As contradições que envolveram a divulgação do programa de governo da
candidata à Presidência da República Marina Silva (PSB) nesta semana
não polemizaram somente no campo eleitoral. Também repercutiram entre
artistas e intelectuais com histórico de apoio à política acreana.
Depois que a ex-senadora decidiu mudar propostas sobre casamento gay e
aborto por causa da pressão de líderes evangélicos, o escritor Milton
Hatoum ficou "muito preocupado". Eleitor da ex-senadora no primeiro
turno de 2010 e propenso a votar nela este ano, ele "desmarinou". Já o
diretor de cinema Fernando Meirelles, entusiasta das ideias de Marina,
classificou o episódio de "vacilo", mas continua firme no apoio à
candidata do PSB. (Leia as entrevistas de Milton Hatoum e Fernando Meirelles)
Considerado um dos mais importantes escritores brasileiros da
atualidade, autor de obras como "Dois irmãos" e "Cinzas do Norte",
Hatoum, de 62 anos, não consegue identificar a "nova política" no
discurso de Marina. Para ele, a senadora é muito suscetível à influência
de pastores fundamentalistas e tem dificuldade para separar religião e
política.
"Ela é a mais marcada nessa questão da religião que seus adversários
porque tudo tem uma conexão com o plano divino. Deus não sai de seu
discurso. Eu acho isso estranho. Que os pastores digam isso, tudo bem,
mas para um candidato de um Estado laico eu acho que ela está
contaminada demais", opina Hatoum.
Já para Meirelles, de 58 anos, há hipocrisia por parte de PT e PSDB
ao envolver Marina em polêmicas religiosas. "Tanto a Dilma quanto o
Aécio, que não creem, usam o nome de Deus em suas falas. Dilma foi falsa
como uma nota de dois dólares na Assembleia de Deus. Já a Marina, que
crê de fato, paradoxalmente é a única que não usa Deus em seu discurso,
mas é a única criticada por isso", argumenta o diretor de "Cidade de
Deus".
Sobre as mudanças no programa de governo de Marina, Meirelles
reconhece o erro. "Foi uma tremenda comida de bolas eles terem publicado
a versão errada e depois voltado atrás, um vacilo. Mas o programa toca
em tantos pontos importantes que é uma pena que essa questão, também
importante, se torne o fiel da balança", avalia Meirelles. Em 2010 ele
ajudou a formar a equipe de TV de Marina e foi "palpiteiro" na campanha.
Com participação menos intensa ao lado da ex-senadora neste ano, ele
acredita que sua candidata está melhor preparada que há quatro anos e
com "grandes chances" de vitória. "É tão difícil pegar a Marina no pulo
que quando aparece a troca de 'casamento' por 'união estável' num
documento, a turma aproveita e sai gritando."
Confira a seguir a conversa com o escritor Milton Hatoum:
Valor: Você iria votar em Marina e desistiu. O que houve?
Milton Hatoum: Votei nela no primeiro turno em 2010.
Este ano estava propenso a votar no candidato Eduardo Campos, isso sim.
Acho que ele era um político de centro-esquerda com ideias para o
Brasil, com liderança, não estava contaminado nem um pouco por um
discurso messiânico, religioso.
Valor: A questão religiosa gerou seu desencanto com Marina?
Hatoum: Achei até consistente o programa de governo
da Marina, embora muito vago em alguns aspectos, mas quando eu li as
alterações todas, feitas às pressas, vi que ela tinha se tornado refém
dos partidos religiosos fundamentalistas.
Valor: Foi aí que "desmarinou"?
Hatoum: Em três dias vimos que a política pode mudar
como as nuvens. A mudança do texto original por pressão de líderes
religiosos foi lamentável. Mas também teve a adesão de velhas raposas da
política brasileira à onda Marina nos últimos dias: José Agripino Maia,
fisiológicos do PMDB. Quando ela diz que vai governar com os melhores
isso não significa nada.
Valor: Você fala das possíveis alianças de Marina, mas era Eduardo Campos o responsável por elas.
Hatoum: Marina deu espaço demais [a esses líderes
evangélicos]. Ela se inspira em versículos bíblicos aleatórios para
tomar decisões. Isso é assustador, um retrocesso geral. Ele [Campos]
fazia costuras, mas não aceitava o PMDB, que já está se aproximando da
Marina, assim como outros políticos de caráter mais duvidoso. Acho que
ele teria mais força de fazer um filtro.
Valor: O PSDB se enfraqueceu.
Hatoum: Perdeu toda a força que tinha no começo, o
candidato Aécio Neves está perplexo, abatido com essa virada. Me parece
que a disputa está definida [Dilma e Marina], não as eleições.
Valor: O PSDB fala que até 15 de setembro retomará o segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto.
