Quem é Lisa Randall, a física materialista que lança hipóteses
inovadoras sobre gravidade e eletromagnetismo,
além de filosofar sobre
ciência, religião, simetria e verdade
“A parte religiosa do cérebro não pode agir
ao
mesmo tempo que a científica. Elas são
simplesmente incompatíveis”
Meio constrangida por seus belos olhos azuis que lembram a
cinematográfica Jodie Foster, a nova-iorquina Lisa Randall coleciona
feitos de causar espanto na maioria dos colegas de ciência. E assédios
também. Ira Flatow, premiado âncora da rádio pública americana NPR,
acabou nas páginas do New York Times por uma imprudência no ar. O blog de ciência Cosmic Variance
acusou Flatow de estar passando uma cantada ao vivo na cientista, sem
falar no conteúdo machista implícito do tipo “bonita e inteligente”.
Aos 49 anos, solteira e sem filhos, Randall é altamente competitiva,
acredita no poder dos desafios e não quer nenhum desconto por ser
mulher, como ela não cansa de repetir. Seu currículo dá inveja a
qualquer marmanjo barbudo da área de física teórica. Além de ser a
primeira mulher titular na cadeira de Física em Harvard, a universidade
mais conceituada do mundo, ela coleciona as primeiras titularidades
femininas em Princeton e no MIT (Instituto de Tecnologia de
Massachusetts). E foi a pessoa que mais se destacou em física teórica em
todo o planeta durante cinco anos, período em que ocorreram mais de 10
mil citações de seu trabalho por outros cientistas.
A carreira de Randall começou na famosa e de difícil acesso
Stuyvesant High School, em Nova York, onde foi colega de classe do não
menos famoso cientista das teorias de cordas Brian Greene, autor de O universo elegante [Companhia das Letras, 2001] e O tecido do cosmo
[Companhia das Letras, 2005]. Recentemente, ela foi de novo para a
ribalta, meio a contragosto, quando o presidente de Harvard, Lawrence
Summers, cometeu a gafe de declarar que são poucas as mulheres na
ciência por causa de diferenças genéticas. Na polêmica que estourou, ele
acabou tendo de admitir que falou demais e Randall foi indicada para
trabalhar numa força-tarefa com o objetivo de monitorar a participação
científica feminina e sugerir medidas reparadoras da situação.
Depois de conquistar seu lugar na difícil área da física teórica,
Lisa enveredou também pelo campo da divulgação científica. Afinal, ela
nunca abandonou as aulas tradicionais de física básica nas várias
universidades por que passou.
Seu primeiro livro, Warped Passages (“Passagens torcidas”,
sem tradução no Brasil), foi um grande sucesso internacional em 2005,
mas aparentemente não vai chegar tão cedo ao leitor brasileiro, se algum
dia chegar. Ela acaba de lançar sua segunda obra: “Batendo à porta do céu”, (Companhia das Letras, 2013). Enquanto Warped Passages foi um livro de divulgação científica essencialmente baseado no paper que lhe rendeu as mais de 10 mil citações, Knocking on heaven’s door
(o título original é uma referência a uma canção de Bob Dylan) tem
ambição mais ampla, enveredando até por teorizações filosóficas sobre a
arte, beleza e verdade. Ou mesmo opiniões práticas sobre trivialidades,
como os aparelhos da moda da Apple. “O iPod é só engraçado mas inútil”,
escreve ela.
Knocking on heaven’s door, para Randall, que é
declaradamente ateia, é uma metáfora da busca atávica dos humanos pelo
conhecimento. Se os religiosos vão buscar revelações nas esferas
celestes, Lisa tem outro caminho: a ciência e o materialismo, sem
concessões místicas. “A parte religiosa do cérebro não pode agir ao
mesmo tempo que a científica. Elas são simplesmente incompatíveis”,
escreve ela. Os primeiros capítulos do livro são justamente de negação
da revelação religiosa como fonte de conhecimento da natureza. Mas ela
admite que “as pessoas querem respostas e orientações que a ciência não
pode dar”, especialmente quanto ao conforto existencial.
Para entender seu mais recente livro, é preciso voltar ao primeiro: Warped Passages.
