quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O fundamental

Antonio Delfim Netto*

Grupos não pequenos de estudiosos insistem em atribuir a crise a uma organização social misteriosa à qual dão o nome genérico de "capitalismo", codinome da organização da atividade econômica em torno dos "mercados", instituição que os homens "descobriram" para coordenar a atividade de consumir bens e serviços e, ao mesmo tempo, estimulá-los a produzir de forma relativamente eficiente e com maior liberdade individual.
É preciso reconhecer que:
1) os mercados são meros instrumentos alocativos que tentam compatibilizar os interesses dos indivíduos no seu duplo papel; 
2) obviamente, não há simetria de poder entre esses papéis; e
3) eles (os mercados) não podem funcionar (ou mesmo existir!) sem um Estado para regulá-los.
Essa economia de mercado não foi inventada. Há claras evidências de que os mercados existem desde a velha Mesopotâmia (500 anos antes de Cristo). Foi sendo "descoberta" pelos próprios homens na sua atividade prática de buscar instituições que lhes permitissem facilitar a sobrevivência material e a possibilidade de combiná-la com sua eterna busca de liberdade de iniciativa. Ela não é nem perfeita nem imortal. A grande esperança é que a ação do Estado que garante a sua funcionalidade, possa minorar seus defeitos com as políticas econômica (a flutuação) e social (a desigualdade).
A ideia que os mercados têm a capacidade de autocorrigir-se e que os resultados da distribuição de seus benefícios são "justos" ou "merecidos" - e que, portanto, dispensam a ação do Estado - é absurda. Tão absurda quanto a ideia que os problemas que estamos vivendo se devem apenas a eles, sem nenhuma cumplicidade do Estado.
Já passou da hora de os economistas livrarem-se de umas ingenuidades. A primeira é que Deus foi bom com eles deixando-lhes como objeto de estudo um mundo, cuja ordem poderia ser descoberta, como, por exemplo, o movimento dos astros. A segunda é o reconhecimento que, por mais importante que seja o papel do Estado, o poder incumbente está longe de ser onisciente e, logo, não precisa ser onipresente e, muito menos, pretender a onipotência!
A irresponsabilidade fiscal dos
Estados precisa ser superada


A história nos ensinou, e a experiência atual confirma, que o Estado precisa ser fiscalmente responsável! Não é preciso ser economista para entender tal "conta de padaria". A receita pública não pode ser, permanentemente, maior do que a despesa pública, não importa a "qualidade" ou a "necessidade" do gasto.
Se ele é imperioso e permanente, só há três formas de atendê-lo: 1) aumentando a eficiência do governo; 2) cortando despesa menos prioritária; ou 3) aumentando os impostos. É uma maldição aritmética desagradável que a relação dívida pública/PIB só possa ser estabilizada num nível cujo financiamento possa ser feito, permanentemente, com uma taxa de juros real menor do que a taxa de crescimento real do PIB.
Parece razoável concluir, portanto, que o que precisa ser superado é a irresponsabilidade fiscal dos Estados e a sua incompetência regulatória. Vivemos, basicamente, uma manifestação de Estados pouco cuidadosos fiscalmente e impotentes diante do poder econômico dos interesses financeiros. A crise de 2007/09, que se recusa a terminar, é a testemunha da tendência do setor financeiro de servir-se do setor real e de sua capacidade de apropriar-se do poder incumbente.
Os "indignados" sugerem trazer de volta ideias de cérebros peregrinos, que "inventaram" outros mecanismos de organização social. Os mesmos que rechearam de tragédias o século XX. É preciso insistir que, até agora, o mercado como instrumento alocativo relativamente eficiente não encontrou nenhum substituto, como mostram o fracasso soviético e o sucesso chinês.
A crise americana é menos grave do que a da Eurolândia, mas tem pouca probabilidade de terminar antes da eleição de novembro de 2012. E depois? Depois, valha-nos Deus se os intelectuais republicanos vencerem a batalha eleitoral! É uma pena. Os EUA têm tudo para sair mais depressa da crise. Faltam-lhes apenas uma liderança que reconstrua a confiança da sociedade.
Na Eurolândia, a questão é mais complicada. Ela tem, na verdade, quatro problemas:
1) um desalinhamento das moedas dentro do euro, que causa resultados assimétricos nos balanços de pagamentos;
2) um descontrole dos déficits públicos;
3) uma perspectiva de crise bancária; e
4) falta-lhe um Banco Central autônomo, que seja, de fato, o emprestador de última instância e possa organizar as dívidas dos países.
O jogo dialético civilizatório (apoiado no sufrágio universal) entre o mercado e a urna não é uma linha reta: pode sofrer graves e custosos desvios. O fato fundamental é que ele não resiste à irresponsabilidade fiscal. Quando essa leva as lideranças políticas à completa predominância do curto prazo sobre o longo, aproveitando-se de situações econômicas passageiras favoráveis para permanecer no poder, o mercado (isso é, a realidade fática) acaba cobrando o seu preço.
O Brasil pagou tal preço no passado. A presidente deve ser fortemente apoiada quando corta na carne o Executivo e pede moderação ao Legislativo, ao Judiciário e aos sindicatos. Nunca a solidez fiscal foi tão necessária para proteger-nos da crise mundial, que está longe de terminar. É por isso que a DRU deve ser aprovada.
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* Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Fonte: Valor Econômico on line, 29/11/2011
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A memória

Ruy Carlos Ostermann*
Olhar para dentro é como se pode lembrar. Não há outro jeito a não ser que se prefira certa pose, mão no queixo, braço distendido do outro lado, talvez balouçante, olhar no perfil da parede, pés estendidos. Mas é recomendável apenas lembrar, ter certeza do que foi mesmo que aconteceu e admitir que tudo isso pode voltar numa embalagem um pouco estranha como se já fosse tempo demais e nada pode ser restaurado e está caindo aos pedaços.

