segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Quando estivermos off-line.


O Memorial ergue-se sem pompa e esquecido durante o ano. Construído entre a parede da Capela Antiga do Convento e a horta-jardim, pouco cuidada, onde passeiam dois gansos que grasnam estridentes. Irritam. Parecem vigilantes. Há ainda a rua onde um e outro carro passam acelerados e cobrindo de barulho o silêncio que pede aqueles que ali jazem. Os pés de abacates, também históricos e envelhecidos, mostram os pequenos frutos que já crescem, entre as folhas amareladas e verdes. Também estão morrendo...
Ali, nas gavetas de cimento estão os corpos que um dia rezaram, odiaram, perdoaram,fizeram profissão de fé, hoje mais do que esquecidos. Alguns lembrados em relatos em livros e ainda outros como rodapés em artigos. Tudo é silêncio. As pessoas , na maioria religiosos, chegam: braços cruzados e olhares atentos. Há risos quando se encontram. Tudo muito rápido, porque o momento é a memória daqueles que já passearam por esse mundão de Deus do qual somos herdeiros. Há visitantes que param diante de uma lápide de mármore e comentam em voz baixa, talvez, alguns fatos que relembram aquele que ali jaz. Um memorial de homens. Há algo mais triste?
A reza começa e a música a céu aberto perde-se, como perdidos ficam, aqueles que foram... Não há poesia e nem dor. Sem a poesia a razão prevalece e a lágrima não vem para abrir o coração. Nisso nomes masculinos são ouvidos, lançados pela assembleia que reza. Eis a morte que se torna vida. Tal como diz Rubem Alves: “os meus mortes ressuscitam quando me lembro deles”. Parece haver no ar um clima de comunhão. Claro, sem emoção. Tudo muito morto como é a morte que dá sinais naqueles que lembram a morte do outro... Não há dor. A morte é feminina e estamos entre mortos masculinos.
Mesmo nessas gavetas frias há um dia no ano que são lembrados. E nós, hoje, que vivemos com contas armazenadas na Internet, o que vai acontecer quando ficarmos offline para sempre? O que será de nossas fotos no Flickr, nossas mensagens no e-mail ou nossos contatos no Orkut? Nossos longos artigos de doutores e especialistas? Será tudo deletado? Alguém irá recolher alguns dados quando esse momento inevitável chegar?
Termino, porque o silêncio é pesado.
Brota uma lágrima que não sei da onde nasceu.
Não é o fim.
Lembro uma mulher que amou, poetisa e escritora e diante da morte do amado escreveu assim:



“Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um pouco.

Mas agora que ela me dilacerou a vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu.

Dentro de mim um quebra-cabeça, e nele o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui.
(Lya Luft. O lado fatal. Rocco,1988, pg.45)

Descanse em paz. Amém.

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