Marcos Coimbra*
O bonito da democracia e da liberdade de imprensa é você poder ler essas coisas nos mesmos dias em que outras, bem diferentes, são publicadas.
Nos últimos dias, os titãs voltaram a duelar. Fernando Henrique e Lula se enfrentaram de novo na arena verbal, cada um buscando modos mais criativos para falar do outro. Seus fiéis escudeiros, na política e na mídia, entraram logo a seguir em campo, uns para defender o chefe, outros para ir mais fundo no ataque ao outro.
O ex-presidente deu a largada falando de “subperonismo”. Não era, a rigor, um termo central no já famoso texto que publicou, intitulado Para onde vamos?, cujo objetivo era analisar a situação do país e avaliar o que o futuro nos reserva. Nele, embora tenha ficado como a mais memorável, a palavra havia sido usada apenas uma vez.
Na verdade, ela foi empregada com intuito apenas depreciativo. Dizer que o lulismo é um subperonismo implica em negar ao nosso presidente sequer a capacidade de nomear alguma coisa. No máximo, Lula seria a encarnação diminuída de um fenômeno pelo qual os argentinos passaram há quase 60 anos. As diferenças entre os dois países, a que existe entre os anos 1950 e agora, as particularidades de Lula e Perón, não contam. O que interessa é a oportunidade de alfinetar o presidente.
O tal subperonismo teria como fundamento o tripé “partidos fracos, sindicatos fortes e fundos de pensão convergindo com os interesses do partido no governo e para eles atraindo sócios privados privilegiados”. O conceito tem certa semelhança com outro sugerido pelo Fernando Henrique sociólogo dos anos 1970, o de “anéis burocráticos”, instâncias de articulação clientelista entre a tecnocracia e o empresariado que vicejaram no populismo e continuaram no período militar. Na nova encarnação, teriam ganhado a companhia do petismo e do assistencialismo de massa.
Encurtando: para Fernando Henrique, Lula dá certo porque obteve os “aplausos do povo”, mas submete o país a um poder burocrático-corporativo com “o DNA do autoritarismo popular” (seja lá o que isso for).
A resposta não demorou, embora o presidente, para variar, estivesse no exterior, ocupado com coisas mais importantes (tinha ido ao Reino Unido ganhar um novo prêmio). Ele e o governo já haviam sido defendidos no Congresso durante a semana, mas faltava ouvi-lo.
Reagindo ao noticiário sobre a decisão tucana de recrutar e treinar “multiplicadores” para atuar no processo eleitoral do ano que vem no Nordeste, Lula foi logo batendo abaixo da medalhinha, como se diz no futebol: “É prática de Hitler”. Como chegou à conclusão, não se sabe.
Quando lhe pediram a opinião sobre o artigo de FHC, foi cruel: “Um intelectual ficar assistindo um a operário que tem o quarto ano primário ganhar tudo que ele imaginava que pudesse ganhar e não ganhou por incompetência é muito difícil”. Bateu, levou.
“Subperonista”, “autoritário”, “nazista”, “incompetente”, “invejoso”, é nesse nível que dialogam nossas lideranças mais respeitadas. Tirem as crianças da sala.
O bonito da democracia e da liberdade de imprensa é você poder ler essas coisas nos mesmos dias em que outras, bem diferentes, são publicadas. Algumas que fazem pensar sobre essas trocas de amabilidades e sobre o que de verdadeiramente importante está acontecendo no Brasil.
Analisando o peso da cesta básica no salário mínimo em um período de 15 anos, de 1995 ao presente, o Dieese descobriu duas coisas. De um lado, que ele nunca foi menor que atualmente, quando a compra da cesta compromete apenas 45% da renda líquida do trabalhador que tem esse nível de remuneração. Mais da metade do que ganham essas pessoas pode, portanto, ser destinado a outras despesas: material de construção, bens de consumo durável, vestuário, medicamentos. Isso decorre da política de reajustes do mínimo acima da inflação e se intensificou com a desaceleração dos preços dos produtos agrícolas nos dois últimos anos.
A segunda constatação é também interessante. A tendência de queda na participação da cesta básica nos salários mais baixos vem desde o governo tucano, sem grandes oscilações nos 15 anos considerados. Entre 1995 e o primeiro ano do governo Lula, em 2003, a cesta básica foi de 89% para 64% do mínimo. De lá, veio declinando até chegar aos 45% de hoje. Caiu 25 pontos no período FHC e 21% no de Lula.
Falem o que falarem, inventem os nomes que quiserem, há muita coisa parecida no que fazem Lula e os tucanos quando estão no governo. Ainda bem.
*Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
Fonte: Correio Braziliense, 11/11/2009
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