Este ano foi algumas vezes surpreendente. Praticamente me aposentei e me obriguei a fazer escolhas, o que sempre implica em se desfazer de muita coisa, mas sem arrependimentos, de preferência. É muito difícil escolher porque este ato implica em se desfazer de muitas coisas sem que se possa prestar a atenção devida a cada pedaço da gente que vai ficando para trás. Dói bastante, dá coceira no pescoço e na nuca, comprimem-se os pés com ou sem sapatos. Mas não há outro modo de lembrar senão desobstruir.
Homenagem é um acontecimento que atrai a memória e a coloca como uma reminiscência que vai para frente e para trás. E cada um com sua canoinha sem remo.
Nessa quinta-feira, dia primeiro, estava marcado o encerramento dos Encontros com o Professor desse ano intenso e feliz. E a coincidência da memória e da homenagem se juntaram com a presença do Conjunto Farroupilha: Tasso Bangel, Estrela D´Alva e Danilo de Castro que já não tocam mais juntos, mas todos temos lembrança deles. Sem desmerecer a bossa-nova, o samba de raiz, mas a nossa tradição antes de tudo.
É a memória mesmo que nos atualiza e dá razão.
São eles, somos nós. O que pode faltar?
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*Jornalista. Cronista. Escritor.
Fonte: Coluna do Ruy Ostermann,29/11/2011
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terça-feira, 29 de novembro de 2011

Entre a vida e a morte do sistema

Vivemos a passagem para o capitalismo do comum,
dos bens imateriais—diz Toni Negri.
E avisa: a transição não será pacífica

Toni Negri esteve quatro vezes na Argentina. Em 2002, 2005, em março deste ano e na semana passada, quando participou de um fórum de intelectuais organizado pela Secretaria de Cultura na Nação. Embora tenha se mostrado avesso a entrevistas, o pensador italiano aceitou responder a algumas perguntas formuladas pela revista Ñ Digital.
Antes de Buenos Aires, Toni Negri esteve realizando palestras em Santiago do Chile, onde aproveitou para expressar publicamente seu apoio ao movimento estudantil que está colocando o governo de Sebastián Piñera em maus lençóis. O italiano comparou os chilenos com os indignados espanhóis e estadunidenses, e com os ativistas da chamada primavera árabe.
Na Argentina, deu uma palestra na Universidade Nacional San Martín (Unisam) e outra no lançamento da revista Debates e Combates. Negri recordou a Cúpula das Américas de 2005, em Mar da Prata, onde parte do bloco latino-americano, dirigido pelo então presidente argentino, Néstor Kichner, disse não à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Também elogiou o movimento piquetero, e até se surpreendeu (ou fingiu supreender-se) quando lhe disseram que nem todos os movimentos sociais estão de acordo com a estratégia econômica do governo.

Você deu muita importância para o movimento dos indignados, mas também foi criticado por não propor uma forma de organização.
Sim, essa é uma das críticas que me fazem. Ontem me perguntaram como fazer para introduzir a noção comum num país como a Argentina, absolutamente atravessado por um conflito (latente ou não) entre o setor agropecuário e o governo, onde os desequilíbrios são notáveis. Bom, a verdade é que eu não sei como fazer isso. É um problema que os políticos argentinos deveriam resolver. Mas eu acredito que a questão dos indignados é produzida num contexto de relativa riqueza, como é na Europa e nos Estados Unidos, que, por uma série de manobras especulativo-financeiras que levam anos, explodiu. Explodiu deixando vários endividados, além de uma juventude que não tem recursos para atingir uma renda mínima. O homem de hoje é um homem explorado. É um homem endividado. Isso também é uma consequência da fossilização das estruturas sindicais clássicas.

Em que sentido isso se dá?
É uma questão velha, que discutíamos desde os anos 1970, quando nasce na Itália a Autonomia Operária, que é uma reação contra a burocracia do Partido Comunista Italiano (PCI), acomodado com a situação de mediador entre capital e trabalho, e corrompido por essa mesma mediação. A ponto—como se diz do outro lado—de que esse capitalismo não foi sequer capaz de distribuir a renda. Mas o problema atual é que a dissociação entre capital e trabalho não existe mais. A sociedade industrial está em transição para outra sociedade, onde o valor mais avaliado é—e será cada vez mais—a produção imaterial. A produção social da riqueza, estruturalmente, será um bem comum. O capitalismo cognitivo se organiza em torno de um bem comum, sem hierarquias, produz ideias, conceitos, é horizontal. Assim, o estudo desses procedimentos—com Michael Hardt—nos fez construir outra noção: o comum, que não é público nem privado, que se autogoverna.

É um compromisso? Diz respeito à crise de representação?
Não, de maneira alguma é uma solução de compromisso. É uma transição para outra forma de capitalismo, definida pelo valor imaterial das ideias. Nessa direção, pode-se falar de um capitalismo cognitivo, e voltar à necessidade de um novo pensamento sobre a emancipação. Precisamente porque a produção social do conhecimento é um bem comum, compartilhável, suscetível de solidariedade e reprodução por fora dos cortes impostos pelo sistema de acumulação baseado no fordismo que Michel Foucault tão bem definiu em seu momento. Estamos indo para um lugar novo, onde não se administra a coisa pública porque o deslocamento do valor é intangível.
Um bem comum—repito—não precisa de um centro de gravidade, a fábrica, o sindicato, o escritório. O próprio corpo, o pensamento operam no espaço público, geram seus atos, podem inventar saberes e formas de organização. Deixamos claro que a transição não será pacífica, e eu não acredito que será. Se não se pensa que os organismos internacionais de crédito são uma extensão dos bancos, não se entendem as medidas que está tomando a Europa para salvar a Grécia, endividando todos os seus habitantes.
A crise europeia é a crise
do capital financeiro.
Para repetir um velho ditado:
estamos na presença de algo que
não acabou de morrer e
algo que não acabou de nascer.



Não se entende o disciplinamento a que a Islândia está submetida, ou a Irlanda, que até muito pouco tempo eram consideradas exemplos de capitalismo “responsável”. Sobre a crise de representação, acredito que tudo já foi dito: só vou dizer que ela não é causada apenas por um aumento da demanda dos direitos sociais, mas também por essa divisão entre capital e trabalho. Porque precisará trabalhar sobre esse terreno baldio. E volto pela última vez a falar sobre Barack Obama, sua reforma do sistema de saúde. Ele pensou a reforma junto a movimentos sociais que o apoiaram para que alcançasse o governo. Mas, uma vez no governo, os abandonou. Agora, os movimentos sociais estão instalados em Wall Street, Los Angeles etc. E me animaria dizer que a reforma do sistema de saúde, que era pouco, mas melhor que nada, será boicotado. Não deveríamos ter vergonha de dizer que os presidentes desses países são reféns ou empregados da especulação financeira, dos bancos.

