Pondé conseguiu emplacar a filosofia nas listas de best-sellers nacionais
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Rodrigo Cancela
/ Divulgação
Em entrevista, Pondé fala de seu novo livro e opina sobre temas como eleições e a relação entre fé e política
São raros os pensadores que conseguem conciliar uma carreira
universitária brilhante com uma presença intensa na imprensa e no debate
público. Luiz Felipe Pondé, 55 anos, é um deles. Dono de um currículo que conta com doutorado na Universidade de Paris e pós-doutorado na Universidade de Tel-Aviv,
o pernambucano mantém uma coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo
desde 2008, na qual analisa a partir da filosofia temas como
comportamento, religião e política. Identificado com o pensamento
conservador, suas opiniões sobre feminismo, causas sociais e outras
questões despertam paixões – e ódios. A verve polêmica também tem feito
sucesso editorial: Pondé conseguiu emplacar a filosofia nas listas de
best-sellers nacionais – juntos, seus livros já venderam mais de 200 mil
exemplares. Agora, o autor de Guia Politicamente Incorreto da Filosofia lança A Era do Ressentimento,
em que aponta sintomas de individualismo excessivo na civilização
contemporânea.
Nesta entrevista, Pondé fala do novo livro e opina sobre temas como eleições e a relação entre fé e política.
Seu novo livro se desenvolve em torno da ideia do ressentimento na contemporaneidade. Explique esse conceito.
Ele nasce do conceito de ressentimento de Nietzsche, que descreve o ser humano como um ser que tem consciência do seu abandono cósmico e se sente mal com isso. Assim, os humanos criam a metafísica e as religiões como formas de negação de uma vida carente de significado em nome de uma outra vida – esta última eterna, sobrenatural, seja lá o que for, mas com significado. Nietzsche aponta que isso "hipoteca" a vida real em nome de uma vida que não existe, o que tornaria as pessoas fracas, medrosas e com o seu "eros" adoecido. Tempero o conceito de Nietzsche com a leitura do psiquiatra inglês Theodore Dalrymple, que fala do ressentimento como característica da sociedade inglesa viciada no estado de bem-estar social. Minha intenção é entender em que medida o ressentimento teria sobrevivido à morte de Deus apregoada pelo próprio Nietzsche – coisa que ele já suspeitava que iria ocorrer.
E onde o ressentimento se mantém vivo?
O ressentimento se alojou em demandas de garantias, de "não me ofendam", no narcisismo, na espiritualidade ressentida. No livro, passeio com esse ponto de vista pelo que chamo de "agenda do contemporâneo".
Um dos alvos nesse passeio são grupos que buscam a melhoria da sociedade, como ciclistas, que trocam o carro pela bicicleta acreditando que isso torna a cidade melhor. Sua crítica não desestimula a luta por avanços no cotidiano?
Uso a expressão "playboy light" para falar de ciclistas. Suspeito que essas pequenas formas de causas que as pessoas assumem como "eu sou ciclista, portanto salvo o mundo" produzem uma autoimagem de que você é uma pessoa moralmente superior – isso é fato porque conheço várias pessoas assim. Minha questão não está relacionada ao hábito de andar de bicicleta em si, mas sim a uma espécie de afetação da classe média alta, que acha que, por andar de bicicleta em um bairro seguro ou por trabalhar perto de onde mora, está mudando o mundo. Na realidade, ela é apenas uma privilegiada que mora perto do trabalho, não precisa levar filhos na escola, fazer supermercado e outras mil coisas e, portanto, pode andar de bicicleta. E está tudo bem que faça isso, mas não está mudando o mundo: está apenas usufruindo de um luxo.
Quais são os riscos desse sentimento de superioridade moral?
