quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Larkin: sempre é sempre agora

Mario Sergio Conte*

“Arundel” está em todas as antologias de poesia inglesa do século passado, o que é justo

Na terça-feira passada, foram divulgadas imagens de dois esqueletos enterrados há setecentos anos na Capela de St. Morrell, em Leicestershire, na Inglaterra. Lado a lado, com os maxilares escancarados num rígido esgar, as caveiras são canhestras. Mas os despojos causam calafrio quando se percebe, com um choque agudo e terno, que estão de mãos dadas. Aí os mortos ressuscitam e trazem ao espírito “Uma tumba de Arundel”, o formidável poema de Philip Larkin (1922-1985).

O poema, que infelizmente não cabe nesta coluna, fala de um retalho de história do qual só a atitude permanece: as estátuas de um conde e uma condessa, deitadas de mãos entrelaçadas sobre os seus túmulos. O sol trespassou os vitrais sem data e esmaeceu a efígie pré-barroca dos aristocratas. A neve caiu ao longo de incontáveis invernos sobre o musgo da igreja erma. Mas o enlace do gesto de afeto perdurou para além de suas vidas, persiste nas esculturas e nos versos de Larkin. A fidelidade pétrea do casal virou o seu brasão definitivo: nosso amor nos sobreviverá.

“Uma tumba de Arundel” foi bastante citada no 11 de setembro de 2001, também a propósito de uma foto. Ela flagrava o que parecia ser um casal, de mãos dadas, pulando das Torres Gêmeas em chamas. Do morticínio todo, what will survive of us is love, como diz o último verso do poema.

“Arundel” está em todas as antologias de poesia inglesa do século passado, o que é justo; e ainda mais justo porque a alta poesia deixa progressivamente de ser um dado central da cultura. Mas é pena que Larkin seja conhecido quase só por causa desse poema. A sua lírica passa ao largo da eloquência, capta sentimentos informes em versos cortantes. Num tempo em que tantos idiotas tonitruam certezas, ela tateia, indaga, duvida, sussurra. Como nos quatro poemas traduzidos a seguir.

É só agora ou desde o início
Que o mundo é precipício?
É bálsamo ou suplício,
Para sempre ou interstício?
É milagre ou miragem
Essa nossa sacanagem?
O malabarismo selvagem
É uma boa ou má imagem?
Brilha, meu anjo da aurora,
Mata o medo e a metáfora,
Antes tarde do que outrora
Porque sempre é sempre agora.

Ignorância
É estranho não saber nada, zero,
Do que é exato, real, certo,
E ainda ter que fingir saber,
Dizer Pode ser, parece:
Na certa alguém sabe.
Estranho ignorar o que as coisas são:
Como elas acham o que devem,
Como tomam forma, viram grão,
E como sempre mudam;
Sim, é estranho
Mesmo simular saber — pois nossa
Carne decide por conta própria —
E viver a vida na maior dúvida,
Até que começamos a morrer
Sem nenhuma noção de nada.

Essa é a primeira
Coisa que aprendi no prado:
O tempo é o eco do machado
Dentro da madeira.

Num sonho você disse:
Vamos então nos beijar
Nessa sala, nessa cama,
Mas quando tudo acabar
Terá sido para sempre.
Ao ouvir essa voz final,
Não houve vigília de inverno,
Nem raiz gélida na neve,
Nem ave em vento glacial
Tão fria quanto o meu peito.
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* Colunista do Jornal O Globo
Fonte: O Globo online, 18/09/2014
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