E qual seu julgamento quanto à América Latina?
É o único lugar do mundo onde os movimentos sociais têm certa potência, apesar da crise da forma-partido. Se articularam, mas não sem condições. O problema é que, na medida em que a crise monetária se agrava, também entra em crise a forma-Estado. E ainda não acredito que esse dilema esteja próximo de uma solução imediata. Se existem movimentos sociais, não é apenas por uma crise de representação, mas porque o público e o privado não se distinguem. Dependem dos mesmos insumos. E existe muita corrupção. Brasil, Chile, Argentina, Bolívia, Venezuela são laboratórios políticos: não estão totalmente nas mãos do capital, ao contrário da Europa. Centro-esquerda e centro-direita estão completamente subordinadas ao capital. A crise europeia é a crise do capital financeiro. Para repetir um velho ditado: estamos na presença de algo que não acabou de morrer e algo que não acabou de nascer.
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Reportagem Por Pablo Chacón, Revista Ñ
Tradução: Daniela Frabasile

A modernidade líquida

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O título “A modernidade líquida” de Zygmunt Bauman é uma metáfora criada para descrever o mundo contemporâneo. Ela surge como um contraponto à modernidade sólida da produção em série, numa época em que o hiperindividualismo dita os rumos das relações sociais e a liberdade de viver e fazer opções traduz-se pela capacidade de consumir.
A metáfora utilizada pelo sociólogo polonês para traduzir essa época encontra sentido, antes de mais nada, na desordem e na impermanência dos fluidos, em contraste com a ordem e o enraizamento dos sólidos. Esses últimos são atributos do capitalismo pesado, da produção industrial, enquanto os outros pertencem ao contexto do capitalismo leve, das novas tecnologias e da produção de serviços.
Ao propor o conceito de “derretimento”, o autor aponta, como conseqüência, para a desconstrução do discurso institucionalizado da primeira modernidade, onde se vislumbrava a utopia das grandes mudanças sociais, enquanto hoje se observa a ascensão dos objetivos individuais.
O autor adverte que é preciso construir uma sociedade livre, para termos indivíduos igualmente capazes de exercer a sua liberdade. “Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a sociedade requer uma auto-construção deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros” (p. 50).
[BAUMAN, Z. A modernidade líquida. Rio: Editora Zahar, 1ª edição, 2001.
Tradução: Plínio Dentzien]
E-mail: marciojsalgado@gmail.com

O vídeo com a entrevista de Zygmunt Bauman traz, numa linguagem coloquial, as ideias do autor sobre alguns aspectos do mundo contemporâneo, como a esfera política e a produção de identidades na pós-modernidade. O autor observa que o perigo da democracia está no divórcio entre o poder e a política. A era de ouro da democracia passou e o Estado não consegue assegurar os direitos essenciais de cada cidadão. Ele fala ainda sobre a busca da felicidade, velendo-se do exemplo do filósofo grego Sócrates.

Clique para ver
O vídeo (http://youtu.be/POZcBNo-D4A) que foi exibido no programa "Café Filosófico" (da série Fronteiras do Pensamento, CPFL) nos foi enviado pela leitora Ana Virgínia Santiago, de Salvador. João do Rio agracede
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Por Marcio Salgado
Fonte:
http://www.joaodorio.com/site/
Revista João do Rio - Ano 9 - Número 51 - Outubro / Novembro de 2011