Isso é indesejável porque é uma forma de hipocrisia e cria grupos intocáveis na sociedade. Se você critica grupos como os ciclistas, praticamente se torna um inimigo público. Tenho amigos que faziam parte desses grupos e os deixaram porque ficaram impressionados com sua agressividade – a gente sabe que muitos ciclistas fecham ruas, são agressivos, andam na contramão... Em São Paulo, o ciclista é como um deus, encarna uma espécie de comportamento santo que vai salvar o mundo. Mas isso é criar uma espécie de mundo que não existe: em que todos trabalhariam perto de casa e ninguém precisaria levar ninguém para a escola. Amsterdã não é o mundo. Amsterdã existe graças à Ásia e à África. E não estou criticando o capitalismo com isso. Aliás, estou sim. A cultura dos mimados é fruto do capitalismo. Minha birra com a esquerda é justamente porque ela atrapalha quando tentamos pensar os problemas da sociedade contemporânea, criando mitos.
Ou seja, a esquerda geraria a dificuldade de entender as contradições capitalistas e superá-las na medida do possível por crer numa imagem idealizada de mundo?
Sim. A esquerda é filha da filosofia de Hegel: só poderia ser idealista. Isso é algo que os marxistas tentam negar, quase como negassem o próprio pai, da mesma forma que Marx negava seus pais judeus. É um problema quase psicanalítico. O marxismo é pura metafísica: a ideia de que a história tem algum sentido, que o espírito é produzido pelas relações econômicas, o que cria uma espécie de matemática que leva a um espírito puro, produtivo, livre, não alienado. É uma mistura de Hegel com Rousseau.
Os ateus também são alvo de suas críticas. Você é religioso?
Permaneço filosoficamente ateu, não sou religioso, mas sempre digo que a ideia de Deus é uma ideia elegante, acho interessante a possibilidade de existir um ser como esse, acho que o universo ficaria mais interessante, no sentido de ter alguma inteligência com algum tipo de projeto. Então, quando reafirmo a elegância da ideia de Deus, quando vejo alguns comportamentos absolutamente generosos e tenho a impressão de que são milagres, estou fazendo uma crítica ao ateísmo militante. Acho que todo ateu deveria ser blasé. Isso de se achar mais inteligente por ser ateu me parece o problema de quem tem 14 anos e fica brigando com o pai. Brinco que virei ateu com oito anos, pois o ateísmo é filosoficamente muito óbvio. A gente parece mesmo abandonado, não encontramos sentido nas coisas, vamos atribuindo significados sem saber direito como. Acho a tradição teológica admirável, e a Bíblia, um livro muito sábio, com discussões muito ricas sobre natureza humana. Já cheguei a afirmar que Deus é o maior personagem da literatura ocidental.
No livro, você compara a fertilidade entre mulheres seculares e religiosas, demonstrando que aquelas com fé têm mais filhos. Esse avanço numérico ameaça o secularismo?
No final do ano passado, comecei a ler alguns dados estatísticos da Universidade de Cambridge que comparavam a fertilidade de mulheres religiosas para valer, que costumamos chamar de fundamentalistas, e de mulheres seculares. Os dados são gritantes nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Europa Ocidental e em Israel. Até 2100, alguns desses países podem ter metade da população religiosa de adesão estrita, simplesmente porque as famílias seculares têm poucos filhos ou nenhum. As mulheres seculares têm muitas outras pautas além de ser mãe. E muitos desses homens também não querem ter filhos. Fiquei muito impressionado porque os seculares, e eu me incluo nesse grupo, achamos que estamos muito seguros em nosso mundo. Nós acreditamos em Darwin, mas quem pratica o darwinismo para valer são os religiosos. Os seculares têm muitas ideias, mas os religiosos têm mais bebês.
Esse avanço pode ter consequências políticas?
Já está tendo. O Partido Republicano foi engolido por fundamentalistas cristãos nos EUA. Na Escandinávia, o crescimento de grupos religiosos fundamentalistas é gigantesco. No Brasil, não é bem assim porque a religiosidade brasileira é vadia, ela acende uma vela para Deus, outra para o diabo, e assim por diante. O Brasil não leva a sério quase nada, inclusive coisas que, quando levadas a sério podem gerar problemas, como a religião. Os evangélicos norte-americanos têm uma visão mais estrita, resta saber até que ponto continuarão assim aqui.
