Roberto DaMatta*
No fundo, todo radical quer o retorno da imobilidade aristocrática, escondida nas nomenclaturas
Sou fascinado pelo “período
eleitoral”. Mudar é complicado em qualquer lugar, mas é um drama nas
sociedades que combinaram escravidão africana com uma aristocracia
branca eurocentrada e católica no campo da política e dos hábitos
sociais. No Brasil, a hierarquia das boas maneiras impediu o civismo e
derivou num esquerdismo salvacionista, curiosamente cristão.
Esse cenário talvez explique a ideia de que a política é o lugar do vale-tudo — exceto perder ou “cair”. Como se o poder fosse uma montanha onde sobem os eleitos, quando o que precisamos é de um estado a serviço da sociedade. É poder demandar mais responsabilidade e transparência do que arrogância e a familiar má-fé, cuja santidade não conhece erros.
Como instituir uma sociedade igualitária tendo como ponto de partida o legado desumano de uma escravidão abençoada? Dessa matriz vem a confusão entre o ator-candidato e o cargo público. A confusão entre pessoa e papel é o mecanismo fundamental tanto da dominação patrimonialista-familística (a lei é relativa aos amigos) quando da carismática (X ou Y é santo e talhado para o cargo), dificultando a dominação burocrática (a regra da lei para todos) porque, sem regras fixas, as instituições não funcionam e estados-nacionais não conseguem prover educação, saúde e segurança aos seus cidadãos.
Não é apenas uma questão de programa, mas de como administrar. De como passar de “governo” (que pode esbanjar e roubar) a gerenciamento público (que tem o dever de ser eficiente). Mas sem honrar as demandas éticas dos cargos públicos que não pertencem nem ao ator nem ao seu partido, jamais iremos controlar os aparelhamentos e as impunidades com as quais estamos entalados.
O jogo entre pessoas e papéis é a base da eleição como o ritual político mais importante nas democracias liberais e competitivas — esses sistemas abertos até mesmo a candidatos cuja proposta é liquidá-los. No fundo, todo radical quer o retorno da imobilidade aristocrática, escondida nas nomenclaturas. Esse é o paradoxo político do radicalismo moderno. Ele inventou a liberdade individual que empreende, mas rejeita a sua criatividade sem controle. E odeia discipliná-la por meio de consenso.
Prefere a velha imobilidade social do nascer e morrer no mesmo segmento social. Essa norma tradicional que a eleição transforma por meio do voto, o qual cola candidatos a cargos públicos. A eleição “legitima” e “oficializa” os candidatos, mas isso é feito no ritual do voto. O humilde voto que ajusta a realidade limitada e transitória do ator às responsabilidades ideais e permanentes do papel.
Quando os eleitos tornam-se donos de cargos públicos, acontece o apadrinhamento, a negação do mérito e a corrupção — essas perversões da democracia. O papel canibalizado pelo ator ou pelo partido leva ao fim das instituições e das normas burocráticas que deveriam ser — como viu Weber com exagero prussiano — autônomas e invariantes, mas que podem mudar por consenso democrático.
Uma instância trágica da apropriação do papel pela pessoa foi o caso do nacional-socialismo alemão. No Brasil, isso se exprime no ditado popular “Quem foi rei nunca perde a majestade!” e tem ocorrido no chamado lulopetismo. O termo traduz um improvável casamento teórico de carisma e personalismo com burocratismo impessoal e ideologia. Mas, como as sociedades não estudam sociologia, a conjunção funcionou e, hoje, ela parece retornar com grande apelo. Afinal, como disse Albert Hirschman, a nossa América Latina tem um enorme e descuidado amor pelas experiências políticas.
Termino essa análise estrutural da conjuntura, com um lembrete sobre o momento eleitoral. Marina Silva representa a proposta de juntar carisma com ideologia na base de acertos pessoais afiançados por uma tragédia ao lado de uma biografia impecável. Seu programa financeiro é muito próximo ao de Aécio Neves. A diferença é que Aécio não tem a aura de santidade e carrega os compromissos institucionais do PSDB: a obrigação de governar administrando. Não se pode esquecer que foi essa atitude que deu ao Brasil o respeito e a estabilidade monetária. Estabilidade que, no plano do cidadão comum, permitiu enxergar o futuro, distinguir limites e compreender o quanto o governo rouba e desperdiça.
No seu lado direito, Aécio Neves tem a figura da presidente. Nela há um poderoso enraizamento ideológico atrelado, contudo, a uma figura sem uma gota sequer de carisma ou até mesmo de simpatia. Ademais, o Brasil de Dilma, a gerentona inventada por Lula, mostra que suas fórmulas trazem anticrescimento e um fisiologismo estrutural cujo resultado é uma série de escândalos. Voto no Aécio. Mas estou convencido que ele tem que relativizar a crítica programática para entrar no terreno de uma entrega mais clara ao eleitor. A receita soluciona, o servir exige a ênfase na administração pública com e para o público. A ser realizada com rotineira serenidade e sem o risco das acrobacias carismáticas.