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

De nada serve tentar organizar a vida estrategicamente

Lucy Kellaway*
Enquanto seguia de bicicleta para o trabalho outro dia, fiz algo que dificilmente faço: tentei pensar estrategicamente sobre como vivo minha vida. O resultado foi quase fatal. Por pouco não bati em um misturador de cimento, e assim minha vida, com todas as suas imperfeições estratégicas, quase chegou ao fim.
Tal acidente teria mostrado de maneira conclusiva, ainda que violenta, o que eu agora vou tentar provar de uma maneira mais prosaica e segura. Que pensar estrategicamente sobre sua vida não é necessariamente uma grande ideia.
O ímpeto desse exercício veio de um novo livro de Matthew Kelly, que vem "dedicando sua vida a ajudar organizações e indivíduos a se transformarem nas melhores versões deles mesmos". Em "Off Balance" (elogiado pelo presidente da P&G na contracapa), ele nos ajuda a obter a satisfação profissional e pessoal ao mesmo tempo.
Ele começa bem, dizendo uma coisa da qual eu suspeitava há muito tempo: o equilíbrio entre a vida no trabalho e a vida particular é conversa fiada. Ele não tem sentido porque trabalho é vida e vida é trabalho. Além disso, o equilíbrio não é necessariamente algo que queremos - mesmo que fosse, ele não é alcançável, uma vez que ninguém pode ter tudo.
Ele então afirma que a vida é como uma empresa, uma vez que tudo nela diz respeito a alocar recursos escassos. Para fazer isso bem, precisamos de um plano de longo prazo e nos valorizar enquanto prosseguimos. O primeiro passo, diz ele, é elaborar uma lista das coisas que são importantes para nós como o trabalho, as relações, os filhos, a fé, a saúde e assim por diante, e arranjá-las pela ordem de prioridade.
Uma manhã, na mesa da cozinha de casa, dediquei-me à tarefa. Demorei dois segundos. Os filhos aparecem no topo de qualquer lista do tipo. O trabalho vem mais abaixo, embora à frente de, digamos, dar um trato no cabelo. Escrever a lista foi fácil, mas criou uma dúvida mais difícil: aloco meu tempo de acordo com essas prioridades? Decididamente não.
No mesmo momento em que estava trabalhando na lista e lendo o livro, meu filho estava ao meu lado comendo seus Cheerios e com o iPod ligado. Ele pediu um bagel com mel para levar para a escola e, como não prestei atenção, distraidamente passei manteiga de amendoim no bagel. Se os filhos realmente estivessem no topo de minha lista, certamente eu teria deixado o livro de lado, pegado o mel e iniciado uma conversa sobre o euro com ele no café.
Isso significa que estou conduzindo minha vida de maneira errada? Segundo Kelly, está tudo bem: o simples fato de às vezes ficarmos compulsivamente absorvidos pelo trabalho não faz de nós pais ruins. Ele afirma que ser exigido pelo trabalho torna você mais feliz e, desse modo, muito mais gentil com a família quando está com ela.
Isso me parece uma besteira conveniente. Quando estou realmente engajada no trabalho, fico envolvida com ele quando deveria estar me concentrando na família. Daí a gafe com o bagel. Mesmo assim, estou tentando resistir à conclusão óbvia de que a história do café da manhã mostra que toda a minha vida está errada. Em meu coração, tenho certeza de que ela está errada, mas não mais que a vida da maioria das pessoas. Em vez disso, o que está definitivamente errado é o ponto de partida de Kelly. Almejar a melhor vida possível é uma ideia boba, uma vez que é absolutamente certo que isso no fim vai acabar em lágrimas, já que a vida é difícil e coisas ruins acontecem.
E quanto à lista de prioridades, o que ela significa é que no fim das contas meus filhos têm mais importância. Mas a maior parte da vida não é feita de situações críticas. Minuto a minuto eu decido como alocar meus escassos recursos por um mecanismo interno sofisticado que responde a ideias de dever, prazer, hábitos, amor, descobertas e assim por diante. Somente mudo de rumo quando as coisas dão errado.
De volta à cena da mesa no café da manhã. Como meu filho parecia bem em seu transe adolescente, fiquei absorvida pelo trabalho. Se eu achasse que as coisas não estavam bem com ele, teria colocado o livro de lado. Esta é minha estratégia: faça o que você estiver fazendo enquanto não ficar claro que não está funcionando, então tente outra coisa. Essa abordagem me poupa bastante tempo.
A abordagem de Kelly envolve meia hora de meditação todas as manhãs, o que o levou a decidir que é bom beber três litros de água por dia. Sem qualquer meditação, acabo bebendo a mesma quantidade de chá, Diet Coke, café e vinho. Estou ciente de que a absorção desses fluidos pode prejudicar meu fígado e o esmalte dos dentes, e se algum deles começar a me causar problemas, vou repensar minha estratégia de seleção de bebidas. Caso contrário, não vejo necessidade.
No entanto, como resultado de meu exame de consciência, descobri uma coisa que não está funcionando na maneira como levo minha vida e, como resultado, estou mudando. Trata-se de algo que vai salvar minha vida, e não mudá-la. Quando estiver andando de bicicleta é melhor eu prestar atenção por onde vou.
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* Lucy Kellaway é colunista do "Financial Times". Sua coluna é publicada às segundas-feiras na editoria de Carreira
Fonte: Valor Econômico on line, 28/11/2011
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Ensino e mudança: um passeio pelo futuro

Rosa Alegria (*)
“Os analfabetos do futuro não serão aqueles que
não sabem ler ou escrever, mas aqueles que
não sabem aprender, desaprender,
e reaprender.”
Alvin Toffler
É nas escolas que as novas gerações poderão aprender a criar o futuro que desejam. Afinal, só temos aprendido o passado. Que tal aprendermos também o futuro?
Olhando para trás e percorrendo os últimos vinte e cinco anos num flashback imaginativo, dá para ter ideia da magnitude das mudanças que hoje vivemos e que irão continuar mais rápido daqui em diante.
Vinte e cinco anos atrás a Coreia começava a competir com os EUA na indústria de transporte, informação e comunicação; não existia a União Europeia, nem a Organização Mundial do Comércio, nem o Tribunal Penal Internacional. Não tínhamos a AIDS, os transgênicos de toda ordem, ônibus espaciais, telefones celulares, internet… Casamento gay era sacrilégio, ensino à distância em tempo real era cena de ficção científica, consumidores colaborando na criação/produção de produtos que ele mesmo viria a utilizar, quem poderia imaginar? Grupos de aprendizagem coletiva, centros de pesquisa abertos a cidadãos comuns, livros eletrônicos Kindles descartando livros de papel, música digital disponível free nas máquinas de todos os tamanhos, a consciência de que a vida pode ter fim com o aquecimento global, tudo além da imaginação. A ovelha Dolly, o ataque às torres gêmeas e a invasão Wikileaks seriam fruto de imaginações delirantes.
No campo do ensino, as tecnologias aplicadas nas escolas eram utilizadas mais para melhorar a qualidade do conteúdo do que para potencializar a capacidade de aprendizagem. Tempos do ábaco, de atenção farta, da tabuada na cola, do estojo com cheiro de madeira, não voltam mais.
Se as tendências atuais tendem a se acelerar, vai acontecer o que o inventor-futurista Ray Kurzweill tem propagado: esse século irá assistir a mudanças tecnológicas numa escala 80 vezes maior do que no século 20. Isso sem falar no mutante quadro geopolítico do mundo que já começa a revelar uma reorganização das forças de poder do norte ao sul.
Diante desse novo mundo, o que as escolas e centros de aprendizagem podem fazer para que o choque do futuro que o Alvin Toffler profetizou nos anos 80 não seja tão intenso? Como podemos tirar proveito dessas mudanças?
Aqui alguns caminhos que percorro nesse passeio pelo futuro, que pelo que parece, já está batendo na porta.

