Em sociedades escolarizadas, as salas de aula constituem
núcleos-chave de regulação da vida social quotidiana, infelizmente
tomadas de assalto há décadas
por diletantismos irresponsáveis.
O tempo transformou a indisciplina no mais grave obstáculo à
qualidade do ensino. O fenómeno é alimentado por sete pecados mortais
ou, noutra terminologia, sete falácias capitais.
Primeira falácia: “Os professores não têm autoridade”.
Apoiado no ensaio de Miguel Morgado, “Autoridade” (Fundação Francisco
Manuel dos Santos, 2010), sublinho que a forte tendência para a
ineficácia disciplinar nas salas de aula não tem tanto a ver com a
autoridade dos professores. Esta funda-se no conhecimento, atributo
raramente central em episódios de indisciplina. No âmago desta está um
outro núcleo-chave: o do poder dos professores. Esse poder resulta dos
instrumentos de que a autoridade legítima deve dispor para se tornar
direta, simples, imediata, pragmática, efetiva. O valor da palavra é o
instrumento que confere, por excelência, conteúdo concreto ao poder
hierárquico dos professores sobre os alunos sem o qual deixa de fazer
sentido o dever moral, deontológico e cívico de regular atitudes e
comportamentos. Quer dizer que a autoridade (que os professores possuem)
e o poder (que não lhes é reconhecido) não são confundíveis. Para se
enfrentar o fenómeno da indisciplina, o foco tem de se deslocar da
questão inócua da autoridade para a questão substantiva do poder dos
professores nas salas de aula.
Segunda falácia: “A indisciplina é intersubjetiva”.
É fortíssima a tentação de conceber a indisciplina como um fenómeno que
se joga nas idiossincrasias de cada contexto, caso a caso entre um dado
docente e os respetivos alunos. Contudo, as evidências há décadas que
demonstram que o fenómeno é sistémico, não confundível com um agregado
de ocorrências pontuais.
Terceira falácia: “A indisciplina nas escolas é própria das sociedades atuais”.
Gente douta e gente comum fingem acreditar que o sentido da vida
coletiva é imposto por um destino inelutável. A verdade é que nenhuma
sociedade é abúlica. As características dominantes dos sistemas que as
regulam, entre eles o ensino, resultam de escolhas coletivas entre
inúmeras possibilidades que uns poucos influentes fazem num dado sentido
e não noutros, e os demais toleram. Tais escolhas têm implicações
diretas nas relações de poder dentro de uma sala de aula e foi por elas
que, nas últimas décadas, foi pesando bem mais o prato da balança do
lado dos alunos-crianças-adolescentes-jovens e bem menos o prato da
balança do lado dos professores-adultos, transformação coincidente no
tempo com o agravamento da indisciplina. Como também não existem
perversões nas hierarquias institucionais caídas dos céus, sobretudo
quando elas nem sempre foram relevantes num sistema que atravessa
gerações, o que vimos assistindo nas salas de aula tem, por isso,
propósitos e agentes responsáveis. É por essas razões que o essencial na
minimização da indisciplina não se joga na intimidade da sala de aula,
antes entre quem as tutela no quotidiano, os professores de facto, e
quem de fora das escolas tutela o sistema de ensino nas decisivas
dimensões política, legislativa, académica, administrativa e quem
influencia a opinião pública. Nesta ampla configuração de poderes e
vontades, aos professores de sala de aula sobra o papel de elo mais
fraco na longa cadeia tutelar.
Quarta falácia: “Os professores têm poder excessivo”.
A relação dos professores com o poder obedece a lógicas inversas às da
indisciplina. Quanto mais distantes da sala de aula, tanto maior o poder
dos professores até ao topo da elite sindical. Contudo, a falácia não
se desfaz se nos limitarmos ao universo dos professores. O que está em
causa são disputas pelo controlo da capacidade de influência sobre
crianças, adolescentes e jovens de hoje, adultos de amanhã. Tal capital
social sempre foi extremamente valioso. Foi esse poder que os partidos
políticos e respetivas derivas sindicais, os académicos cientistas da
educação, os autodenominados representantes dos pais, os notáveis do
regime, entre outros, uns por ação e outros por omissão, há décadas
retiraram ou toleraram que se retirasse aos docentes do ensino básico e
secundário a pretexto da invasão democratizante das salas de aula,
movimento que redundou num estulto igualitarismo institucional gerador
de indisciplina.
Quinta falácia: “A escola perdeu importância social”.
