quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Indisciplina nas escolas: os sete pecados mortais

Gabriel Mithá Ribeiro*
 
Em sociedades escolarizadas, as salas de aula constituem núcleos-chave de regulação da vida social quotidiana, infelizmente tomadas de assalto há décadas 
por diletantismos irresponsáveis.

O tempo transformou a indisciplina no mais grave obstáculo à qualidade do ensino. O fenómeno é alimentado por sete pecados mortais ou, noutra terminologia, sete falácias capitais.

Primeira falácia: “Os professores não têm autoridade”. Apoiado no ensaio de Miguel Morgado, “Autoridade” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010), sublinho que a forte tendência para a ineficácia disciplinar nas salas de aula não tem tanto a ver com a autoridade dos professores. Esta funda-se no conhecimento, atributo raramente central em episódios de indisciplina. No âmago desta está um outro núcleo-chave: o do poder dos professores. Esse poder resulta dos instrumentos de que a autoridade legítima deve dispor para se tornar direta, simples, imediata, pragmática, efetiva. O valor da palavra é o instrumento que confere, por excelência, conteúdo concreto ao poder hierárquico dos professores sobre os alunos sem o qual deixa de fazer sentido o dever moral, deontológico e cívico de regular atitudes e comportamentos. Quer dizer que a autoridade (que os professores possuem) e o poder (que não lhes é reconhecido) não são confundíveis. Para se enfrentar o fenómeno da indisciplina, o foco tem de se deslocar da questão inócua da autoridade para a questão substantiva do poder dos professores nas salas de aula.

Segunda falácia: “A indisciplina é intersubjetiva”. É fortíssima a tentação de conceber a indisciplina como um fenómeno que se joga nas idiossincrasias de cada contexto, caso a caso entre um dado docente e os respetivos alunos. Contudo, as evidências há décadas que demonstram que o fenómeno é sistémico, não confundível com um agregado de ocorrências pontuais.

Terceira falácia: “A indisciplina nas escolas é própria das sociedades atuais”. Gente douta e gente comum fingem acreditar que o sentido da vida coletiva é imposto por um destino inelutável. A verdade é que nenhuma sociedade é abúlica. As características dominantes dos sistemas que as regulam, entre eles o ensino, resultam de escolhas coletivas entre inúmeras possibilidades que uns poucos influentes fazem num dado sentido e não noutros, e os demais toleram. Tais escolhas têm implicações diretas nas relações de poder dentro de uma sala de aula e foi por elas que, nas últimas décadas, foi pesando bem mais o prato da balança do lado dos alunos-crianças-adolescentes-jovens e bem menos o prato da balança do lado dos professores-adultos, transformação coincidente no tempo com o agravamento da indisciplina. Como também não existem perversões nas hierarquias institucionais caídas dos céus, sobretudo quando elas nem sempre foram relevantes num sistema que atravessa gerações, o que vimos assistindo nas salas de aula tem, por isso, propósitos e agentes responsáveis. É por essas razões que o essencial na minimização da indisciplina não se joga na intimidade da sala de aula, antes entre quem as tutela no quotidiano, os professores de facto, e quem de fora das escolas tutela o sistema de ensino nas decisivas dimensões política, legislativa, académica, administrativa e quem influencia a opinião pública. Nesta ampla configuração de poderes e vontades, aos professores de sala de aula sobra o papel de elo mais fraco na longa cadeia tutelar.

Quarta falácia: “Os professores têm poder excessivo”. A relação dos professores com o poder obedece a lógicas inversas às da indisciplina. Quanto mais distantes da sala de aula, tanto maior o poder dos professores até ao topo da elite sindical. Contudo, a falácia não se desfaz se nos limitarmos ao universo dos professores. O que está em causa são disputas pelo controlo da capacidade de influência sobre crianças, adolescentes e jovens de hoje, adultos de amanhã. Tal capital social sempre foi extremamente valioso. Foi esse poder que os partidos políticos e respetivas derivas sindicais, os académicos cientistas da educação, os autodenominados representantes dos pais, os notáveis do regime, entre outros, uns por ação e outros por omissão, há décadas retiraram ou toleraram que se retirasse aos docentes do ensino básico e secundário a pretexto da invasão democratizante das salas de aula, movimento que redundou num estulto igualitarismo institucional gerador de indisciplina.

