Por Slavoj Žižek.*
Em meio a
um cenário marcado por discussões acaloradas sobre a laicidade do
Estado num Brasil em pleno debate eleitoral – um dos países mais
religiosos do mundo, mas também um dos que mais sofre com violência
contra a mulher, minorias LGBT e negros (algo que se evidencia
inclusive, como vimos muito recentemente, nos rituais coletivos nacionais mais populares como o futebol) – Slavoj Žižek, que acaba de publicar no Brasil Violência, seis reflexões laterais (Boitempo,
2014), reflete sobre os impasses da sociabilidade contemporânea entre a
ideologia do multiculturalismo e o fundamentalismo arraigado.
Comentando o recente escândalo de Rotheram, junto com outros casos no
mundo inteiro de violência contra a mulher, o filósofo esloveno, chama atenção para o fato de que “em todos esses casos a violência não
é uma explosão espontânea de energia brutal que rompe as amarras dos
costumes civilizados, mas algo aprendido, imposto externamente,
ritualizado, parte da substância coletiva de uma comunidade”. Confira:
* * *
No debate sobre Leitkultur
(cultura dominante) da década passada, os conservadores insistiam que
todo Estado é baseado em um espaço cultural predominante que os membros
de outras culturas que vivem no mesmo espaço devem respeitar. Ao invés
de lamentar a emergência de um novo racismo anunciado em tais
declarações, devemos voltar um olhar crítico sobre nós mesmos e nos
perguntar até que ponto nosso próprio multiculturalismo abstrato
contribuiu para este triste estado de coisas. Se todos os lados não
compartilharem ou respeitarem a mesma civilidade, então o
multiculturalismo se torna uma forma de legalidade regulada por
ignorância mútua ou ódio.
O conflito sobre multiculturalismo já é um conflito sobre Leitkultur:
não é um conflito entre culturas, e sim um conflito entre diferentes
visões de como culturas diferentes podem e devem coexistir, sobre as
regras e práticas que essas culturas tem de compartilhar se quiserem
co-existir. Devemos portanto evitar a armadilha da pergunta liberal “com
quanta tolerância podemos arcar para com o outro?”. Nesse nível, é
claro, nunca somos tolerantes o suficiente, ou então já estamos sendo
tolerantes demais… A única forma de romper com esse impasse é propor e
lutar por um projeto universal positivo compartilhado por todos os
participantes.
É por isso
que a tarefa crucial daqueles que hoje lutam pela emancipação é de ir
além do mero respeito por outros, em direção a uma Leitkultur emancipatória positiva que, somente ela, poderá sustentar uma coexistência e mistura autêntica de culturas diferentes.
Nosso axioma
deve ser que a luta contra o neocolonialismo ocidental, bem como a luta
contra o fundamentalismo, a luta do WikiLeaks e de Snowden bem como a
do PussyRiot, a luta contra o antissemitismo bem como a contra o sionismo agressivo,
são partes de uma mesma luta universal. Se fizermos qualquer concessão
aqui, estaremos perdidos em ajustes pragmáticos, e nossa vida não vale
ser vivida.
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* Trecho do artigo “Rotherham child sex abuse: it is our duty to ask difficult questions“, publicado originalmente no The Guardian em 1° de setembro de 2014.
A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
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