Mas, no Brasil, os adeptos da igrejas neopentecostais também podem estar se encaminhando para uma maioria, o que também já tem consequências políticas.
Sim. Um dos testes foi aquela briga entre Marco Feliciano e o lobby gay, que é um lobby bastante forte dentro e fora do Brasil, mas não conseguiu derrubar o político conservador. E os evangélicos continuam fazendo parte da base governista, sendo muito importantes em termos numéricos. Uma das consequências será o endurecimento do país em relação a comportamentos considerados moralmente liberais, como aborto, casamento gay e coisas assim – nesse ponto, evangélicos e católicos se dão as mãos. Pelo menos até agora, os evangélicos brasileiros não se reuniram numa base única. O curioso é que o oportunismo da classe política brasileira pode, por enquanto, "salvar" o Brasil de um domínio evangélico, no sentido de que eles não lancem partidos pautados por uma ideia de moral cristã, preferindo fazer parte de base governista fisiológica.
Recentemente, Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, inaugurou o gigantesco Templo de Salomão, em uma área com 28 mil m², em São Paulo. Como você vê essa relação entre fé e ostentação?
O neopentecostalismo no Brasil tem uma teologia da prosperidade bastante conhecida, que interpreta ganhos materiais como manifestação da graça divina. É uma espécie de leitura "for dummies" da teoria da predestinação calvinista: se você aceita Jesus no coração, ganha dinheiro. E os evangélicos de fato prosperam, por conta da adesão a uma vida organizada e contida. No caso do Edir Macedo, ele está fazendo o reposicionamento da marca Igreja Universal, que vem sofrendo competição devido ao mercado evangélico ser muito agressivo no Brasil. É um reposicionamento associando a ideia de povo eleito à ideia do povo que prospera pela mágica do Deus de Israel, aproximando o cristianismo de signos judaicos, colocando os fiéis como os eleitos do pai de Jesus – tudo isso com uma dimensão mágica e mística de grande êxtase coletivo. É uma releitura equivocada da teoria da eleição judaica, mas imagino que terá muito êxito.
Com a experiência de ter morado em Israel e estudar religião, como você observa o conflito entre israelenses e palestinos? A fé realmente importa nessa guerra?
Considero a fé um componente desse conflito, mas não esgota suas causas. O Hamas é um grupo que acha que todo mundo deve ser muçulmano, ou seja, é fundamentalista. Já a Autoridade Palestina tem sua tradição no marxismo terrorista militante dos anos 1960, sendo portanto secular, e abriu mão do terrorismo em nome de uma negociação política. Do lado de Israel, há grupos religiosos radicais que acham que Israel deveria ser maior, grupos religiosos radicais que são contra o Estado de Israel porque acreditam que o messias ainda não chegou – o que muito pouca gente sabe por aqui e em outros países –, grupos seculares radicais que acreditam que Israel deveria ser maior e grupos não religiosos que entendem que Israel não deveria ser maior. Então, o aspecto da fé no lado palestino é geralmente associado à destruição de Israel. Já o aspecto da fé do lado de Israel às vezes está associado à destruição dos palestinos e, às vezes, à destruição de Israel. Mas esse conflito é parte de um cenário maior, gerado pela divisão do Oriente Médio depois da I Guerra Mundial entre franceses e ingleses. Não acredito numa paz duradoura lá nos próximos 50 anos. O Oriente Médio extrapola a percepção ocidental mimada de que o estilo de Obama resolveria o mundo, mas Obama não conseguiu nem manter os Estados Unidos fora do Iraque. É o que eu chamo de "filosofia queijos e vinhos".
O que é a "filosofia queijos e vinhos"?
