sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A polêmica que divide artistas e intelectuais

 

As contradições que envolveram a divulgação do programa de governo da candidata à Presidência da República Marina Silva (PSB) nesta semana não polemizaram somente no campo eleitoral. Também repercutiram entre artistas e intelectuais com histórico de apoio à política acreana.
Depois que a ex-senadora decidiu mudar propostas sobre casamento gay e aborto por causa da pressão de líderes evangélicos, o escritor Milton Hatoum ficou "muito preocupado". Eleitor da ex-senadora no primeiro turno de 2010 e propenso a votar nela este ano, ele "desmarinou". Já o diretor de cinema Fernando Meirelles, entusiasta das ideias de Marina, classificou o episódio de "vacilo", mas continua firme no apoio à candidata do PSB. (Leia as entrevistas de Milton Hatoum e Fernando Meirelles)

Considerado um dos mais importantes escritores brasileiros da atualidade, autor de obras como "Dois irmãos" e "Cinzas do Norte", Hatoum, de 62 anos, não consegue identificar a "nova política" no discurso de Marina. Para ele, a senadora é muito suscetível à influência de pastores fundamentalistas e tem dificuldade para separar religião e política.

"Ela é a mais marcada nessa questão da religião que seus adversários porque tudo tem uma conexão com o plano divino. Deus não sai de seu discurso. Eu acho isso estranho. Que os pastores digam isso, tudo bem, mas para um candidato de um Estado laico eu acho que ela está contaminada demais", opina Hatoum.

Já para Meirelles, de 58 anos, há hipocrisia por parte de PT e PSDB ao envolver Marina em polêmicas religiosas. "Tanto a Dilma quanto o Aécio, que não creem, usam o nome de Deus em suas falas. Dilma foi falsa como uma nota de dois dólares na Assembleia de Deus. Já a Marina, que crê de fato, paradoxalmente é a única que não usa Deus em seu discurso, mas é a única criticada por isso", argumenta o diretor de "Cidade de Deus".

Sobre as mudanças no programa de governo de Marina, Meirelles reconhece o erro. "Foi uma tremenda comida de bolas eles terem publicado a versão errada e depois voltado atrás, um vacilo. Mas o programa toca em tantos pontos importantes que é uma pena que essa questão, também importante, se torne o fiel da balança", avalia Meirelles. Em 2010 ele ajudou a formar a equipe de TV de Marina e foi "palpiteiro" na campanha.

Com participação menos intensa ao lado da ex-senadora neste ano, ele acredita que sua candidata está melhor preparada que há quatro anos e com "grandes chances" de vitória. "É tão difícil pegar a Marina no pulo que quando aparece a troca de 'casamento' por 'união estável' num documento, a turma aproveita e sai gritando."

Confira a seguir a conversa com o escritor Milton Hatoum:

Valor: Você iria votar em Marina e desistiu. O que houve?
Milton Hatoum: Votei nela no primeiro turno em 2010. Este ano estava propenso a votar no candidato Eduardo Campos, isso sim. Acho que ele era um político de centro-esquerda com ideias para o Brasil, com liderança, não estava contaminado nem um pouco por um discurso messiânico, religioso.

Valor: A questão religiosa gerou seu desencanto com Marina?
Hatoum: Achei até consistente o programa de governo da Marina, embora muito vago em alguns aspectos, mas quando eu li as alterações todas, feitas às pressas, vi que ela tinha se tornado refém dos partidos religiosos fundamentalistas.

Valor: Foi aí que "desmarinou"?
Hatoum: Em três dias vimos que a política pode mudar como as nuvens. A mudança do texto original por pressão de líderes religiosos foi lamentável. Mas também teve a adesão de velhas raposas da política brasileira à onda Marina nos últimos dias: José Agripino Maia, fisiológicos do PMDB. Quando ela diz que vai governar com os melhores isso não significa nada.

Valor: Você fala das possíveis alianças de Marina, mas era Eduardo Campos o responsável por elas.
Hatoum: Marina deu espaço demais [a esses líderes evangélicos]. Ela se inspira em versículos bíblicos aleatórios para tomar decisões. Isso é assustador, um retrocesso geral. Ele [Campos] fazia costuras, mas não aceitava o PMDB, que já está se aproximando da Marina, assim como outros políticos de caráter mais duvidoso. Acho que ele teria mais força de fazer um filtro.

Valor: O PSDB se enfraqueceu.
Hatoum: Perdeu toda a força que tinha no começo, o candidato Aécio Neves está perplexo, abatido com essa virada. Me parece que a disputa está definida [Dilma e Marina], não as eleições.

