Antonio Luiz M. C. Costa*
O historiador Shlomo Sand mostra como a distorção da história judaica
pelo sionismo criou uma mitologia que dificulta
a paz entre Israel e os
palestinos
Em época de exacerbação de paixões e
de tendências racistas em Israel – haja vista os protestos de rua contra
o casamento de uma judia com um árabe, pouco depois do fim da última
guerra em Gaza – as obras de Shlomo Sand, historiador da Universidade de
Tel-Aviv, ajudam muito a entender o que se passa.A Invenção do Povo Judeu (Benvirá, R$ 54,90, 576 págs, R$ 38,43 em e-book) e A Invenção da Terra de Israel (Benvirá, R$ 376 págs, R$ 47,50, R$ 33,25 em e-book) fornecem tanto um quadro realista da evolução da comunidade judaica desde a Antiguidade quanto uma análise da distorção dessa história pelo sionismo e de como isso resultou em uma peculiar mitologia nacional que complica terrivelmente a busca de uma saída para os problemas da região.
Segundo uma leitura superficial que pode ser encontrada em comentários na Internet, Sand teria afirmado ou provado que Israel é uma nação inventada e portanto uma espécie de fraude. Não é bem isso: o povo judeu foi inventado como nação no mesmo sentido que todas as outras nações o foram e mais ou menos no mesmo período (século XIX) em que foi igualmente inventada a maioria das nações europeias e americanas, embora umas poucas tenham uma história mais antiga (não mais que o século XVII) ou mais recente.
É preciso entender, antes de mais nada, o que é propriamente uma nação: uma coletividade de cidadãos com a consciência de deter um patrimônio cultural e territorial comum sobre o qual têm direitos iguais em certa medida e que detém ou reivindica sua soberania como povo. Não existiram nações, no sentido próprio, na Antiguidade ou Idade Média, pois os Estados pertenciam a um soberano ou uma pequena elite. Só a nobreza e a administração real se identificavam com a cultura estatal e um destino comum. Os camponeses iletrados que constituíam as grandes maiorias tinham acesso apenas a suas culturas locais e não se identificavam com a elite, nem com as comunidades camponesas com as quais não tinham comunicação e muitas vezes sequer falavam a mesma língua. Apenas as cidades-estados tinham algumas das características hoje identificadas como “nacionais”, mas com uma abrangência muito menor. Jamais existiu uma nação hebraica, como também não uma nação grega, gaulesa, portuguesa, espanhola ou germânica (para não falar de estadunidense ou brasileira) antes dos processos revolucionários da Idade Moderna. O servo de um senhor feudal alemão do Reno não era parte da mesma nação de um camponês da Baviera, do Brandemburgo ou de qualquer outra parte do Sacro Império Romano em nenhum sentido relevante e lhe seria indiferente se os acasos das guerras ou dos casamentos reais o transformassem em súdito do rei da França.
Dito isso, as nações não surgiram todas da mesma forma. De forma geral, as nações da Europa Ocidental foram construídas a partir de instituições civis liberais e iluministas e patrimônios culturais aos quais se podia aderir voluntariamente, independentemente de genealogia e religião. Já na maior parte da Europa Oriental, o nacionalismo surgiu como reação à expansão militar e comercial dos impérios britânico e napoleônico em países onde as instituições civis ainda não estavam desenvolvidas e tomou um caráter reacionário e irracional. A identidade nacional foi erguida sobre a mística do sangue e da terra, que rejeita e exclui as minorias em nome da preservação de uma essência etnobiológica (alemães como representantes de uma “raça ariana”, por exemplo) ou etnorreligiosa (eslava e ortodoxa russa, por exemplo).
Essa distinção entre ideologias nacionais político-cívicas e etno-orgânicas não é absoluta, ambas as tendências existiram na maioria dos países e a vitória de uma ou outra não foi garantida de antemão. Mas na Rússia czarista, como depois na Alemanha nazista (e mais tarde entre os nacionalismos árabes surgidos da reação pós-colonial), os judeus não couberam na concepção romântica e “orgânica” de nacionalidade, mesmo se tiveram um papel fundamental na formação da própria cultura nacional e estavam dispostos a ser cidadãos leais e a matar e morrer por suas pátrias. A resposta foi “inventar” sua própria nação na forma do sionismo. Soou como uma ideia excêntrica até o início do século XX, quando os judeus refugiados de perseguições encontravam refúgio na Europa Ocidental e nas Américas, mas ganhou força quando também estes países fecharam suas portas nos anos 1920.