É a ideia de que a gente pode resolver o problema do Oriente Médio com ciclo de cinema iraniano sobre mulheres fazendo bolo ou coisa assim. É achar que o mundo é Oslo, mas o mundo é muito mais Iraque do que Oslo. E, para construir um mundo um pouco menos violento, é necessário vencer o ressentimento. O ressentimento é uma autoilusão, produz o sentimento de segurança e alimenta a covardia. É preciso aceitar que os conflitos são inerentes à condição humana, perceber que quem afirma que o mundo poderia ser uma paz contínua está pregando uma paz falsa. A ideia de que todo mundo pode se dar as mãos e ser amigo é uma mentira. Você afirma isso enquanto processa a irmã por um apartamento! Isso não significa que não se deve tentar criar uma paz, nem que seja temporária, entre Israel e Palestina. Também não significa que não se deve continuar a estimular as pessoas a fazerem negócios ao invés de matarem umas às outras.
O feminismo é tema recorrente de suas colunas, gerando grandes polêmicas. Você acredita que as mulheres têm conseguido conciliar vida pessoal e profissional?
Acho que elas não conseguem isso plenamente até porque não se consegue fazer nada plenamente. Penso que a emancipação feminina é, em geral, um ganho. A minha grande crítica ao feminismo é ele não querer perceber que hoje temos problemas ligados à emancipação: muitas mulheres percebem que trabalhar demais não é bom e quando têm um casamento razoavelmente bom, preferem trabalhar menos. Outras tantas descobriram que querem ser mães, que isso é mesmo importante, não é uma invenção do patriarcalismo, como as feministas falavam nos anos 1960 e 1970. E muitos homens não estão nem aí para o fato de as mulheres serem emancipadas, ou acham até melhor, porque aí elas pagam a conta do motel. Hoje em dia, é considerado machismo até mesmo uma mulher não pagar para entrar em uma festa – é claro que fazer as mulheres pagarem é, no fundo, uma maneira do mercado ganhar mais dinheiro, mas as feministas acham que isso é um combate ao machismo (risos). A Camille Paglia (escritora americana) também já apontou várias vezes que o feminismo criou um grande problema para as mulheres: elas querem que os homens se pareçam com elas, mas, quando isto ocorre, elas brocham porque eles não parecem homens. Acredito que Lei Maria de Penha é importante, delegacia para mulher é importante, ter salário é importante, mas, quando o feminismo se mete nessas discussões de gênero e de querer regrar a vida dos casais, gera uma atraso de vida imenso. E a gente vai demorar muito tempo para se livrar disso.
Como você analisa a corrida presidencial nesse momento?
Logo depois da morte do Eduardo Campos, já tinha dito que o estrago maior seria para o Aécio Neves. Muita gente que ia votar nele não é eleitor fiel do PSDB, votava porque não queria votar no PT. Quando a Marina apareceu como possibilidade, tendo ela a imagem de uma pessoa honesta, preocupada de fato com o país e não com ganhar dinheiro na política, já imaginava que a primeira pancada seria no Aécio, o que de fato aconteceu. Acredito que, no caso de um provável segundo turno, a Marina leva a melhor, já que possivelmente quem vota no Aécio não vota no PT, migrando para a Marina.
As denúncias de corrupção da Petrobras podem tirar votos de Dilma?
Acredito que o escândalo da Petrobras não arranhará tanto a Dilma, isso porque o eleitor do PT é impermeável, seja por ser militante ou de um estrato social em que casos como esse parecem muito distantes do dia a dia, não entendendo muito bem o que acontece. É um escândalo que pode arranhar o eleitor que vota no PT por entender que o partido fez transferência de renda e que isso é positivo, mas nada arranha o eleitor fiel petista, nem mensalão nem Petrobras.
Marina Silva fez mudanças no plano de governo em relação aos homossexuais, o que foi encarado por muitos como reação à pressão do pastor Silas Malafia. Isso pode prejudicá-la ao passar a impressão de que não tem um projeto de governo definido e é sujeita a pressões externas?