Valor: O PSDB fala que até 15 de setembro retomará o segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto.
Hatoum: Acho difícil. O PT tem um eleitorado muito cativo, quem vota no PT não vota em mais ninguém. Muita gente que vai votar na Marina não quer mais polarização [PT-PSDB] e tem muita gente que não pensa a política de forma reflexiva. Depois do acidente surgiu um elemento de quase devoção pela Marina. O PSDB não vira.

Valor: Essa devoção combina com a ideia de nova política?
Hatoum: Isso é chocante. Corremos o risco de essa devoção, esse personalismo ser substituído por um espécie de messianismo. Política não pode ser um ato consumado do plano divino, não pode ser inspirada pela Bíblia ou qualquer outro texto sagrado, porque o Estado laico se atrofia.

Valor: De novo a religião...
Hatoum: Repare na linguagem desse pastor [Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo]: disse que Aécio e Dilma não são malucos de defender temas como o casamento gay, se eles fizerem isso o sarrafo vai comer. É a linguagem do preconceito, da violência. É como chutar a imagem de uma santa católica, incendiar um templo de candomblé no Rio de Janeiro. Ele falou que o governo representará a maioria cristã da sociedade brasileira. Um absurdo! E os judeus, budistas, católicos, os mais de 20 milhões de agnósticos e ateus não estarão representados?

Valor: Não votar em Marina por ela ser evangélica é preconceito?
Hatoum: A questão é que a política não pode ser um ato consumado pelo poder divino.

"Velhas raposas aderiram à onda Marina; quando ela diz 
que vai governar com os melhores
isso não significa nada"

Valor: Mas Marina é mais marcada pela religião do que seus adversários, não acha?
Hatoum: Ela é a mais marcada porque tudo tem uma conexão com o plano divino. Deus não sai de seu discurso. Eu acho isso estranho. Que os pastores digam isso, tudo bem, mas para um candidato de um Estado laico eu acho que ela está contaminada demais. Mais um dado importante: alguns membros da cúpula da direção do PSB já saíram, o secretário-geral, gente da executiva, o coordenador da área LGBT. Se ele se surpreendeu com a correção do programa de governo, o que dizer de um eleitor que acreditou por 24 horas naquilo. Não fiquei nem com o pé atrás. Pra mim foi a gota d'água.

Valor: Já considera o Aécio fora da disputa, e a presidente Dilma?
Hatoum: Ela está tentando reagir, o que atrapalha é o discurso pronto, ensaiado. Ela tinha que ser mais ela. Quando o mesmo José Agripino a interpelou sobre a ditadura há alguns anos, ela foi contundente e ele virou um boneco, porque não se brinca com a tortura. Se ela recuperar aquilo que ela é profundamente, e não aquilo que o marqueteiro quer que ela seja, pode ser positivo. Ela já reagiu com a criminalização da homofobia.

Valor: Mas as pesquisas agora apontam vitória da Marina.
Hatoum: O PT errou muito, não fez autocrítica, por isso é difícil votar hoje no PT e muita gente corre para uma nova opção, como se fosse algo diferente. Mas não é e não será: Marina será chantageada pelo PMDB, pelos religiosos, pelo PR, assim como foi com Dilma, FHC. Mas vai ter muita disputa ainda. Não podemos esquecer que o único partido com militância real ainda é o PT, isso pode fazer diferença. Nenhum partido brasileiro tem a militância do PT. Não é o Rede que é sustentável, é a militância.

Valor: Se não vai votar em Marina, qual será sua opção?
Hatoum: Estou sem candidato. Tem o Eduardo Jorge [PV], o PSOL, não me importo em votar em partidos pequenos. Vários amigos estavam com Marina e muitos desistiram depois do episódio do plano de governo.

Leia os principais trechos da entrevista com Fernando Meirelles:

Valor: Você apoiou a Marina em 2010 e está com ela agora também.
Fernando Meirelles: Sim, com mais convicção. Nestes quatro anos, a Marina não parou de se reunir com pessoas de todas as áreas para compreender mais profundamente o país e se preparar para uma possível eleição. Os estudos que dão sustentação às ideias da Marina estão disponíveis no site do Instituto Democracia e Sustentabilidade [IDS].

Valor: O que o motivou a optar por ela nessas duas ocasiões?
Meirelles: A plataforma que mira desenvolvimento sustentável. Leio bastante sobre aquecimento global, crise da água, segurança alimentar, matrizes energéticas, esgotamento dos biomas naturais e dos recursos do planeta. Nada me tira mais o sono do que perceber que estamos numa rota de colisão e ver que a turma continua querendo acelerar e crescer. Marina tem visão de estadista, pensa no país que ficará para os nossos netos. Isso que faz toda a diferença.

