse-me: “Vai para Roma e assiste às audiências do Papa [João XXIII]. Vais ver que é verdade.” Fui. E chorava como uma Madalena [ao ouvi-lo]. Falava como se fôssemos seus paroquianos. “Ah, és dessa cidade? Conheço lá um fulano! Leva-lhe um abraço, ouviste?” O mundo tinha mudado.

Alguma vez falou com ele?
Não. Mais tarde falei muito com João Paulo II, quando estive em Roma a fazer um ano sabático. Ele foi à Universidade de São Tomás de Aquino, onde tinha feito o doutoramento. Uma vez perguntei-lhe quando vinha a Fátima – depois ele nunca mais parava de vir.

Gostou dele?
Era uma sedução enorme, mas não gostei do Pontificado. Voltando ao João XXIII: veio o Concílio, a encíclica Pacem in Terris [que defende a Paz com base na justiça, na verdade e na liberdade] que teve grande repercussão mesmo em Portugal. Quando voltei, fui para a igreja de Cristo Rei, no Porto. Morava numa rua onde viviam pessoas que viriam a formar a Ala Liberal, entre os quais Sá Carneiro, com quem falava todos os dias e a casa de quem ia comer. As pessoas vinham a missas diferentes: os burgueses vinham mais tarde ao domingo, as empregadas eram as primeiras da manhã. Na Juventude de Cristo Rei estavam todos juntos.

Rapazes e raparigas?
Num passeio à Casa de Santa Zita [na Guarda], os rapazes e as raparigas andavam nos quartos uns dos outros a pregar partidas. Uma irmã foi bater à minha porta: “Que desgraça está para aí a acontecer. Os rapazes andam com as raparigas. Tanto sacrilégio que se cometeu aqui hoje.” Um dia eles fizeram uma exposição fantástica com o tema O Mundo Interroga o Concílio. Espelhava os problemas do mundo. A exposição abriu, e apareceu gente a visitar todos os dias. Até que se anunciou uma visita organizada e eu soube que a PIDE ia intervir. Disse-lhes: “Vós entrais por outra porta. Não abro esta hoje.” O largo estava à pinha, mas a PIDE, quando chegou, levou presos uns tipos da extrema direita que lá tinham ido para impedir a exposição. Ficaram furiosos de ter prendido os tipos errados. 

Se os seus superiores eram tão democratas porque é que o mandaram sair do Porto?
Para me proteger! Na Diocese mandava o bispo, e na sociedade mandava a PIDE. Aprendi a fazer coisas na clandestinidade. Trabalhei na fundação do Direito à Informação (jornal clandestino que dava notícias sobre a Guerra Colonial), com o Nuno Teotónio Pereira e a mulher organizei retiros com gente não religiosa que precisava de se agrupar em encontros políticos. Escondia pessoas.

Às vezes eram facções diferentes da oposição…
Nessa altura nós vivíamos na [rua] Barjona de Freitas em apartamentos. A minha grande decepção foi o 25 de Abril. Estava em Roma e ligou-me um jesuíta a avisar. Vim para o 1º de Maio, vi aquela gente toda e disse: “Isto são revolucionários a mais.” Antes era difícil encontrar quem escondesse clandestinos.

Em 1963, mandaram-no sair do País depois de uma intervenção na igreja de São João de Brito, em Lisboa. O que é que disse?
Qualquer coisa como: ‘O problema não é a conversa, é a organização e é preciso derrubar este governo.’ Na manhã seguinte o meu provincial, um canadiano fantástico, disse-me: “Tens de ir para Roma, aqui não te deixam andar.”

Havia sítios onde não podia falar.

Quando os bispos não me davam jurisdição para falar nas igrejas, ele mandava cartas a pedir ao cardeal patriarca. Ele não dava resposta e o padre Silvan dizia: “Como não respondeu, consentiu!” [Risos]

O Concílio foi uma libertação?
Foi a experiência do desejo a cumprir-se, de ver aquele debate enorme, o trabalho dos teólogos, do episcopado brasileiro, com o [D.] Hélder Câmara. Estive lá um ano e picos e vim de barco. Era mais barato e havia menos controlo nas fronteiras. Cheguei e fui ensinar Teologia dos Sacramentos e Cristologia em Fátima, no Studium Sedes Sapientiae. No Verão, fazíamos teologia para religiosas e leigas.