Sim, mas em pequena medida. A questão dos homossexuais afeta um grupo da população numericamente pouco significativo, mas que parece maior por conta do impacto que tem na mídia. Acho que esse movimento estratégico da Marina, de recuar um tanto da defesa irrestrita do casamento gay, estava querendo atrair a atenção dos eleitores do Aécio, em boa medida conservadores, e da bancada evangélica, que é parte da sustentação do PT. Não acredito que tenha sido uma decisão estratégica errada.
--------------------Nesta entrevista, Pondé fala do novo livro e opina sobre temas como eleições e a relação entre fé e política.
Seu novo livro se desenvolve em torno da ideia do ressentimento na contemporaneidade. Explique esse conceito.
Ele nasce do conceito de ressentimento de Nietzsche, que descreve o ser humano como um ser que tem consciência do seu abandono cósmico e se sente mal com isso. Assim, os humanos criam a metafísica e as religiões como formas de negação de uma vida carente de significado em nome de uma outra vida – esta última eterna, sobrenatural, seja lá o que for, mas com significado. Nietzsche aponta que isso "hipoteca" a vida real em nome de uma vida que não existe, o que tornaria as pessoas fracas, medrosas e com o seu "eros" adoecido. Tempero o conceito de Nietzsche com a leitura do psiquiatra inglês Theodore Dalrymple, que fala do ressentimento como característica da sociedade inglesa viciada no estado de bem-estar social. Minha intenção é entender em que medida o ressentimento teria sobrevivido à morte de Deus apregoada pelo próprio Nietzsche – coisa que ele já suspeitava que iria ocorrer.
E onde o ressentimento se mantém vivo?
O ressentimento se alojou em demandas de garantias, de "não me ofendam", no narcisismo, na espiritualidade ressentida. No livro, passeio com esse ponto de vista pelo que chamo de "agenda do contemporâneo".
Um dos alvos nesse passeio são grupos que buscam a melhoria da sociedade, como ciclistas, que trocam o carro pela bicicleta acreditando que isso torna a cidade melhor. Sua crítica não desestimula a luta por avanços no cotidiano?
Uso a expressão "playboy light" para falar de ciclistas. Suspeito que essas pequenas formas de causas que as pessoas assumem como "eu sou ciclista, portanto salvo o mundo" produzem uma autoimagem de que você é uma pessoa moralmente superior – isso é fato porque conheço várias pessoas assim. Minha questão não está relacionada ao hábito de andar de bicicleta em si, mas sim a uma espécie de afetação da classe média alta, que acha que, por andar de bicicleta em um bairro seguro ou por trabalhar perto de onde mora, está mudando o mundo. Na realidade, ela é apenas uma privilegiada que mora perto do trabalho, não precisa levar filhos na escola, fazer supermercado e outras mil coisas e, portanto, pode andar de bicicleta. E está tudo bem que faça isso, mas não está mudando o mundo: está apenas usufruindo de um luxo.
Quais são os riscos desse sentimento de superioridade moral?
Isso é indesejável porque é uma forma de hipocrisia e cria grupos intocáveis na sociedade. Se você critica grupos como os ciclistas, praticamente se torna um inimigo público. Tenho amigos que faziam parte desses grupos e os deixaram porque ficaram impressionados com sua agressividade – a gente sabe que muitos ciclistas fecham ruas, são agressivos, andam na contramão... Em São Paulo, o ciclista é como um deus, encarna uma espécie de comportamento santo que vai salvar o mundo. Mas isso é criar uma espécie de mundo que não existe: em que todos trabalhariam perto de casa e ninguém precisaria levar ninguém para a escola. Amsterdã não é o mundo. Amsterdã existe graças à Ásia e à África. E não estou criticando o capitalismo com isso. Aliás, estou sim. A cultura dos mimados é fruto do capitalismo. Minha birra com a esquerda é justamente porque ela atrapalha quando tentamos pensar os problemas da sociedade contemporânea, criando mitos.