Estudar para o futuro
Como aprender a conviver com as mudanças? Como aprender a implementá-las? As nossas escolas preparam pessoas para o que virá? Certamente não. As mudanças pelas quais passamos constantemente só poderão ser destiladas em soluções se formos capazes de nos orientar para o futuro.
Um dos aspectos que definem uma sociedade é sua atitude em relação ao tempo. O Brasil, eterno país do futuro, atuando na contramão do seu destino programado, tem se orientado excessivamente pelo presente e se mobilizado sempre para o curto prazo, o que nos torna uma sociedade atrofiada pelo imediatismo. Esse nosso insistente apego pelo presente retroalimenta nosso comportamento e nos limita na capacidade de criar um projeto de nação que fortaleça nossa autoestima, defina nossa identidade e nos eleve multidimensionalmente como referência mundial.
É nos espaços da escola que essa mudança temporal de olhar o mundo deverá ocorrer, principalmente no ensino fundamental que tem perdido toda a riqueza imaginativa inerente às crianças.
As escolas precisam reexaminar o horizonte temporal que aplica no seu sistema de aprendizagem e mudar as perspectivas abordadas nas salas de aula, já que desde nossa tenra infância, nunca aprendemos o futuro nas salas de aula. Muito pelo contrário: sempre aprendemos o passado e fomos punidos por ele, caso não conseguíssemos memorizar infinitos números e datas. Nossos cérebros foram sempre demandados a processar o que já foi e nunca o que será ou que poderá ser. Se em vez de só sermos avaliados pela capacidade de registrar o passado, engessando nosso potencial criativo, fôssemos avaliados pela capacidade que temos de imaginar mundos possíveis, o que poderia acontecer? Como estaríamos enfrentando os desafios atuais? Certamente com muito mais proatividade e segurança.
As escolas de ontem e de hoje sempre estiveram presas nesse lapso temporal. Diante dessa macrotransição histórica, precisam conectar-se com o que irá acontecer, com o que poderá acontecer e com o que poderão ajudar a fazer acontecer, preparando essa nova geração a dar sentido ao seu futuro, ao nosso futuro comum.

Novas realidades cognitivas
Estudos revelam que a exposição constante a estímulos digitais, como games, equipamentos móveis, sobreposição de imagens, pode mudar o cérebro e a maneira como ele percebe as coisas e processa a informação. Tudo indica que os cérebros dessa geração que Don Tapscott (Wikinomics) denomina de “geração digital” têm mudado.
Diante disso, ao formar profissionais para o futuro, nas escolas o aluno não pode continuar sendo passivo, restrito a apenas olhar, ouvir, memorizar. A nova proposta pedagógica sustentada pela interatividade supõe participação, cooperação, bidirecionalidade e pluralidade de conexões entre conhecimento, informação e atores participativos. O ambiente 2.0 veio expandir todas as múltiplas possibilidades na dança informativa multimídia dos hiperlinks, wikis, twitters, redes sociais diversas, criando espaços para que as escolas ocupem e façam os alunos criarem ideias a partir de imagens, inventando e reinventando tudo o que pode tocar, ver, cheirar, ouvir, respondendo a estímulos multissensoriais, transformando e construindo tudo aquilo que está ao seu alcance.
A escola deve ser esse espaço das infinitas possibilidades para deixá-las todas ao alcance dos alunos que precisam desenhar o mundo que desejam a partir de um novo imaginário e de uma nova realidade cognitiva.

Aprender a desaprender

A vez do especialista consagrado pela era industrial está chegando ao fim. A era do conhecimento requer perfis latitudinais, multifuncionais, policompetentes. Nessa era de mudanças velozes é preciso sair das amarras da especialidade e abrir as portas dos silos de conhecimento, abrindo-se para o novo. Tempo de desaprender e reaprender à luz de um novo olhar sobre a mesma realidade. Como especialistas não somos mais nada do que guardiães de um saber sem validade, resultado de um diploma também com prazo de validade.
Os principais desafios e multicrises que definem esse novo milênio (violência, globalização da inflação, escassez da água, exclusão social, volatilidade da moeda, alta no preço dos alimentos, aquecimento global e tantas outras) requerem soluções que transcendam disciplinas individuais em suas categorias (por exemplo, engenharia, geografia, psicologia, matemática, economia). Os novos programas nas escolas devem se esforçar para descobrir o que há de comum entre essas disciplinas e criar ambientes favoráveis para que os alunos identifiquem caminhos comuns que levem a uma vida sustentável. “Sustentabilidade XXI, educar e inovar sob uma nova consciência” é uma obra com visões inovadoras assinada pelo empresário Rodrigo Loures; ele se pauta no princípio da “educação na sustentabilidade” como passo evolutivo da educação ambiental, integrando todos os sistemas que afetam a vida no planeta.

A escola que vem de dentro
Afogados que estamos pelas afluências, sobras, excessos e obsolescências materiais e simbólicas, estamos sedentos de silêncio, vazio e interioridade. Sobre a interioridade, nenhuma escola trata. Como se estivéssemos vivendo apenas um lado da realidade e jogando fora todo o potencial criativo. Afinal de contas, somos completos. A única espécie com capacidade de enfrentar o mundo exterior e o mundo interior ao mesmo tempo.
Estamos tentando cuidar do mundo exterior, do botox ao aquecimento global. Mas o que estamos fazendo com relação ao mundo interior? Esse mundo no qual se ancora a nossa existência, ao qual recorremos para tomar decisões e imaginar o que queremos não está na constelação didática das escolas.
Esse deslocamento do subjetivo e do interior nos tem afastado da fonte inesgotável de riqueza que vem de dentro e no qual encontramos um infinito número de possibilidades, como se ainda não tivéssemos aberto a Caixa de Pandora de nosso destino.
O caminho está na incorporação do imaginário e do intangível em cada disciplina que compõe as grades curriculares e deixar fluir o que falta: a imaginação, o sonho, o tácito, o intocável, o não-visto. Na obra recém-lançada “Educação para a Era da Sustentabilidade”, Arnoldo de Hoyos, professor de Estudos do Futuro da PUC-SP nos inspira com visões sobre educação e sustentabilidade e nos coloca em contato com pensadores como Alceu de Amoroso Lima, que escreveu em 1954 “Meditação sobre o mundo interior”, do qual foi pinçada essa linda reflexão: “O homem completo, isto é, o homem normal é aquele que vive interiormente sua vida exterior e não sepulta em si, egoisticamente, sua vida interior”.
Viver a vida em sua intensidade e plenitude requer ir além da materialidade e alcançar valores intangíveis tão sagrados na agenda dos processos criativos. Por isso, temos que antes de tudo, instalar uma escola permanente dentro de nós, tonificar nossos sentidos, flácidos pelos modelos, construir nossos castelos e alicerçá-los de valores universais, estruturando a base dos ensinamentos que irão nos fortalecer e capacitar para viver a vida, não como ela é, mas como desejamos que seja.