Devia ter um discurso muito incomum para a época...
Era uma escandaleira. Havia um pide a vigiar as aulas. Adormecia quase sempre. Uma vez, eu disse numa aula: “Inferno é capaz de haver, mas deve estar às moscas.” Uma freira virou-se: “Não pode dizer isso. Os Pastorinhos viram-no onde é agora a capelinha [das aparições].” Tentei pôr água na fervura. Mas ela não dava hipótese: zumba, zumba! Até que eu disse: “Vamos fazer uma colecta e pedimos a arqueólogos que escave

Tentava contornar as regras com humor. Uma vez foi em Fátima…
Estava a pregar num retiro e fui à livraria Verdade e Vida, do outro lado do santuário. De repente, dei-me conta de que já devia estar a recomeçar e saí a correr para atravessar. Apareceu um homem servita de Nossa Senhora de Fátima [associação de fiéis com a missão de ajudar os peregrinos] para me deitar a mão: “Não se pode correr aqui.” E eu: “Deixe-me que isto é promessa!” Se fizermos das representações da fé uma prisão, vamos prender os outros. Estive contra Ratzinger, grande teólogo, quando quis ser polícia dos teólogos. Porque não havemos de trabalhar para que Jesus Cristo seja um apetite? Tenho uma admiração louca pelo Papa Francisco e pelo texto que publicou para ajudar os padres do mundo a serem livres.

Foi chamado à PIDE por causa de um sermão a crianças, visto como um ataque à Guerra Colonial.
O pároco de Caxias pediu-me para ir lá celebrar. Nesse domingo havia um texto do profeta Isaías sobre transformar armas de guerra em instrumentos de agricultura e paz. Disse o essencial às crianças: “Vem aí o Natal, vão dar-vos pistolas. Não aceitem. Digam: quando formos grandes não queremos andar em guerras.” Pouco depois, avisam-me no Instituto Superior de Estudos Teológicos (ISET): “Eles estão ali.”

Já sabia quem eram.
Claro. Queriam que os acompanhasse à [rua] António Maria Cardoso. Disse que não podia: ainda tinha outra aula. ‘Está bem. Mas aparece lá.’ Fiz-me de parvo: “O que é que há na António Maria Cardoso? O Centro Nacional de Cultura?” Foi uma coisa desgraçada. Meteram-me numa sala, entrava um e perguntava: “Aqui é que é a guerra?” Saía e vinha outro: “Aqui é que é a guerra.” No interrogatório, percebi que não sabiam nada daquilo em que eu andava metido. Um pegou na cadeira e disse: “Parto-lhe esta cadeira na cabeça!” E eu: “Cuidado que estraga a cadeira.” Queriam que eu assinasse um documento a dizer que era contra a guerra colonial. “Não disse nada disso. Portanto, não assino.” E então propus: “Embora esse senhor escreva com tantos erros, ele escreve uma linha e eu assino, outra e eu assino.”

Escapou sem consequências?
Tive de esconder documentos clandestinos. A gente tinha medo do medo. Uma vez às 3h da manhã vinha da casa do Nuno Teotónio Pereira e senti que me estavam a seguir. Pensei: “Estou lixado.” Aninhei¬-me junto de umas pedras para esconder documentos contra a guerra, a fingir que estava a apertar os sapatos. De repente virei-me e percebi que era a minha sombra.

Foi próximo de Sá Carneiro, dos fundadores do PS, mas nunca se envolveu na política activa…

Não queria nada com o poder. Já depois do 25 de Abril, quando fui à União Soviética com um grupo de gente do PC, do MDP/CDE, do MFA, dava-me vontade de rir. Andava sempre um atrás de mim a querer que eu desse uma entrevista sobre a liberdade religiosa. Disse que não podia falar, não conhecia. Quando cheguei cá, o DN tinha publicado uma entrevista [falsa] durante dois dias comigo a dizer que a União Soviética era o país com maior liberdade religiosa. Estava o Saramago na direcção. Exigi que eles dissessem que era pura invenção. Tinha lido os textos marxistas e comunistas, nunca viveria num regime desses! Queria alternativas. Com Sá Carneiro discuti imenso, mas quando fez o partido não quis ser mais um padre padrinho de um partido… Havia também pressões do PS para eu pertencer – era muito amigo do Sottomayor Cardia.