Quinta falácia: “A escola perdeu importância social”. A massificação efetiva do acesso ao ensino e o alargamento do tempo médio de permanência no sistema (entra-se mais cedo e sai-se mais tarde) resultaram na perda da influência de outras instituições que permitem aos adultos tutelar os mais novos: famílias, igrejas, comunidades de residência, organizações cívicas, partidos políticos, serviço militar, entre outros. Tal reconfiguração foi transformando as salas de aula em espaços cada vez mais na mira das mais agressivas leis do mercado do poder. Qualquer um, indivíduo ou instituição, passou a julgar-se no direito de sobre elas opinar ou nelas intervir, pressão social que coloca constantemente em causa a autonomia das escolas, fragilizando a sua dignidade e identidade institucional. É sintomático que quanto mais o futuro das sociedades foi ficando umbilicalmente dependente do trabalho de todos os dias nas salas de aula, tanto mais se foi propalando a tese de que as escolas perdiam influência social e tudo se tem feito para tornar esse desejo em evidência, ainda que colida com a realidade factual. A tese perdura porque legitima a conversão do ensino num peão de disputas pelo poder.

Sexta falácia: “Crianças, adolescentes e jovens são responsáveis pela erosão do poder dos professores”. Confunde-se a consequência com a causa. Quando as pressões dos adultos de fora para dentro das salas de aula mudarem de sentido, as atitudes e comportamentos dos estudantes também mudarão. Em democracias e sociedades civilizadas, o respeito pelos poderes legitimamente instituídos constitui um dever moral e cívico alimentado nas interações quotidianas. Quanto mais predominante for essa atitude, tanto maiores as possibilidades de redistribuição efetiva do inescapável poder social de uns sobre outros quase sempre hiperconcentrado nos “grandes”. A valorização da atitude referida reforça as predisposições sociais para que se confira forte legitimidade aos “pequenos” poderes, fundada na autonomia e autoridade profissional dos seus agentes. O contrário é um vazio social de poder que desemboca invariavelmente em maus resultados. Nas nossas sociedades, professores de sala de aula e polícias de rua são fundamentais na regulação da vida quotidiana. As utopias revolucionárias em voga – variante das mais incisivas da anacrónica pedofilia na luta pelo poder político, cujo papel se foi tornando tanto mais saliente no ensino quanto mais perderam espaço noutros domínios da vida social – fomentam o oposto da democratização da presença e respeito por figuras de poder em contextos institucionais e sociais onde a função e prestígio dos “pequenos” poderes se revelam cruciais. Fragilidades a este nível tornam as sociedades bem menos competentes na garantia da dignidade, segurança, promoção social e sentido de responsabilidade cívica dos indivíduos, em particular dos mais vulneráveis.

Sétima falácia: “Os estatutos do aluno servem para combater a indisciplina”. Para simular um pretenso combate continuado à indisciplina gerou-se uma interminável paz podre sustentada na credulidade na via escrita e burocrática enquanto estratégia de regulação de atitudes e comportamentos em sala de aula, no caso português convertida na relevância política, social e institucional atribuída aos estatutos do aluno. Os estatutos do aluno desceram à terra para ratificar em forma de lei escrita a negação do poder da palavra aos professores. Tais documentos legais nunca foram parte da solução, antes peça central na perpetuação da indisciplina. A minimização efetiva do fenómeno não necessita de se escudar em estatutos do aluno, regulamentos internos das escolas ou burocracias adjacentes. Necessita acima de tudo de se focar num pressuposto bem mais decisivo: renovar o contrato social profundamente desgastado entre as sociedades e as escolas. Sociedades que sobrevalorizam estatutos do aluno porque não confiam diretamente nos seus professores na sala de aula têm o que merecem. Professores que não pugnam por exames nacionais e por um sistema de classificação de resultados escolares simples, estável e transversal do primeiro ciclo do básico ao ensino superior para que as suas lógicas e consequências sejam de fácil e transparente interpretação pelo senso comum, não percebem o quanto eles mesmos têm colocado em causa referentes fundadores da confiança que as sociedades depositam nos seus profissionais de ensino.

Em sociedades escolarizadas, as salas de aula constituem núcleos-chave de regulação da vida social quotidiana, infelizmente tomadas de assalto há décadas por diletantismos irresponsáveis.
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* Professor. Doutoramento em Estudos Africanos Interdisciplinares em Ciências Sociais, em 2009 - ISCTE-IUL, Lisboa
Mestrado em Estudos Africanos, em 2000 - ISCTE, Lisboa
Licenciatura em História, em 1990 - Universidade de Lisboa
Fonte:  http://observador.pt/
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