terça-feira, 2 de setembro de 2014

Žižek e o Estado laico

Por Slavoj Žižek.*
14.09.01_Zizek Estado laico 
Em meio a um cenário marcado por discussões acaloradas sobre a laicidade do Estado num Brasil em pleno debate eleitoral – um dos países mais religiosos do mundo, mas também um dos que mais sofre com violência contra a mulher, minorias LGBT e negros (algo que se evidencia inclusive, como vimos muito recentemente, nos rituais coletivos nacionais mais populares como o futebol) – Slavoj Žižek, que acaba de publicar no Brasil Violência, seis reflexões laterais (Boitempo, 2014), reflete sobre os impasses da sociabilidade contemporânea entre a ideologia do multiculturalismo e o fundamentalismo arraigado. Comentando o recente escândalo de Rotheram, junto com outros casos no mundo inteiro de violência contra a mulher, o filósofo esloveno, chama atenção para o fato de que “em todos esses casos a violência não é uma explosão espontânea de energia brutal que rompe as amarras dos costumes civilizados, mas algo aprendido, imposto externamente, ritualizado, parte da substância coletiva de uma comunidade”. Confira:

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No debate sobre Leitkultur (cultura dominante) da década passada, os conservadores insistiam que todo Estado é baseado em um espaço cultural predominante que os membros de outras culturas que vivem no mesmo espaço devem respeitar. Ao invés de lamentar a emergência de um novo racismo anunciado em tais declarações, devemos voltar um olhar crítico sobre nós mesmos e nos perguntar até que ponto nosso próprio multiculturalismo abstrato contribuiu para este triste estado de coisas. Se todos os lados não compartilharem ou respeitarem a mesma civilidade, então o multiculturalismo se torna uma forma de legalidade regulada por ignorância mútua ou ódio.

O conflito sobre multiculturalismo já é um conflito sobre Leitkultur: não é um conflito entre culturas, e sim um conflito entre diferentes visões de como culturas diferentes podem e devem coexistir, sobre as regras e práticas que essas culturas tem de compartilhar se quiserem co-existir. Devemos portanto evitar a armadilha da pergunta liberal “com quanta tolerância podemos arcar para com o outro?”. Nesse nível, é claro, nunca somos tolerantes o suficiente, ou então já estamos sendo tolerantes demais… A única forma de romper com esse impasse é propor e lutar por um projeto universal positivo compartilhado por todos os participantes.

É por isso que a tarefa crucial daqueles que hoje lutam pela emancipação é de ir além do mero respeito por outros, em direção a uma Leitkultur emancipatória positiva que, somente ela, poderá sustentar uma coexistência e mistura autêntica de culturas diferentes.

Nosso axioma deve ser que a luta contra o neocolonialismo ocidental, bem como a luta contra o fundamentalismo, a luta do WikiLeaks e de Snowden bem como a do PussyRiot, a luta contra o antissemitismo bem como a contra o sionismo agressivo, são partes de uma mesma luta universal. Se fizermos qualquer concessão aqui, estaremos perdidos em ajustes pragmáticos, e nossa vida não vale ser vivida.
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* Trecho do artigo “Rotherham child sex abuse: it is our duty to ask difficult questions“, publicado originalmente no The Guardian em 1° de setembro de 2014.
A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.

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