A relação com Sá Carneiro esfriou?
Percebi que as coisas já não tinham remédio. O Chico era teimoso.

A morte dele foi um choque?
Foi mais do que um choque. Quando fui expulso do Porto, ele foi-me buscar a Fátima para ir passar férias com ele à casa que ele alugava na Granja. No Porto, eu era conhecido como a rebeldia total. Foi sempre muito fixe comigo. Dava-me dinheiro escondido para a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Tinha as suas convicções, mas era capaz dos gestos mais generosos.

Como é que reagiu à morte dele?
Não reajo à morte. Acho uma coisa absurda. Meu Deus!, só dei mesmo conta da morte da minha mãe um ano depois e celebrei o enterro dela com o meu irmão. Um dia entrei em casa, o meu pai estava à lareira e perguntei: ‘Onde é que está a mãe?’ E ele: ‘Mas tu estás maluco?’ [Quando morreu Sá Carneiro,] Pensei: ‘Que parvalheira! Então a campanha não analisa o avião?’

Quando todas estas questões políticas amainaram, foi para África e para a América Latina.
Ia todos os anos a Moçambique durante três meses: queria fazer uma teologia africana a partir das comunidades. Percebi que falavam sempre a contar histórias e propus-lhes que escrevessem em histórias locais aquilo que percebiam do Evangelho. Publicámos isso nos Cadernos de Estudos Africanos. Depois fui para Angola ensinar teologia dos sacramentos no Seminário de Luanda.

Daí foi para o México.
Fui fazer uma conferência por causa da minha experiência em África e dar aulas no Verão. Estive no Chile, no Brasil e, de seguida, em Bogotá, na Colômbia. No fim do encontro entre o [presidente Andrés] Pastrana e Tirofijo [do secretariado nacional das Forças Armadas e Revolucionárias da Colômbia], percebe-se que as FARC vendiam droga por todo o lado. Disse aos alunos que aquilo tinha de acabar. Não podia falar em público porque senão era raptado. Em Medellín ainda me encostaram à parede. Tinham rebentado lá umas bombas e andavam a revistar as pessoas. Levei no avião um guarda-costas sem saber.

Ainda esteve no Peru.
Cheguei um dia depois de rebenta rem umas bombas ao pé do Palácio do Governador. E fui para a Argentina dar um curso às Dominicanas naquela noite em que houve três governos e o dinheiro saiu da Argentina [durante o crash económico de 2001]. Participei no Cacerolazo [protesto] em Buenos Aires. 

No regresso a Portugal, fez uma Teologia não institucional.
É feita de fragmentos. É preciso entender a teologia do homem em viagem.

Cumpre escrupulosamente o voto de pobreza.
A pobreza não me custa nada. As coisas que temos são farrapos que nos oferecem. São Domingos permitiu foi que as pessoas levassem os livros pessoais quando mudam de Convento. Quero mandar os meus para a biblioteca comum. No meu quarto só tenho um bocadinho livre para ir para a cama e outro para o computador.

É verdade que quando morre alguém fica com a roupa que a família lhe oferece?
Estes sapatos eram de um morto (aponta). Já se descolaram, Arranjei-os com cola-tudo. Não me faz
impressão.

Também não tem carta.
Andei sempre à espera que as estradas fossem rolantes. Quando todos tiraram a carta, foram unânimes: se não tens amor à tua vida, tem à dos outros. Sou distraído.

Sei que é um bom garfo.
Gostava das coisas que me proíbem. De todos os queijos. Se tenho, tudo bem. Senão, não me faz diferença. Só vou comer fora porque me convidam e são os outros que pagam.

Há pessoas que lhe pedem que as acompanhe nos últimos momentos da vida. Porquê?
Manias. Pensam que tenho jeito para celebrar missa de corpo presente e deixar um ambiente de esperança.

Tem esperança de que este Papa torne “Jesus um apetite”?
Já fez isso. Não impõe nada, mas compreende as pessoas. A única coisa de que gostamos é de ser amados. Quem acredita em Deus, sabe que está no coração d’Ele e ninguém o arranca de lá. É isso que os cristãos têm de testemunhar.
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Site de Portugal: http://www.sabado.pt - Artigo publicado na edição nº542, de 18 de Setembro de 2014.


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