Ou seja, a esquerda geraria a dificuldade de entender as contradições capitalistas e superá-las na medida do possível por crer numa imagem idealizada de mundo?
Sim. A esquerda é filha da filosofia de Hegel: só poderia ser idealista. Isso é algo que os marxistas tentam negar, quase como negassem o próprio pai, da mesma forma que Marx negava seus pais judeus. É um problema quase psicanalítico. O marxismo é pura metafísica: a ideia de que a história tem algum sentido, que o espírito é produzido pelas relações econômicas, o que cria uma espécie de matemática que leva a um espírito puro, produtivo, livre, não alienado. É uma mistura de Hegel com Rousseau.
Os ateus também são alvo de suas críticas. Você é religioso?
Permaneço filosoficamente ateu, não sou religioso, mas sempre digo que a ideia de Deus é uma ideia elegante, acho interessante a possibilidade de existir um ser como esse, acho que o universo ficaria mais interessante, no sentido de ter alguma inteligência com algum tipo de projeto. Então, quando reafirmo a elegância da ideia de Deus, quando vejo alguns comportamentos absolutamente generosos e tenho a impressão de que são milagres, estou fazendo uma crítica ao ateísmo militante. Acho que todo ateu deveria ser blasé. Isso de se achar mais inteligente por ser ateu me parece o problema de quem tem 14 anos e fica brigando com o pai. Brinco que virei ateu com oito anos, pois o ateísmo é filosoficamente muito óbvio. A gente parece mesmo abandonado, não encontramos sentido nas coisas, vamos atribuindo significados sem saber direito como. Acho a tradição teológica admirável, e a Bíblia, um livro muito sábio, com discussões muito ricas sobre natureza humana. Já cheguei a afirmar que Deus é o maior personagem da literatura ocidental.
No livro, você compara a fertilidade entre mulheres seculares e religiosas, demonstrando que aquelas com fé têm mais filhos. Esse avanço numérico ameaça o secularismo?
No final do ano passado, comecei a ler alguns dados estatísticos da Universidade de Cambridge que comparavam a fertilidade de mulheres religiosas para valer, que costumamos chamar de fundamentalistas, e de mulheres seculares. Os dados são gritantes nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Europa Ocidental e em Israel. Até 2100, alguns desses países podem ter metade da população religiosa de adesão estrita, simplesmente porque as famílias seculares têm poucos filhos ou nenhum. As mulheres seculares têm muitas outras pautas além de ser mãe. E muitos desses homens também não querem ter filhos. Fiquei muito impressionado porque os seculares, e eu me incluo nesse grupo, achamos que estamos muito seguros em nosso mundo. Nós acreditamos em Darwin, mas quem pratica o darwinismo para valer são os religiosos. Os seculares têm muitas ideias, mas os religiosos têm mais bebês.
Esse avanço pode ter consequências políticas?
Já está tendo. O Partido Republicano foi engolido por fundamentalistas cristãos nos EUA. Na Escandinávia, o crescimento de grupos religiosos fundamentalistas é gigantesco. No Brasil, não é bem assim porque a religiosidade brasileira é vadia, ela acende uma vela para Deus, outra para o diabo, e assim por diante. O Brasil não leva a sério quase nada, inclusive coisas que, quando levadas a sério podem gerar problemas, como a religião. Os evangélicos norte-americanos têm uma visão mais estrita, resta saber até que ponto continuarão assim aqui.
Mas, no Brasil, os adeptos da igrejas neopentecostais também podem estar se encaminhando para uma maioria, o que também já tem consequências políticas.