Hatoum: Acho difícil. O PT tem um eleitorado muito
cativo, quem vota no PT não vota em mais ninguém. Muita gente que vai
votar na Marina não quer mais polarização [PT-PSDB] e tem muita gente
que não pensa a política de forma reflexiva. Depois do acidente surgiu
um elemento de quase devoção pela Marina. O PSDB não vira.
Valor: Essa devoção combina com a ideia de nova política?
Hatoum: Isso é chocante. Corremos o risco de essa
devoção, esse personalismo ser substituído por um espécie de
messianismo. Política não pode ser um ato consumado do plano divino, não
pode ser inspirada pela Bíblia ou qualquer outro texto sagrado, porque o
Estado laico se atrofia.
Valor: De novo a religião...
Hatoum: Repare na linguagem desse pastor [Silas
Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo]: disse que
Aécio e Dilma não são malucos de defender temas como o casamento gay,
se eles fizerem isso o sarrafo vai comer. É a linguagem do preconceito,
da violência. É como chutar a imagem de uma santa católica, incendiar um
templo de candomblé no Rio de Janeiro. Ele falou que o governo
representará a maioria cristã da sociedade brasileira. Um absurdo! E os
judeus, budistas, católicos, os mais de 20 milhões de agnósticos e ateus
não estarão representados?
Valor: Não votar em Marina por ela ser evangélica é preconceito?
Hatoum: A questão é que a política não pode ser um ato consumado pelo poder divino.
"Velhas raposas aderiram à onda Marina; quando ela diz
que vai governar com os melhores
isso não significa nada"
Valor: Mas Marina é mais marcada pela religião do que seus adversários, não acha?
Hatoum: Ela é a mais marcada porque tudo tem uma
conexão com o plano divino. Deus não sai de seu discurso. Eu acho isso
estranho. Que os pastores digam isso, tudo bem, mas para um candidato de
um Estado laico eu acho que ela está contaminada demais. Mais um dado
importante: alguns membros da cúpula da direção do PSB já saíram, o
secretário-geral, gente da executiva, o coordenador da área LGBT. Se ele
se surpreendeu com a correção do programa de governo, o que dizer de um
eleitor que acreditou por 24 horas naquilo. Não fiquei nem com o pé
atrás. Pra mim foi a gota d'água.
Valor: Já considera o Aécio fora da disputa, e a presidente Dilma?
Hatoum: Ela está tentando reagir, o que atrapalha é o
discurso pronto, ensaiado. Ela tinha que ser mais ela. Quando o mesmo
José Agripino a interpelou sobre a ditadura há alguns anos, ela foi
contundente e ele virou um boneco, porque não se brinca com a tortura.
Se ela recuperar aquilo que ela é profundamente, e não aquilo que o
marqueteiro quer que ela seja, pode ser positivo. Ela já reagiu com a
criminalização da homofobia.
Valor: Mas as pesquisas agora apontam vitória da Marina.
Hatoum: O PT errou muito, não fez autocrítica, por
isso é difícil votar hoje no PT e muita gente corre para uma nova opção,
como se fosse algo diferente. Mas não é e não será: Marina será
chantageada pelo PMDB, pelos religiosos, pelo PR, assim como foi com
Dilma, FHC. Mas vai ter muita disputa ainda. Não podemos esquecer que o
único partido com militância real ainda é o PT, isso pode fazer
diferença. Nenhum partido brasileiro tem a militância do PT. Não é o
Rede que é sustentável, é a militância.
Valor: Se não vai votar em Marina, qual será sua opção?
Hatoum: Estou sem candidato. Tem o Eduardo Jorge
[PV], o PSOL, não me importo em votar em partidos pequenos. Vários
amigos estavam com Marina e muitos desistiram depois do episódio do
plano de governo.
Leia os principais trechos da entrevista com Fernando Meirelles:
Valor: Você apoiou a Marina em 2010 e está com ela agora também.
Fernando Meirelles: Sim, com mais convicção. Nestes
quatro anos, a Marina não parou de se reunir com pessoas de todas as
áreas para compreender mais profundamente o país e se preparar para uma
possível eleição. Os estudos que dão sustentação às ideias da Marina
estão disponíveis no site do Instituto Democracia e Sustentabilidade
[IDS].
Valor: O que o motivou a optar por ela nessas duas ocasiões?
Meirelles: A plataforma que mira desenvolvimento
sustentável. Leio bastante sobre aquecimento global, crise da água,
segurança alimentar, matrizes energéticas, esgotamento dos biomas
naturais e dos recursos do planeta. Nada me tira mais o sono do que
perceber que estamos numa rota de colisão e ver que a turma continua
querendo acelerar e crescer. Marina tem visão de estadista, pensa no
país que ficará para os nossos netos. Isso que faz toda a diferença.