A massificação efetiva do acesso ao ensino e o alargamento do tempo
médio de permanência no sistema (entra-se mais cedo e sai-se mais tarde)
resultaram na perda da influência de outras instituições que permitem
aos adultos tutelar os mais novos: famílias, igrejas, comunidades de
residência, organizações cívicas, partidos políticos, serviço militar,
entre outros. Tal reconfiguração foi transformando as salas de aula em
espaços cada vez mais na mira das mais agressivas leis do mercado do
poder. Qualquer um, indivíduo ou instituição, passou a julgar-se no
direito de sobre elas opinar ou nelas intervir, pressão social que
coloca constantemente em causa a autonomia das escolas, fragilizando a
sua dignidade e identidade institucional. É sintomático que quanto mais o
futuro das sociedades foi ficando umbilicalmente dependente do trabalho
de todos os dias nas salas de aula, tanto mais se foi propalando a tese
de que as escolas perdiam influência social e tudo se tem feito para
tornar esse desejo em evidência, ainda que colida com a realidade
factual. A tese perdura porque legitima a conversão do ensino num peão
de disputas pelo poder.
Sexta falácia: “Crianças, adolescentes e jovens são responsáveis pela erosão do poder dos professores”.
Confunde-se a consequência com a causa. Quando as pressões dos adultos
de fora para dentro das salas de aula mudarem de sentido, as atitudes e
comportamentos dos estudantes também mudarão. Em democracias e
sociedades civilizadas, o respeito pelos poderes legitimamente
instituídos constitui um dever moral e cívico alimentado nas interações
quotidianas. Quanto mais predominante for essa atitude, tanto maiores as
possibilidades de redistribuição efetiva do inescapável poder social de
uns sobre outros quase sempre hiperconcentrado nos “grandes”. A
valorização da atitude referida reforça as predisposições sociais para
que se confira forte legitimidade aos “pequenos” poderes, fundada na
autonomia e autoridade profissional dos seus agentes. O contrário é um
vazio social de poder que desemboca invariavelmente em maus resultados.
Nas nossas sociedades, professores de sala de aula e polícias de rua são
fundamentais na regulação da vida quotidiana. As utopias
revolucionárias em voga – variante das mais incisivas da anacrónica
pedofilia na luta pelo poder político, cujo papel se foi tornando tanto
mais saliente no ensino quanto mais perderam espaço noutros domínios da
vida social – fomentam o oposto da democratização da presença e respeito
por figuras de poder em contextos institucionais e sociais onde a
função e prestígio dos “pequenos” poderes se revelam cruciais.
Fragilidades a este nível tornam as sociedades bem menos competentes na
garantia da dignidade, segurança, promoção social e sentido de
responsabilidade cívica dos indivíduos, em particular dos mais
vulneráveis.
Sétima falácia: “Os estatutos do aluno servem para combater a indisciplina”.
Para simular um pretenso combate continuado à indisciplina gerou-se uma
interminável paz podre sustentada na credulidade na via escrita e
burocrática enquanto estratégia de regulação de atitudes e
comportamentos em sala de aula, no caso português convertida na
relevância política, social e institucional atribuída aos estatutos do
aluno. Os estatutos do aluno desceram à terra para ratificar em forma de
lei escrita a negação do poder da palavra aos professores. Tais
documentos legais nunca foram parte da solução, antes peça central na
perpetuação da indisciplina. A minimização efetiva do fenómeno não
necessita de se escudar em estatutos do aluno, regulamentos internos das
escolas ou burocracias adjacentes. Necessita acima de tudo de se focar
num pressuposto bem mais decisivo: renovar o contrato social
profundamente desgastado entre as sociedades e as escolas. Sociedades
que sobrevalorizam estatutos do aluno porque não confiam diretamente nos
seus professores na sala de aula têm o que merecem. Professores que não
pugnam por exames nacionais e por um sistema de classificação de
resultados escolares simples, estável e transversal do primeiro ciclo do
básico ao ensino superior para que as suas lógicas e consequências
sejam de fácil e transparente interpretação pelo senso comum, não
percebem o quanto eles mesmos têm colocado em causa referentes
fundadores da confiança que as sociedades depositam nos seus
profissionais de ensino.
Em sociedades escolarizadas, as salas de aula constituem
núcleos-chave de regulação da vida social quotidiana, infelizmente
tomadas de assalto há décadas por diletantismos irresponsáveis.
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* Professor. Doutoramento em Estudos Africanos Interdisciplinares em Ciências Sociais, em 2009 - ISCTE-IUL, Lisboa
Mestrado em Estudos Africanos, em 2000 - ISCTE, Lisboa
Licenciatura em História, em 1990 - Universidade de Lisboa
Mestrado em Estudos Africanos, em 2000 - ISCTE, Lisboa
Licenciatura em História, em 1990 - Universidade de Lisboa
Fonte: http://observador.pt/
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