Luis Fernando Veríssimo*
“Liberal” é uma palavra traiçoeira. É o adjetivo com que os
conservadores americanos xingam a esquerda, ou o que julgam ser a
esquerda, no seu país, mas no resto do mundo é o oposto de conservador. A
confusão é antiga. Em inglês “liberal” já quis dizer licencioso, ou
libertino. Shakespeare descreve alguém como sendo um “liberal villaine”,
um vilão liberal, querendo dizer que é um canalha completo. Em todo o
mundo, mesmo onde se fala inglês, “neoliberalismo” significa uma nova
versão do liberalismo econômico do século 19. Mas o liberalismo de então
se opunha ao mercantilismo e ao poder da elite agrária e do
conservadorismo e tinha um sentido progressista. Na sua versão atual, se
opõe ao dirigismo do Estado e ao controle da empresa livre e, na sua
aversão a qualquer ideia distributivista ou solidarista que atrapalhe os
negócios, recupera o sentido shakespeariano da palavra. Mas, para
aumentar ainda mais a confusão, muitos dos neoconservadores americanos
de hoje têm esse nome porque no passado foram “liberais” progressistas,
alguns até trotskistas.
O único regime econômico viável para um neoliberal seria o liberal no mau sentido, na opinião de um liberal no outro sentido. Com o suposto ocaso das ideologias e o fracasso do socialismo real e do capitalismo de Estado, não haveria mais alternativas para a moral do mercado dominar as nossas vidas. Democracia formal não garante democracia econômica, como o Brasil não nos cansa de ensinar, nem a liberdade de lucrar sem controle ou remorso é a primeira condição para uma democracia funcionar, como insistem os neoliberais. Fala-se no fim das utopias, mas sobreviveu o utopismo mais irracional de todos, segundo o qual pela ganância e o egoísmo exaltados se pode chegar a qualquer ideia de comunidade e justiça.
O neoliberalismo só acredita na sua doutrina porque a mantém apesar de todas as evidências de que também não deu certo, e nos trouxe para esta crise, em que um sistema financeiro hipertrofiado e desregulado ameaça arrastar todo o mundo para o precipício.
LEITURAS
Na Renascença ninguém disse “Oba, estamos na Renascença!”. Vivemos para a frente, mas entendemos para trás e só sabemos o que nos aconteceu “lendo” o passado. E às vezes lendo errado. A gente fala nos loucos anos 20 quando várias liberdades novas começaram a ser experimentadas no rescaldo da I Guerra Mundial e esquece que foi a era que gerou o fascismo e outras formas liberticidas. O espírito da Era do Jazz foi um espírito totalitário: prevaleceram não os passos do Charleston, mas os passos de ganso. Os plácidos e sem graça anos 50 não foram tão aborrecidos assim. Foram os anos do existencialismo, de revoluções na arte e na literatura, do nascimento do rockenrol... Nos fabulosos anos 60 e 70, enquanto as drogas, o sexo e a comunhão dos jovens pela paz e contra tudo o que era velho tomavam as ruas, o conservadorismo se entrincheirava no poder (Nixon nos Estados Unidos, os generais aqui, Margareth Thatcher e Ronald Reagan já no horizonte) e começava sua própria revolução careta. Quando fizerem a leitura da época atual, qual será a conclusão errada? Que o mundo se tornou mesmo uma aldeia global unida pela técnica ou que se dividiu ainda mais entre ricos e pobres e entre inteligência artificial e fundamentalismos, misticismo e outras formas de atraso? E no Brasil: o que é mesmo que está nos acontecendo?
O único regime econômico viável para um neoliberal seria o liberal no mau sentido, na opinião de um liberal no outro sentido. Com o suposto ocaso das ideologias e o fracasso do socialismo real e do capitalismo de Estado, não haveria mais alternativas para a moral do mercado dominar as nossas vidas. Democracia formal não garante democracia econômica, como o Brasil não nos cansa de ensinar, nem a liberdade de lucrar sem controle ou remorso é a primeira condição para uma democracia funcionar, como insistem os neoliberais. Fala-se no fim das utopias, mas sobreviveu o utopismo mais irracional de todos, segundo o qual pela ganância e o egoísmo exaltados se pode chegar a qualquer ideia de comunidade e justiça.
O neoliberalismo só acredita na sua doutrina porque a mantém apesar de todas as evidências de que também não deu certo, e nos trouxe para esta crise, em que um sistema financeiro hipertrofiado e desregulado ameaça arrastar todo o mundo para o precipício.
LEITURAS
Na Renascença ninguém disse “Oba, estamos na Renascença!”. Vivemos para a frente, mas entendemos para trás e só sabemos o que nos aconteceu “lendo” o passado. E às vezes lendo errado. A gente fala nos loucos anos 20 quando várias liberdades novas começaram a ser experimentadas no rescaldo da I Guerra Mundial e esquece que foi a era que gerou o fascismo e outras formas liberticidas. O espírito da Era do Jazz foi um espírito totalitário: prevaleceram não os passos do Charleston, mas os passos de ganso. Os plácidos e sem graça anos 50 não foram tão aborrecidos assim. Foram os anos do existencialismo, de revoluções na arte e na literatura, do nascimento do rockenrol... Nos fabulosos anos 60 e 70, enquanto as drogas, o sexo e a comunhão dos jovens pela paz e contra tudo o que era velho tomavam as ruas, o conservadorismo se entrincheirava no poder (Nixon nos Estados Unidos, os generais aqui, Margareth Thatcher e Ronald Reagan já no horizonte) e começava sua própria revolução careta. Quando fizerem a leitura da época atual, qual será a conclusão errada? Que o mundo se tornou mesmo uma aldeia global unida pela técnica ou que se dividiu ainda mais entre ricos e pobres e entre inteligência artificial e fundamentalismos, misticismo e outras formas de atraso? E no Brasil: o que é mesmo que está nos acontecendo?
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* Jornalista. Escritor. Cronista da ZH
Fonte: ZH online, 28/09/2014
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