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*Roberto DaMatta é antropólogo
Fonte: Jornal o Globo online, 03/09/2014
Esse cenário talvez explique a ideia de que a política é o lugar do vale-tudo — exceto perder ou “cair”. Como se o poder fosse uma montanha onde sobem os eleitos, quando o que precisamos é de um estado a serviço da sociedade. É poder demandar mais responsabilidade e transparência do que arrogância e a familiar má-fé, cuja santidade não conhece erros.
Como instituir uma sociedade igualitária tendo como ponto de partida o legado desumano de uma escravidão abençoada? Dessa matriz vem a confusão entre o ator-candidato e o cargo público. A confusão entre pessoa e papel é o mecanismo fundamental tanto da dominação patrimonialista-familística (a lei é relativa aos amigos) quando da carismática (X ou Y é santo e talhado para o cargo), dificultando a dominação burocrática (a regra da lei para todos) porque, sem regras fixas, as instituições não funcionam e estados-nacionais não conseguem prover educação, saúde e segurança aos seus cidadãos.
Não é apenas uma questão de programa, mas de como administrar. De como passar de “governo” (que pode esbanjar e roubar) a gerenciamento público (que tem o dever de ser eficiente). Mas sem honrar as demandas éticas dos cargos públicos que não pertencem nem ao ator nem ao seu partido, jamais iremos controlar os aparelhamentos e as impunidades com as quais estamos entalados.
O jogo entre pessoas e papéis é a base da eleição como o ritual político mais importante nas democracias liberais e competitivas — esses sistemas abertos até mesmo a candidatos cuja proposta é liquidá-los. No fundo, todo radical quer o retorno da imobilidade aristocrática, escondida nas nomenclaturas. Esse é o paradoxo político do radicalismo moderno. Ele inventou a liberdade individual que empreende, mas rejeita a sua criatividade sem controle. E odeia discipliná-la por meio de consenso.
Prefere a velha imobilidade social do nascer e morrer no mesmo segmento social. Essa norma tradicional que a eleição transforma por meio do voto, o qual cola candidatos a cargos públicos. A eleição “legitima” e “oficializa” os candidatos, mas isso é feito no ritual do voto. O humilde voto que ajusta a realidade limitada e transitória do ator às responsabilidades ideais e permanentes do papel.
Quando os eleitos tornam-se donos de cargos públicos, acontece o apadrinhamento, a negação do mérito e a corrupção — essas perversões da democracia. O papel canibalizado pelo ator ou pelo partido leva ao fim das instituições e das normas burocráticas que deveriam ser — como viu Weber com exagero prussiano — autônomas e invariantes, mas que podem mudar por consenso democrático.
Uma instância trágica da apropriação do papel pela pessoa foi o caso do nacional-socialismo alemão. No Brasil, isso se exprime no ditado popular “Quem foi rei nunca perde a majestade!” e tem ocorrido no chamado lulopetismo. O termo traduz um improvável casamento teórico de carisma e personalismo com burocratismo impessoal e ideologia. Mas, como as sociedades não estudam sociologia, a conjunção funcionou e, hoje, ela parece retornar com grande apelo. Afinal, como disse Albert Hirschman, a nossa América Latina tem um enorme e descuidado amor pelas experiências políticas.
Termino essa análise estrutural da conjuntura, com um lembrete sobre o momento eleitoral. Marina Silva representa a proposta de juntar carisma com ideologia na base de acertos pessoais afiançados por uma tragédia ao lado de uma biografia impecável. Seu programa financeiro é muito próximo ao de Aécio Neves. A diferença é que Aécio não tem a aura de santidade e carrega os compromissos institucionais do PSDB: a obrigação de governar administrando. Não se pode esquecer que foi essa atitude que deu ao Brasil o respeito e a estabilidade monetária. Estabilidade que, no plano do cidadão comum, permitiu enxergar o futuro, distinguir limites e compreender o quanto o governo rouba e desperdiça.
No seu lado direito, Aécio Neves tem a figura da presidente. Nela há um poderoso enraizamento ideológico atrelado, contudo, a uma figura sem uma gota sequer de carisma ou até mesmo de simpatia. Ademais, o Brasil de Dilma, a gerentona inventada por Lula, mostra que suas fórmulas trazem anticrescimento e um fisiologismo estrutural cujo resultado é uma série de escândalos. Voto no Aécio. Mas estou convencido que ele tem que relativizar a crítica programática para entrar no terreno de uma entrega mais clara ao eleitor. A receita soluciona, o servir exige a ênfase na administração pública com e para o público. A ser realizada com rotineira serenidade e sem o risco das acrobacias carismáticas.
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*Roberto DaMatta é antropólogo
Fonte: Jornal o Globo online, 03/09/2014
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