Roberto DaMatta*
O momento pré-eleitoral expõe uma inversão carnavalesca. Um
igualitarismo e uma descentralização somente admitidos nos eventos
liminares desregrados ou orgiásticos quando Apolo, o controlador dos
acontecimentos, cede o palco a Dionísio, o revelador.
De saída, vale mencionar a mudança dos poderosos que — bem vestidos e
protegidos, os que sabem tudo sobre o Brasil — transformam-se em
profetas e pedintes. É com o coração na mão que nós os vemos fantasiados
de gente simples, ouvindo eleitores em locais insalubres e perigosos.
Em botequins baratos, a comer pastéis ou traçando com indisfarçável
falta de jeito um bandejão.
Essa saída dos palácios e partidos (com seus protocolos protetores)
para mergulhar nos braços do populacho é dramática, mas é a prova de que
alguns desses profetas amam esse “povo” de coração. Quanto mais não
seja por mero reconhecimento, porque é dele que vivem, enriquecem, fazem
suas revoluções e morrem e é para ele que profetizam.
São poucas as promessas que fecham com a realidade, mas, como em
política “vale tudo”, todos tentam convencer que há um mundo novo a
nascer de suas mãos.
De recebedores ricos, tornam-se modestos passistas. Visam acima de
tudo aos votos dos desvalidos e, como não trabalham, focam, fascinados, o
“trabalhador”. O fato, porém, é que, uma vez vitoriosos e “arrumados”,
esses profetas da mudança, da honestidade e da revolução tornam-se
“políticos” e viram amigos dos seus inimigos e compadres e comparsas dos
seus exploradores, de modo que tudo muda, menos a “política” cuja
promessa era justamente mudar.
São poucas as promessas que fecham com a realidade, mas,
como em política ‘vale tudo’, todos tentam convencer
que há um mundo
novo a nascer de suas mãos
Vindo de cima ou de baixo, nenhum eleito recusa o palácio, as
mordomias e os milhares de cargos que pode preencher nomeando por mérito
ou — e essa é uma complicação — simpatia, aparelhamento, parentesco ou
no roubo puro e simples em nome do partido.
É tocante.
Havia um desses candidatos que, após visitar os morros, sentia-se
“sujo”. Tal como um brâmane — esse ser que habita todos os “superiores”
deste nosso Brasil da desigualdade — era somente após um banho que ele
ficava à vontade com seus partidários e amigos. Mas muitos, advirto,
sentem-se realmente à vontade ao lado do povo pobre, embora o cargo que
desejam, com suas incríveis vantagens financeiras e a sua roupagem
aristocrática (as “mordomias”) venha contraditoriamente tirá-lo da
esfera dos desvalidos.
Não quero estigmatizar os candidatos que surgem na minha televisão
como um patético álbum de figuras dignas de um Lombroso no pior método
de propaganda eleitoral do planeta pago com dinheiro público. Desejo
apenas acentuar essa carnavalização da autoridade obrigada a
confrontar-se pessoalmente com a sua obra: a rua esburacada, o esgoto a
céu aberto, o mar e os rios emporcalhados, a miséria chocante dos que
lhes pagam um grandioso estilo de vida. De todos os idiotas que, de
tempo em tempo, retornam ao ato eleitoral tendo como motivo um fio de
esperança ao lado das grossas algemas das profecias. E dos últimos
escândalos…
Exatamente como num desfile carnavalesco no qual os pobres surgem
magicamente fantasiados de felicidade, a fase pré-eleitoral faz o
arrogante virar humilde; o insincero tornar-se um marco de honestidade e
— pasmemos todos! — os que jamais fizeram coisa alguma a prometer uma
enorme competência num novo governo ou num governo novo!
Não deve ser fácil pedir para quem mandava. A competição faz surgir
uma dimensão esquecida do papel de administrador público — aquele que
depende do seu lado lamentavelmente apagado: o eleitor. O homem comum
que não tem puxa-sacos e mordomias. Que mal educa os filhos; que teme a
violência e enfrenta todas as filas. Inclusive a do voto.
Trata-se de uma reviravolta dramática porque surge numa moldura de
temível igualdade e numa indeterminação competitiva que amedronta. Na
eleição, todos dependem de uma conjuntura imprevista que corrói
fachadas. Ademais, como competir num país que, mesmo adotando a
democracia, ainda chama de “bate-boca” e toma como agressividade
discordâncias legítimas?
Seria o medo do retorno do nosso velho companheiro? O famoso
autoritarismo risonho, doce e feito sob medida para o povo e de quem
discorda e ao qual critica? Esse neofascismo que permitiria permanecer
décadas no poder porque somente assim o Brasil pode mesmo ser arrumado,
cuidado e consertado?
A ausência de valores e a política como um campo no qual os fins
justificam brutal e abertamente os meios, inventa um tempo patético e
arriscado. A palavra final não está mais com o governante, mas com o
eleitor. Com a opinião pública que o neofascismo nacional sempre odiou,
porque ela cria novos fatos para quem, no poder, pensa que não está
sujeito a nenhuma circunstância.
Subitamente, vejam que enrascada, a democracia no seu implacável
trabalho de igualar, desequilibrar e limitar, mostra que o papel que
ocupávamos não é nosso, mas pertence a esse povão que governamos e que
aceita e acredita em (quase) tudo.
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* Roberto DaMatta é antropólogo e escritor. Tem mais dez livros publicados
como "Índios e Castanheiros" (Difusão Européia, 1967), "O que é o
Brasil?" (Rocco, 2005) e "Crônicas da vida e da morte" (Rocco, 2009).
Fonte: http://www.imil.org.br/artigos/candidatos-pedintes-profetas/ 10/09/2014
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