Estudo do Projeto Millennium − Futuros Possíveis para a Educação e Aprendizagem 2030
O Ministério da Educação e Desenvolvimento de Recursos Humanos da Coreia do Sul pediu à rede de pesquisadores do Projeto Millennium, rede internacional que estuda o futuro de grandes temas da humanidade, uma avaliação de possibilidades futuras no campo da educação e aprendizagem visualizando o horizonte de 2030 como a ancoragem de planos de longo prazo.
Quais são algumas das possibilidades de ensino e aprendizagem para o ano 2030? O que podemos fazer hoje para tirar proveito dessas novas possibilidades? Já que novas ideias podem levar a caminhos inusitados, é prudente perguntar o que de negativo e o que de positivo poderia delas surgir?
Para responder a estas perguntas, os pesquisadores recolheram mundialmente as visões de 213 especialistas em educação e áreas correlatas. Essas são algumas das possibilidades voltadas ao mundo high-tech para a educação em 2030:

• Programas para melhorar a inteligência coletiva
• Conhecimento e aprendizagem just-in-time
• Educação individualizada
• Uso de simulações
• Avaliação contínua dos processos de aprendizagem individual para prevenir instabilidade emocional e doenças mentais
• Nutrição individualizada para melhor desenvolvimento cognitivo
• Inteligência geneticamente aumentada
• Uso de simulações globais on-line como ferramentas de pesquisa social
• Utilização de comunicações públicas para ajudar na busca do conhecimento
• Dispositivos de inteligência artificial portáteis
• Mapeamento completo das sinapses humanas para mapear os processos de aprendizagem
• Mecanismos para manter cérebros adultos saudáveis por períodos mais longos
• Química para o aprimoramento do cérebro
• Web 17.0 – integração de dados, análises, discussões, fóruns numa estrutura organizada e semântica. A Web Semântica que utiliza realidade virtual e contém um sub-sistema inteligente
• Sistemas integrados de aprendizagem ao longo da vida
• Programas que visam à eliminação dos preconceitos e ódio
• E-teaching: sistemas eletrônicos de inteligência para professores
• Computadores com inteligência extra-humana
• Micróbios artificiais para aumentar a inteligência
• O ensino da moral e a aplicação de novas métricas (inteligência emocional e inteligência espiritual)
• O cérebro global: o desenvolvimento de um conhecimento coletivo a caminho da formação de um cérebro global e de novos estágios da consciência humana
• Estudos inter-religiosos e inter-culturais
• O uso crescente de jogos, incluindo jogos on-line para o aprendizado
• Unidades modulares de conhecimento: ferramentas de gestão para que cada aluno possa baixar o que precisa
Todos esses futuros possíveis servem como sinalizadores de caminhos estratégicos que levem a um novo sistema de ensino e aprendizagem. Provavelmente muitos desses avanços não estejam disponíveis para todos em 2030, mantendo ainda as lacunas no conhecimento e nas capacidades e talentos. Questões de custo, interesses políticos e resistências de grupos de interesse, e, principalmente, o medo das instituições vigentes de perderem o poder instalado frente às novas capacidades educacionais. Esses são aspectos intangíveis que o estudo não ilustra com evidência e pressupostos de uma economia sustentável, que só poderá ser realidade através da formação de novas lideranças que nasçam de um novo sistema de educação.
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(*) Rosa Alegria é Mestre em Estudos do Futuro – Universidade de Houston, Clear Lake, EUA Pesquisadora de tendências, especialista em processos de inovação, Vice-Presidente do NEF Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP e Diretora do Nodo Brasileiro do Projeto Millennium
Texto originalmente publicado na Revista da ESPM Escola Superior de Propaganda e Marketing – volume 18 – edição 5 – set/out 2011
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Sadômasô sustentável

Luiz Felipe Pondé*

Prostituta não é uma profissão,
mas uma vocação,
 um arquétipo, como
a "grande mãe"
O tédio é um dos maiores infernos humanos. Como diz a personagem mais legal do filme "Late Bloomers", com William Hurt e Isabella Rossellini, a bisavó pirada da família: "Se você é criança e não aprende a lidar com o tédio, quando cresce fica idiota".
Uma das piores formas de tédio é a estrutura sexual perversa. Ou, como alguns dizem por aí, "sadômasô" (o que antigamente era chamado de "sadomasoquista", no tempo em que era feio ser sadomasoquista). Não vou entrar em debates intermináveis sobre o que a "perversão" é, vou dizer claramente o que quero dizer com esta palavra e por que a perversão sempre me parece entediante.
Recentemente, na sua versão "sustentável", ela deixa ainda mais claro como é um cachorro desdentado. Você não sabe o que é um "sadômasô" sustentável?
Perversos, "descendentes" do chato Marquês de Sade, supervalorizado na filosofia, se acham o máximo porque pensam que realizam as fantasias que os neuróticos sonham e não têm coragem de realizar.
Enganam-se eles. A vida sexual do perverso é que é chata: queimar e ser queimado, bater e apanhar, ser amarrado e amarrar, máscaras de coro, caras que se vestem de colegiais e mulheres de bombeiro, gente que acha o pé da mulher seu melhor órgão sexual... "boring". Elas têm coisa muito melhor...
O Eros do sexo é o pecado, a vergonha, a culpa, a impossibilidade. A proibição, o medo. A vergonha é tão importante quanto imaginar a mulher por baixo da saia justa ao invés de vê-la de forma obviamente nua.
"A palavra "sustentável" hoje em dia é
como "ética", "Cabala", não quer dizer nada.
É como escrever na porta de
uma padaria "sob nova direção" só
para atrair clientes.
Propaganda provinciana."