Além da questão territorial, a construção da nação judaica tinha uma dificuldade especial: a falta de uma verdadeira cultura laica comum. Havia uma cultura literária e popular iídiche na Europa Oriental, onde vivia a maioria dos judeus do mundo antes das guerras mundiais, mas ela nada tinha em comum, além da religião, com as culturas judaicas da Europa Ocidental, da África do Norte, do Oriente Médio, do Cáucaso, do Iêmen ou da Etiópia. E a identificação se tornava ainda mais problemática na medida que grande parte dos identificados como judeus não praticavam a religião, ou mesmo eram agnósticos ou ateus .
Para unificar as comunidades judaicas numa mesma nação, o sionismo precisou aderir ao mesmo princípio etno-orgânico dos seus piores algozes antissemitas, enfatizando uma imaginária origem biológica comum, à parte de todos os outros povos. E para isso, falsificou drasticamente a história do judaísmo, como o autor se dedica a provar na maior parte dessas páginas. Não só são puramente lendárias as vidas de Abraão, Moisés, Davi e Salomão e a própria ideia de um reino hebreu unificado e monoteísta antes do exílio babilônico como, mais crucialmente, é um mito a ideia de que todos ou a maioria dos judeus do mundo descendem dos habitantes do antigo reino de Judá, forçados a se espalhar pelo mundo após o esmagamento de sua revolta pelos romanos e a destruição do Segundo Templo em 70 d.C.
Como mostra Sand de forma convincente, já bem antes dessa revolta havia judeus nas cidades de todo o Império Romano (notadamente em Roma e Alexandria), chegando a constituir 7% a 8% de toda a sua população, número muito maior do que havia na Judeia. Também eram numerosos no Império Parta (principalmente Babilônia e Mesopotâmia) e na Armênia. Houve mesmo, entre 30 e 116 d.C., um reino judeu independente em Adiabena (no atual Curdistão, em torno de Irbil) sem nenhuma relação com o reino judeu herodiano com o qual chegou a coexistir e outro ainda mais importante em Himiar (no atual Iêmen), que promoveu ativamente a conversão de súditos do último quarto do século IV até o primeiro quarto do século VI.
Na quase totalidade, esses judeus espalhados pelo mundo antigo não eram resultado de migração e sim de conversão, pois o judaísmo era então uma religião missionária que buscava prosélitos ativamente entre os pagãos. No tempo dos reis macabeus, chegou a promover a conversão forçada de povos vizinhos, como os idumeus e itureus.
Além disso, a repressão romana de 70 d.C. de forma alguma significou a escravização ou expulsão em massa dos judeus. A maioria da população da Judeia continuou judia por séculos, como mostram revoltas judaicas posteriores e a continuação da construção de sinagogas, da atividade rabínica e da escrita do Talmude na região. Depois da revolta de Bar Kochba (132-136) os judeus foram temporariamente proibidos de viver em Jerusalém, rebatizada como Élia Capitolina (e a província da Judeia foi rebatizada como Síria Palestina), mas isso não afetou as outras comunidades da província.
Os descendentes dos judeus que viviam na “Terra Santa” nos tempos dos macabeus e romanos são, essencialmente, o povo hoje chamado de palestino, fluxos genéticos posteriores à parte. Os que hoje se chamam judeus são essencialmente descendentes de convertidos da Europa, África e Ásia e pouco ou nada têm a ver, geneticamente, com os hebreus do Antigo Testamento. Pelo menos dois Estados chegaram a ter governantes judeus e promover ativamente a conversão de súditos durante a Alta Idade Média: o reino berbere da rainha Kahina, que tentou resistir aos conquistadores muçulmanos na atual Argélia (e cujos descendentes podem ter acompanhado os árabes na conquista da Península Ibérica) e o império Khazar que governou a atual Ucrânia, sul da Rússia e Cáucaso até o século XI e se cujos governantes se converteram ao judaísmo no século VIII. Muitos pesquisadores, inclusive Sand, acreditam que a maioria dos judeus da Europa Oriental descende dos khazares e de seus súditos convertidos e não dos judeus alemães do Reno, como se acreditou por muito tempo.