Nele Lisa explica sua teoria para resolver um dos grandes mistérios da
física: por que a gravidade é uma força tão fraca em comparação com as
outras, como o magnetismo, a eletricidade e as forças atômicas? O
problema pode parecer bizarro e menos importante que assuntos mais
populares como o famoso bóson de Higgs ou o big bang, mas, se for
resolvido, pode levar à solução de muitos outros problemas atualmente
intratáveis da física e da cosmologia. Quem leva um tombo imagina que a
força da gravidade é poderosa, mas basta um ímã para atrair um clipe
metálico, vencendo a força da gravidade de todo o planeta.
Curiosamente, Lisa teve o seu encontro traumático com a gravidade
numa desastrada aventura de alpinismo, que pratica sempre que tem folga.
Despencou de uma montanha e acordou num helicóptero, voando às pressas
para o hospital, com o calcanhar quase destruído e escoriações
generalizadas. Ela foi acidentalmente atraída pela gravidade, quando
escalava uma rocha no Parque Nacional de Yosemite.
A pancada gravitacional teve sua compensação, como no caso de Newton,
que teria sido inspirado pela queda gravitacional de uma maçã na sua
cabeça. Durante vários meses, presa a uma cama com a perna engessada,
rascunhou o Warped Passages e pôde refletir ironicamente sobre a
força da gravidade, que considera ser tão fraca. Se a força da
gravidade fosse um pouco mais forte, o tombo de Yosemite resultaria num
bonito epitáfio: aqui jaz a jovem Lisa Randall, a física teórica mais
citada durante cinco anos, aquela para quem o inglês Stephen Hawking
guarda o lugar na mesa enquanto ela vai ao pódio proferir suas
esotéricas palestras teóricas, sobre dimensões adicionais ocultas do
nosso Universo.
Warped Passages não é uma obra de exploração dos mundos com
mais dimensões, mas sim uma que usa o recurso de uma dimensão adicional
oculta para explicar a debilidade da força gravitacional. Não espere
encontrar especulações sobre como poderiam ser os seres grotescos ou
formidáveis de uma dimensão onde a força da gravidade é tão poderosa.
Mas ao longo do livro vão aparecer coisas espantosamente exóticas como
as “branas”, o nome genérico da nossa popular membrana, que é uma
entidade matemática de três dimensões, como o couro de um tambor. Uma
membrana clássica é um caso particular de brana com apenas duas
dimensões, mas teoricamente poderia ter mais dimensões. Quando essa
brana tridimensional ressoa, ela obedece a equações matemáticas da mesma
forma que uma corda de violino ou um batuque do tambor.
A totalidade do Universo é
uma coisa chamada “bulk” (o volume) ou “espaço de imersão”, com muitas
dimensões. Dentro dele podem existir várias branas-mundos, também de
dimensões variadas, mas sempre com menos dimensões que o “bulk”. Segundo
a tese de Lisa, vivemos numa brana privilegiada (do nosso ponto de
vista, claro), com três dimensões espaciais e o espaço-tempo. Mas, por
algum acidente cósmico ou por força de alguma lei desconhecida, a
gravidade, que faz maçãs e alpinistas despencarem, não mora na nossa
brana. As branas que ela afeta estão quase amontoadas em outra, batizada
de brana-Planck, onde ela reina absoluta e com potência plena.
Quando Randall e seu colega coautor Raman Sundrum fizeram os
cálculos e equações, em 1999, descobriram que o caminho ou o tecido do
espaço-tempo entre as branas contidas no “bulk”, o nosso Universo, teria
de ser fortemente torcido. Quer dizer, a força da gravidade (ou os
grávitons, suas partículas portadoras) tinha de vazar da brana-Planck e
se retorcer até a nossa brana, a que contém todas as nossas galáxias
visíveis. Por essa razão, a gravidade chega aqui tão fraca, teoriza a
pesquisadora americana. Na brana onde ela se origina, é tão forte como o
eletromagnetismo e as forças atômicas – se essas forças existirem lá.
Pode parecer coisa de ficção científica, mas os cientistas do Cern, o
Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, levaram a tese de Lisa a sério, e
estão preparando experimentos no LHC, o grande colisor de prótons, para
testar a teoria. Quando o LHC estiver operando a todo vapor, existe a
possibilidade de aparecerem nos detectores os rastros de uma partícula
viajante de outra dimensão. A partícula KK (Kaluza-Klein), como seria
apelidado esse viajante, no entanto, é muito furtiva. Os físicos de
partículas vão ter de se contentar em ver apenas os rastros deixados
pelos viajantes da outra dimensão.
