segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Woody Allen e a fé dos descrentes

 Matheus Pichonelli*
Magia ao Luar
 Os personagens de Colin Firth e Emma Stone no filme Magia ao Luar

 "O drama do mágico sem magia é, portanto, 
o drama de todo especialista na própria arte. 
Ou será que o padre acredita na 
salvação da sua homilia?"
Se Woody Allen não tivesse afirmado, em entrevista recente, que não acompanha nenhum seriado da tevê, eu poderia jurar que Stanley, protagonista de Magia ao Luar interpretado por Colin Firth, é uma versão envelhecida do personagem Sheldon, da série The Big Bang Theory. Ambos são cartesianos, racionais, sistemáticos e inebriados pela ideia de que apenas a verdade liberta – o que os leva sempre ao limite do sincericídio. Para eles existe o mundo e as suas manifestações, e o que não é visível só existe se for provado.

Tanto um quanto o outro são a paródia de um mundo em desencanto, uma consequência da evolução científica sobre o pensamento humano, apegado a modelos lógicos e fechados às paixões humanas, estas restritas ao campo do imponderável, da dúvida, dos esforços inúteis e da insanidade. Ambos são profissionais brilhantes, mas pecam por não conseguir dissociar suas metas e métodos de observação científica da vida em sociedade. Embora carismáticos ao olhar do público, são, em suas versões reais, sujeitos desarticulados do convívio em grupo. Os ruídos cognitivos em um mundo não totalmente despojado de magia e suas crenças produzem reações hilárias ao público – que, em geral, os adora, desde que não saiam da tela.

Magia ao Luar talvez não seja o melhor Woody Allen em muito tempo, como eu mesmo, em um momento de empolgação, cheguei a escrever nas minhas redes sociais ao fim da sessão. Mas é o que mais me agrada em muito tempo. Tendo a gostar mais dos filmes de alter ego do cineasta, em que ele aparece sem aparecer, a exemplo de dois trabalhos recentes, Meia Noite em Paris e Tudo Pode dar Certo. (Sim: fora da tela eu também não o suportaria). O fato é que, para além da empatia, o filme consegue, de uma maneira simples, boba até, expressar um conflito comum dos tempos atuais.

No filme, Stanley é um mágico consagrado da primeira metade do século que ganha dinheiro vendendo o que não é. Ele se veste de chinês, mas é caucasiano. É gentil para a plateia, mas nos bastidores é histérico, intragável. E vende truques como magia. Especialista, portanto, na arte do engano, ele é instigado por um amigo a desmascarar uma jovem mediúnica que andava produzindo milagres no Sul da França. É quando o protagonista troca as férias nas Ilhas Galápagos, onde Darwin definiu sua Teoria da Evolução, pelo desafio de levar a lógica a um ambiente contagiado pelo misticismo. Mais que isso, o desafio é não se deixar contagiar. Mas como, quando o alvo da missão é uma garota que produz encanto até quando respira?

De modo sutil, o cineasta faz da sua autocrítica (ele, um ateu fervoroso, fatalista declarado) uma provocação e tanto. À sua maneira, mostra que nosso apego à lógica nos transformou em militantes da sobriedade. Não é uma oposição simplesmente entre crentes e ateus, mas entre sensibilidade e racionalismo. Este nos libertou dos misticismos ingênuos dos tempos pré-industriais, mas nos aprisionou a um modo de pensamento segundo o qual tudo precisa ter uma explicação plausível – inclusive a não existência de Deus. É tanta lupa que já não identificamos beleza em nada: a ausência de sentido é a única conclusão plausível da existência. Se nada sobrevive, para que nos serve a contemplação do inútil?

Em certa medida é este o ponto que Woody Allen parece querer chegar: o mágico se especializou de tal maneira em aplicar truques que não só não acredita na própria magia, como refuta e tenta o tempo todo desmascarar a magia alheia. Essa magia alheia não só incomoda como precisa ser combatida. É uma pregação às avessas: não basta não crer, é preciso provar que o crente ou ainda não entendeu, ou está trapaceando, ou tem algum retardo cognitivo. Daí o bloqueio diante de qualquer experiência em que não caiba uma explicação lógica. É preciso identificar o truque, para jamais cair no conto do interlocutor.

O drama do mágico sem magia é, portanto, o drama de todo especialista na própria arte. Ou será que o padre acredita na salvação da sua homilia? E o político? Ele realmente acredita que tem as melhores propostas? Ou é só um ventríloquo treinado pelo marqueteiro? E o vendedor? Quantos defeitos técnicos possui o produto que ele quer nos empurrar? E o corretor de imóveis, sabe de fato o valor real de um metro quadrado? E o médico? Ele quer nos curar ou quer fidelizar minha doença? E o cineasta?

Todo mundo é um farsante até que se prove o contrário, e por isso desconfiamos, inclusive dos poetas, citados por Fernando Pessoa como fingidores: eles fingem tão completamente que chegam a fingir que é dor a dor que deveras sentem. Por isso, nas calhas de roda, nos emocionamos com as dores que não sabemos sequer serem reais. Acreditar nelas ou não é, em si, uma profissão de fé. De magia, enfim. Todo o resto passa a ser desencanto no momento em que é desvendado.
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* Formado em jornalismo e ciências sociais, é editor-assistente do site de CartaCapital
Fonte: Carta Capital online, acesso 08/09/2014

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