Quem não sabe disso não entende nada de orgasmo. Quem diz coisas como "É proibido proibir" é bobo e devia continuar fazendo suas festas em bufês infantis.
A palavra "sustentável" hoje em dia é como "ética", "Cabala", não quer dizer nada. É como escrever na porta de uma padaria "sob nova direção" só para atrair clientes. Propaganda provinciana.
No sentido que uso aqui, "sustentável" quer dizer "do bem", "inócuo", "corretinho". Por exemplo, temos até serial killer sustentável, o Dexter, da série homônima, serial "killer" que só mata serial killers. Limpinho como um "crente" da classe C.
Prefiro Jack, o estripador, que estripava prostitutas porque estas encarnam a mais antiga das vocações femininas e, por isso mesmo, uma das suas maiores delícias. Prostituta não é uma profissão, mas uma vocação, um arquétipo, como a "grande mãe".
O coitado do Sade ficaria horrorizado com o que fizeram de sua "Filosofia da Alcova", um livro para formar libertinos contra o sistema opressor no século 18. Você já reparou como todo mundo que quer nos libertar da opressão moral acaba ficando monótono e datado?
O que para Sade deveria ser uma transgressão terrível virou um jantar inteligente para gente que recicla lixo e, depois de tomar um "vinho em conta", goza chupando pés femininos. Em alguns anos, teremos pedófilos que também reciclam lixo e são budistas de butique.
Os "sadômasôs sustentáveis" dizem que você pode ser um deles e ser uma pessoa que não joga lixo na rua, que vota conscientemente, que é contra a indústria farmacêutica e ajuda velhinhas cegas a atravessar a rua.
De repente, até vão para encontros em salas escuras com sua "dominatrix" brincar de "escravos" depois da reunião de pais e mestres na escolinha do filho, que, é claro, não é um problemático como o filho do casal de neuróticos.
Logo serão capazes de dizer que gostar de ser espancado, queimado, mijado na boca e humilhado é harmônico com Jesus.
Os culpados por terem feito da filosofia do Sade um cachorro desdentado foram a moçadinha do "vamos desreprimir o sexo" ou do "gostar que mijem na sua cara também é cultura". Um modo "digno" de protestar.
Em matéria de protesto, ainda prefiro Lutero, Calvino e os pirados da Nova Inglaterra.
A personagem feminina do livro "A Letra Escarlate", de Nathaniel Hawthorne, autor americano do século 19 (o filme baseado no livro, com Demi Moore, é ruim porque faz dela uma feminista injustiçada, ainda mais "boring" do que Sade...), é um hino ao erotismo na mulher. Toda culpada, toda condenada, toda humilhada, toda possuída.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista da Folhaponde.folha@uol.com.br
Fonte: Folha on line, 28/11/2011
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Virtudes e vícios dividem os mesmos circuitos no cérebro


Entrevista David J. Linden
Neurocientista mostra em livro que cérebro
não discrimina prazer de jogo e bebida
de atividades como filantropia

O que o orgasmo, a comida gordurosa, o jogo, a bebida, a filantropia, os exercícios físicos e as drogas têm em comum? Sob o ponto de vista químico e fisiológico do cérebro, muita coisa.
Em seu recente livro, "The Compass of Pleasure" (A bússola do prazer, sem edição no Brasil), o neurocientista David Linden, professor na Universidade Johns Hopkins, revela como agem os diferentes tipos de prazer nos circuitos cerebrais e como eles podem se tornar vícios.
"Há uma unidade neural de virtude e vício. E o prazer é a nossa bússola, não importa o caminho que tomamos", diz Linden, 50.
Ele afirma que há estudos experimentais para o desenvolvimento de uma vacina capaz de prevenir dependências em pessoas com predisposição genética. Os genes respondem por até 60% da vulnerabilidade ao vício.
Em um futuro distante, Linden aposta que haverá meios artificiais de ativar os mecanismos de prazer. "Talvez teremos algo como um capacete que ativará os circuitos cerebrais do prazer na intensidade que você desejar."

Folha - Por que o sr. escreveu um livro sobre prazer?
David Linden - Todo mundo está interessado em prazer. As pessoas amam comida, sexo, jogos, drogas, exercícios. E o prazer é uma questão central no nosso sistema legal e governamental. Várias leis falam de prazer, quando regulam atividades sexuais, drogas ou jogos.
No entanto, hoje sabemos que, do ponto de vista fisiológico e químico, o prazer que sentimos em atividades como correr ou fazer um trabalho filantrópico é o mesmo dos vícios. Há uma unidade neural de virtude e vício. E o prazer é a nossa bússola, não importa o caminho que tomamos.

Quando o prazer vira vício?
O prazer está associado à liberação de dopamina no cérebro. Esse neurotransmissor dispara quando ingerimos uma comida deliciosa, durante o orgasmo ou quando praticamos um ato generoso. A dopamina integra o sistema de prazer e recompensa.
Os genes respondem por até 60% da vulnerabilidade à dependência. Se você herda variantes desse gene que levam a baixos níveis de receptores de dopamina, isso o fará mais suscetível ao vício. É como se as pessoas ficassem doentes de prazer.

O que acontece com o cérebro de uma pessoa dependente?
Se eu pedir para três pessoas com vícios diferentes escreverem sobre os sentimentos associados a essas experiências, você verá que são os mesmos.
Começam porque se sentem bem e, depois, vão precisando de mais e mais. Todo o desejo se transforma em necessidade.
A dependência gera mudanças estruturais, químicas e elétricas dos neurônios. Vamos dizer que você é alcoólatra e está "limpo" há três anos. Se você toma um drinque que seja, a sensação de prazer será muito maior para você do que para alguém que nunca foi dependente.

Por que é tão difícil o tratamento do dependente?
O dependente costuma recair em períodos de muito estresse. Sabemos hoje que existem muitas atividades prazerosas, como a prática de exercícios físicos, de meditação, de rezas ou mesmo brincadeiras com os filhos, que podem ajudar a aliviar o estresse e as recaídas.

O sr. acredita na possibilidade de terapias que evitariam a dependência?
Há pesquisas com animais para desenvolver uma vacina para pessoas com predisposição genética ao vício. Mas há muita polêmica, especialmente pelas questões éticas [de se medicar antes de o problema se manifestar].
No momento, não há muitas drogas eficazes para tratar as dependências. Mas acho que nos próximos 15 anos teremos remédios eficazes para as crises de abstinência.