O grande colisor do Cern é como uma superpista onde dois feixes de
prótons, acelerados em direções opostas, colidem numa área cheia de
detectores. A colisão quebra os prótons e, além dos cacos, gera energias
suficientes para criar novas partículas, segundo a fórmula E = mc2.
Como as energias são muito altas, aparecerão partículas muito pesadas e
instáveis, que não existem livres na natureza.
Uma delas pode ser a Kaluza-Klein, segundo espera Randall. Essa
entidade na verdade está prevista desde 1920, quando os físicos Theodor
Kaluza e Oskar Klein resolveram adicionar mais dimensões às equações
relativísticas de Einstein. Essa famosa equação de gravitação universal é
matematicamente escalável. Isso quer dizer que o físico pode incluir
nela tantas dimensões (além das tradicionais x, y, z) quanto quiser, sem
atrapalhar a consistência matemática e ortodoxia da equação. Foi esse
também o caminho que Lisa e Raman Sundrum tomaram. Partiram dessas
clássicas equações einsteinianas, incluindo mais uma dimensão que não
conseguimos ver ou detectar. A única concessão não ortodoxa, e bem
eclética, foi usar a ideia matemática da brana, um conceito que vem da
polêmica teoria de cordas. Pelos cálculos de Lisa e Sundrum, os “raios”
de gravidade (ou a rota dos grávitons, que seriam as partículas
portadoras da força de gravidade) não sairiam da sua brana de origem em
feixes paralelos, mas, por exigências matemáticas, teriam de avançar num
espaço-tempo espremido e torcido, onde perderiam força
exponencialmente. A partícula KK, se detectada no LHC, viria de um
universo onde a hierarquia das forças seria respeitada, sendo a
gravidade tão forte quanto as outras forças básicas da natureza cósmica.
Knocking on heaven’s door
é uma obra mais ambiciosa, se não em profundidade, pelo menos em
abrangência. Segundo a autora, são dois livros na verdade. “Um é a
origem do meu primeiro livro, combinada com uma atualização sobre onde
estamos agora e sobre a expectativa que temos”, especificamente sobre os
coelhos imprevistos que podem sair do chapéu mágico dos dados revelados
pelo LHC nos próximos anos. Apesar de ser física teórica de formação,
Lisa mergulhou nos detalhes técnicos de engenharia dessa monumental
máquina – a maior já construída no planeta – para explicar como ela vai
funcionar e o que poderia se esperar dela. Os problemas técnicos e
eletrônicos não são apenas detalhes. Afinal, sua teoria do viajante de
outra dimensão vai ser testada no LHC e ela quer saber todos os detalhes
de como isso vai ser feito.
De fato, os cientistas do LHC, além da teoria geral, devem dominar a
tecnologia eletrônica dos detectores que vão registrar os rastros das
partículas resultantes das colisões de prótons no acelerador. Os
sensores do LHC são tão sensíveis que os físicos tiveram de adicionar
aos softwares de registro coisas como o nível da água no Lago Genebra,
que fica perto do colisor e pode alterar as leituras embaixo da terra.
No LHC, a fronteira entre físicos teóricos e experimentais está
embaralhada e não há lugar para especializações estanques. Nos
primórdios da física de partículas, esses sensores, além de toscos,
deixavam rastros visíveis ao olho do pesquisador. Por exemplo, usavam-se
filmes fotográficos onde as partículas deixavam um rastro por onde
passavam e o enxame de outras partículas quando havia desintegração ou
choque. Mas as partículas que o LHC busca são muito ariscas. Elas
raramente interagem visualmente com o material do sensor. Bizarramente,
muitas das medidas que vão ser feitas miram em partículas que
simplesmente desaparecem. Mas sabendo a energia e a trajetória da
partícula original, os cientistas podem calcular a diferença de energia
que desapareceu. Isso quer dizer que foi formada uma partícula que não
interage com as formas de matéria dos sensores e das forças conhecidas
ou que simplesmente fugiu para outra dimensão.
