sábado, 6 de setembro de 2014

DESIGUALDADE

Pedro Marta Santos*

"Capital in the Twenty-First Century", de Thomas Piketty
"Capital in the Twenty-First Century", de Thomas Piketty

 Para este economista, o capitalismo é um excepcional produtor de riqueza, de inovação e de bem-estar. Mas a forma como reparte a riqueza é, a longo prazo e à escala planetária, demasiado desequilibrada. Mais perigoso ainda: é anti-democrática.

Como leitura de Verão, contrariando a ubíqua prosa esparramada nos areais de José Rodrigues dos Santos, Ken Follett ou Robert Harris, resolvi torrar ao som mental das palavras e estatísticas do mais significativo livro de economia da última década (as palavras são de Paul Krugman e Joseph Stiglitz, esses belicosos arautos da extrema-esquerda): "Capital in the Twenty-First Century" (2014, Belknap Press), em versão "paperback", um bocadinho mais estival do que a capa dura.

São 696 páginas, ora entediantes, ora luminosas, sobre o tema nuclear do século a que o título se refere - a desigualdade. A tese é sequiosamente simples: nos países "desenvolvidos", a taxa de acumulação de capital (não apenas de bens) por um reduzido grupo de cidadãos é, nos últimos 250 anos, muito superior à taxa de crescimento económico das respectivas nações.

Para este economista, não é a igualdade de oportunidades que é intrínseca ao capitalismo. É a desigualdade. O capitalismo, como sistema de produção e distribuição de riqueza, ocupa-se cada vez menos da produção de bens e serviços e distribui cada vez pior.

Ora, a noção de "justa desigualdade" é essencial ao capitalismo. Mas, ao longo de mais de 300 das quase 700 páginas, Piketty é assertivo a demonstrar que essa desigualdade na distribuição da riqueza, sobretudo nas últimas quatro décadas, está tão estonteantemente longe - para além de qualquer juízo ideológico - de ser justa como um viajante no Kalahari está de uma Coca-Cola gelada. O economista analisa a história económica de 20 países ao longo de 220 anos, concluindo que:

- a taxa de rendimento do capital torna-se, em média, sistematicamente superior à taxa de crescimento da produção; este mecanismo é apresentado como tendo uma força lenta mas inexorável, semelhante ao evolucionismo darwiniano (tudo considerado, o rendimento do capital num país cresce muito mais do que o rendimento total desse país)

- o capitalismo é, na sua essência, um sistema patrimonial; a longo prazo, acaba sempre por impulsionar a acumulação de património numa percentagem minúscula de famílias, gerando, mais do que uma sociedade justa e competitiva, uma sociedade de herdeiros. Acima de um modelo que favorece o empreendedorismo na procura de rendimentos e da criação de riqueza, o capitalismo protege e estimula a acumulação de capital.

Segundo os dados, desde o início dos anos 80, as duas realidades têm vindo a agudizar-se.

Esta noção estatística, empírica e factual (o livro é, em considerável percentagem, um livro de história da economia) contraria a ilusão da essência meritocrática do capitalismo, bem como da mobilidade e da ascensão social associadas ao liberalismo económico. Além do capitalismo financeiro, Piketty fala assim da cristalização do capitalismo de cariz patrimonial, onde um pequeno grupo de cidadãos controla o grosso da riqueza - mas, exceptuando casos pontuais das sociedades de caçadores-recolectores do Paleolítico Superior, prévias ao desenvolvimento do comércio intertribal, alguma vez o modelo concentracionário e oligarca não terá sido o prevalecente? (em numerosos quadros estatísticos e análises de dados, Piketty demonstra que na actual Europa e, também em parte, nos EUA, estamos a regressar aos níveis de riqueza herdada do século XIX).

O problema do modelo - e não apenas a vantagem, sobretudo para numerosas faixas de habitantes do hemisfério sul - é que ele é, agora, global.

Tomando apenas o "case-study" da segunda metade do século XX, a partir de uma breve fase subsequente à II Guerra Mundial, o capitalismo no mundo ocidental favoreceu sempre a desigualdade. Se a globalização, no seu imanente mecanismo de correcções e desequilíbrios, tem permitido o aumento de rendimentos da generalidade das populações dos países em vias de desenvolvimento, e do chamado "Terceiro Mundo", caso a parametrização económico-financeira dos fluxos económicos globais se mantenha, o mesmo movimento acabará por ocorrer nesses países, acentuando as respectivas desigualdades nacionais e regionais na distribuição da riqueza. Resultado: o presente modelo económico-financeiro provoca cada vez maiores desigualdades sociais, não apenas entre países e regiões mas, sobretudo, entre os cidadãos de cada país.

Alternativas estruturantes que substituam o actual modelo hiper-capitalista (a expressão não é minha, é moeda corrente, do "Economist" à " The Chronicle of Higher Education")? Nenhumas. Piketty não é Deus, nem sequer o maior génio financeiro da história da humanidade. Mas há caminhos apontados como obrigatórios.