A educação e mesmo a pesquisa histórica em Israel evitam cuidadosamente essas questões, nota o autor, pois colocariam em perigo a história oficial. A arqueologia israelense, que até os anos 1950 se esforçava por comprovar a veracidade literal dos mitos bíblicos, jogou a toalha ante a acumulação de evidências em contrário – hoje se limita a ignorar e apagar as evidências do passado palestino recente. Exemplo citado por Sand é a vila palestina de Al-Sheik Muwannis que existiu onde hoje é o campus da Universidade de Tel-Aviv onde trabalha. Nenhum estudo foi feito a seu respeito e o único remanescente, uma construção palestina conhecida como “Casa Verde”, é usada como salão de banquete e restaurante durante conferências acadêmicas e eventos para angariar fundos. Hoje é a genética humana, ciência ainda relativamente incipiente e vulnerável à manipulação e ao uso de evidências seletivas, que é chamada em socorro do mito da unidade e especificidade do povo judeu.
O maior problema, naturalmente, não é o epistemológico, mas o político. A história falsificada do povo e da terra servem de justificativa para um regime peculiar que o autor não consegue identificar como democracia – nem sequer no sentido das democracias étnicas “incompletas” ou “imperfeitas”, dos países bálticos e outros da Europa Oriental que restringem a cidadania em função da origem étnica. Prefere chamar Israel uma “etnocracia” dentro das fronteiras anteriores a 1967 e de um “típico apartheid” nos territórios ocupados.
Enquanto os palestinos autóctones remanescentes da expulsão de 1948 são cidadãos de segunda classe dentro das antigas fronteiras (privados de acesso a terra e de outros direitos, a pretexto de serem excluídos do serviço militar) e nem isso fora delas, Israel se reivindica um Estado não só dos judeus que nele habitam, como dos judeus de todo o mundo, que podem obter a nacionalidade a qualquer momento com uma simples visita.
Impossível de ser verificada por teste genético ou pela religião, a condição de “judeu” é definida de modo semirreligioso e semirracial pelas condições alternativas de ser filho de mãe judia (mesmo que ateu, desde que não tenha se convertido a outra religião) ou ter-se convertido ao judaísmo segundo as rígidas exigências do rabinato ortodoxo – o que deixa de fora, por exemplo, filhos de pais judeus em casamentos mistos, tratados como de nacionalidade estrangeira. O caráter restritivo e artificial da nacionalidade também se mostra na inexistência de casamento civil (o que torna impossíveis os casamentos mistos, a menos que um dos noivos se converta) e de feriados que não sejam judeus e religiosos.
A proposta política de Shlomo Sand é abrir mão dos territórios ocupados, Gaza e Cisjordânia (incluída Jerusalém Oriental) e do caráter de “Estado judeu” para Israel dentro da fronteira de 1967. Israel deveria transformar-se em uma democracia multicultural normal de maioria judia, que reconhece direitos civis e políticos plenos (e mesmo privilégios, como quotas e proteção de sua cultura específica) a suas minorias étnicas. Deve separar religião do Estado, adotar o casamento civil e abrir-se a imigrantes sem oferecer privilégios aos judeus e indenizar os palestinos expulsos e seus descendentes com terras ou dinheiro. Soa utópico, mas hoje o mesmo se pode dizer de qualquer outra das soluções que foram propostas: dois Estados, Estado único, expulsão dos árabes, expulsão dos judeus ou mesmo a manutenção do status quo, que a longo prazo talvez tenha se tornado a mais utópica de todas.
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* Antonio Luiz M. C. Costa é editor de Internacional de CartaCapital
Fonte: Carta Capital online, acesso 13/09/2014
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