Valor: Teve/tem participação efetiva nas campanhas de Marina?
Meirelles: Em 2010 queriam que eu fizesse o programa [de TV], mas eu não quis transformar minha vontade de participar em um trabalho, então ajudei a montar uma equipe de produção e dei uma de palpiteiro sem compromisso. Na campanha atual, como seria feita pelo pessoal do Eduardo, não me envolvi. Mas só participaria mesmo como voluntário.

Valor: As eleições deste ano serão diferentes do pleito de 2010?
Meirelles: Já estão e as chances de Marina vencer são grandes. Em 2010, Dilma era a continuação dos anos dourados que o Brasil viveu graças à China no mercado de commodities. A festa acabou e está cada vez mais claro que investir só em consumo deu errado. Pesquisas mostram que ninguém aguenta mais o velho pensamento político do confronto e da oposição.

Valor: Marina também está diferente de lá para cá? Vê evolução?
Meirelles: Como ela gosta de filosofia e psicologia, costumava ser muito analítica, conceituava cada ideia tornando seu discurso acadêmico e mais difícil. Agora está mais sintética e assertiva. Os quatro anos estudando o Brasil e conversando com gente de Norte a Sul deram-lhe estofo e segurança.

Valor: O que achou da decisão de Marina de se aliar ao PSB?
Meirelles: Calou quem dizia que ela era intransigente e sem cintura para o jogo político. Que outro político no Brasil com um cacife de 20 milhões de votos toparia ser vice numa chapa, só para poder ver algumas ideias que acredita contempladas no programa de governo? O negócio dela é o seu programa e não o poder.

Valor: Gostou do programa de governo de Marina?
Meirelles: Gostei. Pena que ninguém leia o programa. Ele propõe uma grande mudança para o país. São três eixos principais: o primeiro será manter as conquistas dos outros governos, tentando aprimorá-las, sem se importar se quem as inventou pode estar na oposição. Não se desperdiça boas ideias só por não serem de autoria do partido. O segundo é democratizar a democracia, que significa criar instrumentos, incluindo redes sociais, para que as decisões do governo reflitam de fato a vontade dos brasileiros. O terceiro é criar as bases para um desenvolvimento ambientalmente sustentável para podermos ter um país justo, com cidadãos livre e criativos. Diria que o capítulo sobre educação é o que mais me animou. A Marina quer recuperar a qualidade do ensino das escolas públicas, com ciência e cultura como pilares.

"Ela conceituava cada ideia com discurso acadêmico 
e mais difícil, agora está mais 
sintética e assertiva"

Valor: O que achou das mudanças anunciadas momentos depois?
Meirelles: Foi uma tremenda comida de bolas eles terem publicado a versão errada e depois voltado atrás. O fato de ter recuado foi um vacilo. Mas o programa toca em tantos pontos importantes que é uma pena que essa questão, também importante, esteja se tornando o fiel da balança. É tão difícil pegar a Marina no pulo que quando aparece um aluguel de avião ou a troca de "casamento" por "união estável" num documento, a turma aproveita e sai gritando. Faz parte, eles erraram e vão ter que absorver o tranco. Engolir o choro e seguir.

Valor: Marina é mais visada que os outros candidatos na abordagem de certos temas polêmicos, como direitos civis, religião, aborto?
Meirelles: Me parece que sim. Nem PSDB e nem PT criminalizaram a homofobia em seus governos e nem lançaram cartilhas com noções de tolerância em escolas, mas a Marina é quem paga o pato com o eleitor. Tanto a Dilma quanto o Aécio, que não creem, usam o nome de Deus em suas falas. Há duas semanas, na Assembleia de Deus, a Dilma começou seu discurso citando o salmo de Davi. Foi falsa como uma nota de dois dólares. Já a Marina, que crê de fato, paradoxalmente é a única que não usa Deus em seu discurso, mas é a única criticada por isso.

Valor: Como interpreta essa "nova política" que Marina tanto fala?
Meirelles: Parece ser o seu tema central, mas no programa a reforma política que ela propõe é só um instrumento para chegar ao que realmente interessa, que é a construção de um país afinado com os valores e a cultura do milênio em que estamos e não mais com a visão desenvolvimentista do século XX. Ela sabe que governar não é mais abrir estradas nem construir ferrovias. Claro que ferrovias precisam ser construídas e serão, mas um presidente precisa ter visão de país e de futuro, e é isso que ela tem de sobra e é isso que encanta quem a escuta com atenção.
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Reportagem Por Luciano Máximo | De São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 05/09/2014

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