Sim. Um dos testes foi aquela briga entre Marco Feliciano e o lobby gay, que é um lobby bastante forte dentro e fora do Brasil, mas não conseguiu derrubar o político conservador. E os evangélicos continuam fazendo parte da base governista, sendo muito importantes em termos numéricos. Uma das consequências será o endurecimento do país em relação a comportamentos considerados moralmente liberais, como aborto, casamento gay e coisas assim – nesse ponto, evangélicos e católicos se dão as mãos. Pelo menos até agora, os evangélicos brasileiros não se reuniram numa base única. O curioso é que o oportunismo da classe política brasileira pode, por enquanto, "salvar" o Brasil de um domínio evangélico, no sentido de que eles não lancem partidos pautados por uma ideia de moral cristã, preferindo fazer parte de base governista fisiológica.
Recentemente, Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, inaugurou o gigantesco Templo de Salomão, em uma área com 28 mil m², em São Paulo. Como você vê essa relação entre fé e ostentação?
O neopentecostalismo no Brasil tem uma teologia da prosperidade bastante conhecida, que interpreta ganhos materiais como manifestação da graça divina. É uma espécie de leitura "for dummies" da teoria da predestinação calvinista: se você aceita Jesus no coração, ganha dinheiro. E os evangélicos de fato prosperam, por conta da adesão a uma vida organizada e contida. No caso do Edir Macedo, ele está fazendo o reposicionamento da marca Igreja Universal, que vem sofrendo competição devido ao mercado evangélico ser muito agressivo no Brasil. É um reposicionamento associando a ideia de povo eleito à ideia do povo que prospera pela mágica do Deus de Israel, aproximando o cristianismo de signos judaicos, colocando os fiéis como os eleitos do pai de Jesus – tudo isso com uma dimensão mágica e mística de grande êxtase coletivo. É uma releitura equivocada da teoria da eleição judaica, mas imagino que terá muito êxito.
Com a experiência de ter morado em Israel e estudar religião, como você observa o conflito entre israelenses e palestinos? A fé realmente importa nessa guerra?
Considero a fé um componente desse conflito, mas não esgota suas causas. O Hamas é um grupo que acha que todo mundo deve ser muçulmano, ou seja, é fundamentalista. Já a Autoridade Palestina tem sua tradição no marxismo terrorista militante dos anos 1960, sendo portanto secular, e abriu mão do terrorismo em nome de uma negociação política. Do lado de Israel, há grupos religiosos radicais que acham que Israel deveria ser maior, grupos religiosos radicais que são contra o Estado de Israel porque acreditam que o messias ainda não chegou – o que muito pouca gente sabe por aqui e em outros países –, grupos seculares radicais que acreditam que Israel deveria ser maior e grupos não religiosos que entendem que Israel não deveria ser maior. Então, o aspecto da fé no lado palestino é geralmente associado à destruição de Israel. Já o aspecto da fé do lado de Israel às vezes está associado à destruição dos palestinos e, às vezes, à destruição de Israel. Mas esse conflito é parte de um cenário maior, gerado pela divisão do Oriente Médio depois da I Guerra Mundial entre franceses e ingleses. Não acredito numa paz duradoura lá nos próximos 50 anos. O Oriente Médio extrapola a percepção ocidental mimada de que o estilo de Obama resolveria o mundo, mas Obama não conseguiu nem manter os Estados Unidos fora do Iraque. É o que eu chamo de "filosofia queijos e vinhos".
O que é a "filosofia queijos e vinhos"?
É a ideia de que a gente pode resolver o problema do Oriente Médio com ciclo de cinema iraniano sobre mulheres fazendo bolo ou coisa assim. É achar que o mundo é Oslo, mas o mundo é muito mais Iraque do que Oslo. E, para construir um mundo um pouco menos violento, é necessário vencer o ressentimento. O ressentimento é uma autoilusão, produz o sentimento de segurança e alimenta a covardia. É preciso aceitar que os conflitos são inerentes à condição humana, perceber que quem afirma que o mundo poderia ser uma paz contínua está pregando uma paz falsa. A ideia de que todo mundo pode se dar as mãos e ser amigo é uma mentira. Você afirma isso enquanto processa a irmã por um apartamento! Isso não significa que não se deve tentar criar uma paz, nem que seja temporária, entre Israel e Palestina. Também não significa que não se deve continuar a estimular as pessoas a fazerem negócios ao invés de matarem umas às outras.