O primeiro é o agravamento da progressividade dos impostos sobre os rendimentos mais elevados (para Piketty, um rico ganha um milhão de euros anuais, não 18 mil euros como na actual tabela portuguesa), que abra caminho a um conjunto de mecanismo fiscais redistributivos.

O segundo é a criação de uma taxa global sobre o património e as heranças. Se é difícil aplicá-la à escala de um país - como demonstram os casos dos EUA ou da França -, imaginam-se os obstáculos à escala planetária. Mas é um caminho prometedor e, sobretudo, tendencialmente equitativo. Como Piketty prova com os seus modelos de análise de dados, a acumulação de riqueza numa faixa residual de contribuintes tem aumentado de forma contínua, e não mostra quaisquer indícios de autorregulação, induzida ou em coiniciativa.

Sabe-se de onde vem Piketty: francês, parisiense, o mais importante economista gaulês da sua geração (tem apenas 43 anos), colunista do "Libération" e do "Le Monde", esteve ao lado de Michel Rocard em 2002 e apoiou Ségolène Royal em 2006 e François Hollande em 2012, três bluffs do tamanho da ambição pseudorreformista do PS local (registe-se que foi ele que depressa os abandonou, desiludido). Mas o seu estudo é sério, exaustivo - sobretudo para um leigo, admito -, fundamentado nas premissas históricas e, por vezes, contundente, tendo provocando respeito e admiração na América, Europa e Ásia.

De acordo com o autor, o topo da distribuição de riqueza na economia mundial (não apenas no Ocidente) tem subido 6 a 7% ao ano - três vezes mais rápido do que o ritmo de crescimento da economia mundial. E ninguém sabe - nem ele - quando este ritmo paralelo abrandará.

De acordo com o autor, se a desigualdade intrínseca ao capitalismo global de livre mercado não é combatida, aumentará para níveis que ameaçam os sistemas democráticos e se tornam incapazes de sustentar o crescimento económico (a tese contraria a convergência da teoria económica clássica, onde se defende que a desigualdade acabará, eventualmente, por diminuir).

De acordo com o autor, a desigualdade de bens, rendimentos e riqueza entre os mais pobres e os mais ricos não tem parado de aumentar em todo o mundo ocidental nos últimos 70 anos. Se a acumulação de capital é, pelo menos desde a Revolução Industrial, útil para o crescimento da economia e para a melhoria dos salários, o seu efeito no crescimento das nações tem diminuído de forma quase sempre constante, num quadro cada vez menos associado ao sistema produtivo e cada vez mais dependente da especulação financeira.

Com Piketty, o "taxar os ricos", ganga marxista sem significado quando utilizada contra a realidade e sem contraponto histórico ( e a ninguém é preciso recordar os efeitos a longo prazo do marxismo), ganha caução científica. Deixa de ser vingança social, ou perseguição ideológica, para se tornar uma necessidade intrínseca ao sistema como um todo.

O economista lança particulares críticas ao paradoxo dos estados europeus com problemas graves de dívidas soberanas, os mesmo estados europeus onde existem "os patrimónios privados mais elevados do mundo". Em vez de taxarem a sério estes patrimónios (sobretudo os 1% do topo, bastante diferentes, desde logo, dos restantes 9% mais elevados), prefere-se pedir mais dinheiro emprestado à banca estrangeira e aplicar a inefável austeridade, "a pior solução de todas, em termos de justiça e de eficácia".

Perpetuando o modelo dos últimos 45 anos, estamos agora, no mundo ocidental e na análise de Piketty, perto dos níveis de desigualdade da Belle Époque. Como o modelo está em processo de solidificação a Oriente, após a prosperidade inicial, será a vez das "economias emergentes". Em França, por exemplo, entre 1871 e 1914, 90% da riqueza total era riqueza herdada. Em 1970, era de 40%. Hoje, após a "idade doirada da desregulação", regressou aos 75%. Em poucos anos, se nada for feito, regressará aos 90%.

Para este economista, o capitalismo é um excepcional produtor de riqueza, de inovação e de bem-estar. Mas a forma como reparte a riqueza é, a longo prazo e à escala planetária, demasiado desequilibrada. Mais perigoso ainda: é anti-democrática.

Leiam o livro, antes que chova. Cai sempre bem com esse triunfo capitalista que é uma imperial na praia.
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* Escritor.
Fonte:http://www.escreveretriste.com/2014/09/desigualdade/

Um comentário:

  1. Infelizmente mas gostaria de ler mais e entender mais do capitalismo, mas uma duvida enorme permeia meu raciocinio, ei-la: ................se foi nós humanos que inventamos a sociedade, e essa mesma sociedade é feita de um estado que tem suas funções e por sua vez executa as suas tarefas, muito que bem que estamos em meio caminho andado quando o estado realiza a contento as suas atribuiçoes. Mas o que dizer da elite ou a burguesia que tem na sociedade as suas funções de produzir os bens em conjunto com o capital/banco e força trabaho/trabalhador, mas gostaria de perguntar por que a renda é sofrivelmente distribuida no Brasil por essa elite/burguesia

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