Valor: Teve/tem participação efetiva nas campanhas de Marina?
Meirelles: Em 2010 queriam que eu fizesse o programa
[de TV], mas eu não quis transformar minha vontade de participar em um
trabalho, então ajudei a montar uma equipe de produção e dei uma de
palpiteiro sem compromisso. Na campanha atual, como seria feita pelo
pessoal do Eduardo, não me envolvi. Mas só participaria mesmo como
voluntário.
Valor: As eleições deste ano serão diferentes do pleito de 2010?
Meirelles: Já estão e as chances de Marina vencer
são grandes. Em 2010, Dilma era a continuação dos anos dourados que o
Brasil viveu graças à China no mercado de commodities. A festa acabou e
está cada vez mais claro que investir só em consumo deu errado.
Pesquisas mostram que ninguém aguenta mais o velho pensamento político
do confronto e da oposição.
Valor: Marina também está diferente de lá para cá? Vê evolução?
Meirelles: Como ela gosta de filosofia e psicologia,
costumava ser muito analítica, conceituava cada ideia tornando seu
discurso acadêmico e mais difícil. Agora está mais sintética e
assertiva. Os quatro anos estudando o Brasil e conversando com gente de
Norte a Sul deram-lhe estofo e segurança.
Valor: O que achou da decisão de Marina de se aliar ao PSB?
Meirelles: Calou quem dizia que ela era
intransigente e sem cintura para o jogo político. Que outro político no
Brasil com um cacife de 20 milhões de votos toparia ser vice numa chapa,
só para poder ver algumas ideias que acredita contempladas no programa
de governo? O negócio dela é o seu programa e não o poder.
Valor: Gostou do programa de governo de Marina?
Meirelles: Gostei. Pena que ninguém leia o programa.
Ele propõe uma grande mudança para o país. São três eixos principais: o
primeiro será manter as conquistas dos outros governos, tentando
aprimorá-las, sem se importar se quem as inventou pode estar na
oposição. Não se desperdiça boas ideias só por não serem de autoria do
partido. O segundo é democratizar a democracia, que significa criar
instrumentos, incluindo redes sociais, para que as decisões do governo
reflitam de fato a vontade dos brasileiros. O terceiro é criar as bases
para um desenvolvimento ambientalmente sustentável para podermos ter um
país justo, com cidadãos livre e criativos. Diria que o capítulo sobre
educação é o que mais me animou. A Marina quer recuperar a qualidade do
ensino das escolas públicas, com ciência e cultura como pilares.
"Ela conceituava cada ideia com discurso acadêmico
e mais difícil, agora está mais
sintética e assertiva"
Valor: O que achou das mudanças anunciadas momentos depois?
Meirelles: Foi uma tremenda comida de bolas eles
terem publicado a versão errada e depois voltado atrás. O fato de ter
recuado foi um vacilo. Mas o programa toca em tantos pontos importantes
que é uma pena que essa questão, também importante, esteja se tornando o
fiel da balança. É tão difícil pegar a Marina no pulo que quando
aparece um aluguel de avião ou a troca de "casamento" por "união
estável" num documento, a turma aproveita e sai gritando. Faz parte,
eles erraram e vão ter que absorver o tranco. Engolir o choro e seguir.
Valor: Marina é mais visada que os outros candidatos na abordagem de certos temas polêmicos, como direitos civis, religião, aborto?
Meirelles: Me parece que sim. Nem PSDB e nem PT
criminalizaram a homofobia em seus governos e nem lançaram cartilhas com
noções de tolerância em escolas, mas a Marina é quem paga o pato com o
eleitor. Tanto a Dilma quanto o Aécio, que não creem, usam o nome de
Deus em suas falas. Há duas semanas, na Assembleia de Deus, a Dilma
começou seu discurso citando o salmo de Davi. Foi falsa como uma nota de
dois dólares. Já a Marina, que crê de fato, paradoxalmente é a única
que não usa Deus em seu discurso, mas é a única criticada por isso.
Valor: Como interpreta essa "nova política" que Marina tanto fala?
Meirelles: Parece ser o seu tema central, mas no
programa a reforma política que ela propõe é só um instrumento para
chegar ao que realmente interessa, que é a construção de um país afinado
com os valores e a cultura do milênio em que estamos e não mais com a
visão desenvolvimentista do século XX. Ela sabe que governar não é mais
abrir estradas nem construir ferrovias. Claro que ferrovias precisam ser
construídas e serão, mas um presidente precisa ter visão de país e de
futuro, e é isso que ela tem de sobra e é isso que encanta quem a escuta
com atenção.
---------------Reportagem Por Luciano Máximo | De São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 05/09/2014
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