O feminismo é tema recorrente de suas colunas, gerando grandes polêmicas. Você acredita que as mulheres têm conseguido conciliar vida pessoal e profissional?
Acho que elas não conseguem isso plenamente até porque não se consegue fazer nada plenamente. Penso que a emancipação feminina é, em geral, um ganho. A minha grande crítica ao feminismo é ele não querer perceber que hoje temos problemas ligados à emancipação: muitas mulheres percebem que trabalhar demais não é bom e quando têm um casamento razoavelmente bom, preferem trabalhar menos. Outras tantas descobriram que querem ser mães, que isso é mesmo importante, não é uma invenção do patriarcalismo, como as feministas falavam nos anos 1960 e 1970. E muitos homens não estão nem aí para o fato de as mulheres serem emancipadas, ou acham até melhor, porque aí elas pagam a conta do motel. Hoje em dia, é considerado machismo até mesmo uma mulher não pagar para entrar em uma festa – é claro que fazer as mulheres pagarem é, no fundo, uma maneira do mercado ganhar mais dinheiro, mas as feministas acham que isso é um combate ao machismo (risos). A Camille Paglia (escritora americana) também já apontou várias vezes que o feminismo criou um grande problema para as mulheres: elas querem que os homens se pareçam com elas, mas, quando isto ocorre, elas brocham porque eles não parecem homens. Acredito que Lei Maria de Penha é importante, delegacia para mulher é importante, ter salário é importante, mas, quando o feminismo se mete nessas discussões de gênero e de querer regrar a vida dos casais, gera uma atraso de vida imenso. E a gente vai demorar muito tempo para se livrar disso.
Como você analisa a corrida presidencial nesse momento?
Logo depois da morte do Eduardo Campos, já tinha dito que o estrago maior seria para o Aécio Neves. Muita gente que ia votar nele não é eleitor fiel do PSDB, votava porque não queria votar no PT. Quando a Marina apareceu como possibilidade, tendo ela a imagem de uma pessoa honesta, preocupada de fato com o país e não com ganhar dinheiro na política, já imaginava que a primeira pancada seria no Aécio, o que de fato aconteceu. Acredito que, no caso de um provável segundo turno, a Marina leva a melhor, já que possivelmente quem vota no Aécio não vota no PT, migrando para a Marina.
As denúncias de corrupção da Petrobras podem tirar votos de Dilma?
Acredito que o escândalo da Petrobras não arranhará tanto a Dilma, isso porque o eleitor do PT é impermeável, seja por ser militante ou de um estrato social em que casos como esse parecem muito distantes do dia a dia, não entendendo muito bem o que acontece. É um escândalo que pode arranhar o eleitor que vota no PT por entender que o partido fez transferência de renda e que isso é positivo, mas nada arranha o eleitor fiel petista, nem mensalão nem Petrobras.
Marina Silva fez mudanças no plano de governo em relação aos homossexuais, o que foi encarado por muitos como reação à pressão do pastor Silas Malafia. Isso pode prejudicá-la ao passar a impressão de que não tem um projeto de governo definido e é sujeita a pressões externas?
Sim, mas em pequena medida. A questão dos homossexuais afeta um grupo da população numericamente pouco significativo, mas que parece maior por conta do impacto que tem na mídia. Acho que esse movimento estratégico da Marina, de recuar um tanto da defesa irrestrita do casamento gay, estava querendo atrair a atenção dos eleitores do Aécio, em boa medida conservadores, e da bancada evangélica, que é parte da sustentação do PT. Não acredito que tenha sido uma decisão estratégica errada.
Reportagem por Alexandre Lucchese
Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/09/luiz-felipe-ponde-o-mundo-e-muito-mais-iraque-do-que-oslo-4597853.html
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