terça-feira, 3 de novembro de 2009

Supercapitalismo: a transformação do dia-a-dia




Já fizemos aqui uma nota sobre um livro anterior de Robert Reich, “O futuro do sucesso”, de 2001, que analisa dominantemente as relações do mundo do trabalho. O presente estudo, “Supercapitalism”, é mais ambicioso, ao focar o conjunto das nossas relações econômicas, sociais e culturais, mas parte do mesmo capital de conhecimento que lhe foi dado nos anos que passou tentando implementar uma política mais digna nas relações econômicas, no quadro do governo Clinton. Reich sente na ponta dos dedos como se dão as estruturas de poder realmente existentes no que chamou de Supercapitalismo.
Este supercapitalismo, na realidade, é simplesmente o vale-tudo econômico e financeiro que se instalou no quadro do que temos chamado de globalização, e cuja lógica interna o autor destrincha de maneira impressionantemente coerente. Não é aqui um comentário simpático sobre um livro simpático: Reich nos traz realmente uma compreensão das dinâmicas, com inúmeros exemplos práticos de empresas e comportamentos bem documentados, e o tipo de desafios que enfrentamos torna-se muito mais claro. Além do mais, Reich escreve de maneira excepcional: um comentarista do San Francisco Magazine escreveu sobre esta obra: “Reich faz parte de uma espécie muito exótica: um economista que sabe escrever”.

Reich parte dos bastidores: não vai culpar Margareth Thatcher, Ronald Reagan ou Milton Friedmann pelo fim dos Anos Dourados (1945-1975, que ele aliás qualifica de anos “não tão dourados”), e sim vai buscar as causas nas transformações tecnológicas, na globalização resultante, e no vale-tudo das guerras intercorporativas que de certa forma aniquilou as capacidades dos governos fazerem política econômica no sentido amplo. E o autor analisa extensamente a base política para este processo: o consumismo dos prósperos, que falam mal das truculências da Wal-Mart mas aproveitam os seus preços, e o interesse dos investidores que adoram o meio-ambiente mas compram ações da Exxon-Mobile porque rendem mais.

Gerou-se assim um esquizofrenia social, na medida em que como consumidores queremos o melhor negócio, como investidores o melhor retorno, enquanto como cidadãos queremos uma sociedade decente e sustentável. No centro da dinâmica, temos a apropriação dos políticos através do financiamento privado das campanhas, e a monopolização da agenda do congresso e do executivo pelos lobbies dos grandes grupos empresariais, com as suas gigantescas campanhas (a indústria farmacêutica contra a regulação dos medicamentos, da indústria da saúde contra a saúde pública etc.).

O mecanismo de mercado, que sobrevivia nos “Anos não tão dourados” mediante acordos relativamente equilibrados entre empresas, Estado e sindicatos, alimentando uma ampla classe média, já não nos protege. Wal-Mart (e outros tantos) esmagam os produtores ao usar o seu poder para reduzir os prêços na origem, e navegam na satisfação dos compradores e dos acionistas. Os jornais louvam. Os consumidores se lambuzam. Gera-se uma classe de rentistas prósperos e a correspondente concentração de renda. O meio-ambiente sofre e o consumismo leva a impasses planetários. Mas o baile continua.

O espaço político local de regulação desaparece. “Pittsburgh já abrigou as fábricas e operários que a Alcoa então precisava. Mas agora, esses tipos de bens podem ser encontrados em qualquer lugar, porque as cadeias globais de suprimentos da Alcoa os fornecem sem esforço nenhum. Executivos da empresa negociam rotineiramente com o mundo todo. Tudo o que a companhia precisa pode ser encontrado em Nova York, onde os executivos da Alcoa têm acesso imediato aos melhores bancos, advogados, consultores e profissionais de comunicação. Esse quadro de especialistas, junto com o time da Alcoa, implanta uma cadeia global de suprimentos e colocam no mercado os produtos e serviços da companhia de forma a satisfazer os investidores (representados por Wall Street) e os consumidores da Alcoa (representados pelo Wal-Mart e outras grandes redes varejistas) na sua luta diária para obter grandes ganhos”. (119)

Reich, por experiência adquirida, mas também por pesquisa, tem forte desconfiança de que os comportamentos irão mudar pela boa vontade das corporações. Inclusive, segundo ele, porque os investidores “não sabem ou não se importam”(176). O autor cosntata que “A maioria dos ‘fundos socialmente responsáveis’conta com a participação de praticamente todas as grandes empresas em uma típica carteira de fundo mútuo. Em 2004, trinta e três fundos socialmente responsáveis estavam ligados às ações do Wal-Mart, vinte e três ao Halliburton, quarenta à ExxonMobil, e quase todos à Microsoft, em sua tentativa de resistir ao controle de mercado. No início dos anos 2000, muitos possuíam ações da Enron, da WorldCom e da Adelphia, e nenhuma dessas empresas eram conhecidas por prestarem serviços públicos.”(177)

Malvadeza das corporações? Não, lógica do sistema. Permite remunerar bem os acionistas e oferece bons preços aos consumidores. Isto articula a poderosa minoria dos que concentram ações, e uma classe mais ampla de afortunados que têm capacidade de compra. E um CEO que não alimentar estes interesses perde o cargo. A solução não está (ou não apenas) na empresa ser decente, mas em haver leis que assegurem que esta decência seja respeitada, e não dependa da boa vontade passageira de um executivo. Inclusive, porque na dinâmica atual do mercado, quem incorrer em custos maiores por respeitar determinados valores sociais, vai perder mercado, e logo perder o emprego.

Reich tem aqui um surto de sinceridade: “Por muitos anos tenho pregado que responsabilidade social e lucro são conquistados no longo prazo. Isso porque uma empresa que respeita e valoriza seus funcionários, a comunidade e o meio ambiente certamente ganha o respeito e a gratidão dos funcionários, e de toda a comunidade - o que, eventualmente, ajuda o bottom line. Mas eu nunca consegui provar essa proposição, nem encontrar um estudo que a confirme.” (171)

As soluções, segundo Reich, não estão na recuperação da ética corporativa, mas no resgate da capacidade do Estado negociar os pactos necessários para uma sociedade mais equilibrada. Isto envolve, antes de tudo, tirar o dinheiro corporativo de dentro das campanhas eleitorais, o dinheiro do lobby do gabinete dos senadores e dos juizes, resgatando um equilíbrio que desapareceu, entre as nossas dimensões como consumidores, aplicadores financeiros, e cidadãos.

A perda da nossa dimensão cidadã leva à detorioração dos nossos interesses como sociedade, e exacerbação dos nossos interesses como indivíduos. “Se a maioria das pessoas sempre tem duas opiniões sobre o Supercapitalismo, porque então o lado dos consumidores-investidores sempre ganha? A resposta é que os mercados se tornaram extremamente eficientes em oferecer as melhores ofertas para os desej0

Fonte: Mercado Ético, 03/11/2009 - Reportagem de  LADSLAU DOWBOR

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