Para quem tiver a perseverança de atravessar esse capítulo – que a
própria autora sugere pular -, a obra apresenta um sintético balanço do
estado atual dos conhecimentos científicos sobre a matéria. Em resumo,
estamos praticamente onde estávamos na década de 1970, quando foi
consolidado o chamado “modelo-padrão”, uma tabela que reúne de forma
organizada todas as forças e partículas conhecidas, com a notável
exceção da força da gravidade.
O LHC, essa poderosa máquina europeia, vai provocar colisões com as
energias existentes no universo na idade de apenas alguns trilionésimos
de segundo após o big bang. Nos destroços dessas colisões, os físicos
esperam achar sinais de novas partículas que não só revelem o bóson de
Higgs, a partícula que dá massa a todas as outras, mas também ampliem o
modelo-padrão. E como surgiu esse milagroso bóson de Higgs, também
apelidado de “partícula Deus”?
Nesses trilionésimos de
segundo após o big bang, o universo se expandiu, esfriou e mudou de
fase, “como a transição de fase que acontece quando a água líquida em
ebulição passa à fase de vapor”. Para os adeptos do materialismo
dialético, é a famosa transição de saltos quantitativos para um salto
qualitativo hegeliano. Nessa nova fase do universo em expansão, aparece
um campo qualitativamente novo, o campo de Higgs. As partículas que
interagem com ele ganham massa, assim como o elétron ganha carga
elétrica do campo eletromagnético. O fóton não interage com o campo de
Higgs e, portanto, não tem massa e pode viajar na velocidade da luz, sem
sofrer “atrito” com esse campo milagroso.
A parte do livro em que Lisa filosofa sobre ciência, simetria, beleza
e verdade não é diletantismo poético, e sim uma prática de metodologia.
Desde o surgimento da mecânica quântica, no começo do século passado,
muitos cientistas teóricos foram tentados a ver a “elegância” de uma
equação matemática como prova da sua verdade. Hoje em dia, a teoria de
cordas é essencialmente uma formulação matemática abstrata e bonita, que
não tem como ser provada na prática. A teoria de cordas e sua rival, a
da gravitação quântica, são teorias chamadas de “top-botton” (de cima
para baixo), nas quais os elementos primordiais são definidos e depois
se deduzem as escalas mais baixas. Lisa é adepta de abordagens
“botton-top” (de baixo para cima). Ela parte da nossa realidade
conhecida e sobe as escalas de energia para tentar chegar até o topo,
numa suposta teoria final que explique tudo e una a teoria da
relatividade com a mecânica quântica.
Mas, enquanto isso, ela lida com o conceito de “teoria efetiva” que
vale numa determinada “escala”. Assim ela afasta, provisoriamente, o
espinhoso problema da unificação da teoria da relatividade com a
mecânica quântica, coisa em que Albert Einstein se empenhou sem sucesso
até o fim da vida.
Há também um capítulo que trata especificamente da ideia de simetria.
Mas o conceito é mais amplo do que o da beleza simétrica de borboletas,
faces humanas ou da pintura e fotografia em geral. Na física, a
simetria inclui também a simetria de forças e equações. A quebra de
simetria, muito ao gosto da pintura japonesa, como observa Lisa, tem
consequências fundamentais para as leis físicas. Quando a natureza
exclui uma opção simétrica, coisas espantosas acontecem. O fenômeno
físico mais famoso, que também vai ser testado no LHC, é o aparecimento
de um campo de forças assimétrico para o bóson de Higgs, que, como já
foi dito, confere massa a todas as partículas, da mesma maneira que um
campo elétrico confere carga elétrica a um elétron. Outro fenômeno que
está sendo estudado no LHC envolve a quebra de simetria entre a
quantidade de matéria e antimatéria logo após o big bang. Não fosse a
natureza favorecer a matéria comum, por alguma razão ainda não
totalmente esclarecida, matéria e antimatéria teriam se aniquilado ao
longo do tempo e só restaria a energia pura no universo. Portanto,
estamos aqui estudando o big bang no LHC porque a natureza violou uma
simetria básica. Se os filósofos gregos imaginavam que beleza, simetria e
verdade eram a mesma coisa, erraram redondamente. Ou melhor,
esfericamente, nessa nova era de coisas multidimensionais.
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Reportagem Por Flávio de Carvalho Serpa, na Retrato do Brasil
Fonte:http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/ateia-ela-quer-bater-na-porta-do-ceu-2/
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