Mas chegaremos a ter uma droga capaz de curar uma dependência?
Não acredito que exista ou vá existir uma cura fácil. As pessoas fazem terapias em clínicas de reabilitação, mas estudos já mostraram que elas não são muito eficazes.
Psicoterapia e drogas podem ajudar. Mas internar a pessoa, deixá-la anestesiada por três dias e dizer que está curada, para mim, é mentira. Eles só querem seu dinheiro.

O sr. acredita que a obesidade seja consequência de um vício em comida?
Sim. Nós gostamos de pensar em "metabolismos" para explicar por que ganhamos peso. Na verdade, 90% das pessoas que estão severamente obesas o são porque comem demais, não porque têm desordens metabólicas. Isso acontece porque seus cérebros são diferentes.
Nossos corpos estão adaptados para aquelas situações de milhares de anos atrás em que você precisava de muita gordura e açúcar porque você não sabia se teria comida na semana seguinte. Só assim você sobrevivia, tinha filhos e passava seus genes adiante.
"Em um futuro distante,
penso que teremos meios de ativar
nossos mecanismos de prazer de forma não invasiva,
talvez algo como um capacete de beisebol que,
colocado na cabeça, ativará seus
circuitos cerebrais do prazer
na intensidade que você desejar."

E a indústria aprendeu rápido como manipular nossos cérebros para comer mais alimentos que engordam...
É verdade. Nos EUA, a média de peso da população hoje está 11 quilos acima do que era na década de 1960. E não é porque nossos genes mudaram. Quando eu era criança, a garrafa de Coca-Cola era pequena, agora veja o tamanho dela! Quanto maior o tamanho das porções, mais você tende a comer e a beber.
As corporações aprenderam que certos sabores ajudam as pessoas a comer em excesso. Comer muitos alimentos gordurosos e doces, por muito tempo tempo, muda os circuitos do prazer do seu cérebro. Então você quer comer mais e mais. É parecido com heroína.

E as paixões, o orgasmo, também podem viciar?
Sim, o processo é bem parecido. A Universidade Albert Einstein, em Nova York, comparou o funcionamento dos cérebros de pessoas em novos relacionamentos quando elas olham para fotos do parceiro e para fotos de amigos. Não foi surpresa ver que há um disparo de dopamina ao olhar para a foto do amado.
Interessante também é que partes do cérebro têm funções desligadas nesses estados de paixão ou durante o orgasmo, especialmente aquelas áreas relacionadas à cognição e lógica. Quando estamos muito apaixonados não conseguimos fazer uma boa avaliação da pessoa.

Qual será o futuro do prazer, especialmente na nossa atual sociedade em que é tão fácil encontrá-lo?
O acesso facilitado a coisas prazerosas, sem dúvida, aumenta o seu uso. Se você gostava de jogar, tinha que ir ao cassino. Agora, qualquer um entra na internet e pode jogar o tempo que quiser.
Em um futuro distante, penso que teremos meios de ativar nossos mecanismos de prazer de forma não invasiva, talvez algo como um capacete de beisebol que, colocado na cabeça, ativará seus circuitos cerebrais do prazer na intensidade que você desejar.
THE COMPASS OF PLEASURE
AUTOR David Linden
EDITORA Viking
PREÇO US$ 13,69 (R$ 25,73) na Amazon (livro eletrônico)

Raio-X David J. Linden

NASCIMENTO
1961, na Califórnia
ATUAÇÃO
Professor de neurociência na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, Maryland) e editor-chefe do "Journal of Neurophysiology"
LIVROS
"The Compass of Pleasure" (2011) e "The Accidental Mind: How Brain Evolution Has Given Us Love, Memory, Dreams, and God" (2007)

Números do vício


210 MILHÕES
é o número de usuários de drogas no mundo

200 MIL
pessoas no planeta morrem por ano por causa de drogas ilícitas

CERCA DE 1%
da população está sob risco de ter compulsão por jogos

41%
da população brasileira está acima do peso -nos EUA, dois terços da população estão nessa situação

Fontes: Organização Mundial da Saúde; "World Drug Report 2011"; IBGE; Hermano Tavares, psiquiatra
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REPORTAGEM POR CLÁUDIA COLLUCCI EM WASHINGTON
Fonte: Folha on line, 28/11/2011
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A ausência de autoestima

Arnaldo Niskier*
Não deveremos contar com o apoio total dos professores
no processo de contemplar o novo perfil dos alunos,
porque lhes falta a necessária autoestima
Alunos dispostos como se estivessem num ônibus lotado; aulas expositivas ao estilo "magister dixit" dos velhos tempos, com gosto dos tradicionais "trivium" e "quadrivium" da educação clássica -eis o quadro encontradiço na grande maioria das escolas brasileiras de ensino médio.
Modernidade? Só naquelas que, a duras penas, conseguiram a doação de computadores solitários.
Nos planos oficiais, os conteúdos, por intermédio das diretrizes curriculares, fizeram dez anos de serviços, alcançando uma estabilidade altamente questionável.
Quase nada muda quanto ao desenvolvimento intelectual dos alunos, embora permaneça o dispositivo constitucional da aprendizagem como direito social, devendo ser oferecida com qualidade.
Pudera, as escolas, sobretudo as públicas, operam sucateadas, sem estrutura condizente, e conduzidas por professores justamente desmotivados, em virtude da tibieza dos seus salários. No Brasil há solução para quase tudo, menos para encontrar uma resposta condigna para essa questão que vem desde meados do século passado.
É certo que o perfil do aluno está mudando. Em busca da sonhada empregabilidade, ele reivindica o domínio de línguas estrangeiras modernas (pelo menos o inglês, como segunda língua) e o conhecimento dos mistérios da internet, cujo domínio passou a ser sinônimo de status.
Há um novo e instigante perfil psicológico dos jovens -e isso o Plano Nacional de Educação, que está em discussão no Congresso, deverá contemplar, mas com uma perspectiva facilmente previsível: não deveremos contar com o apoio total dos mestres nesse processo, pois lhes falta a necessária autoestima.
Foi uma boa iniciativa alargar para nove anos a obrigatoriedade do ensino fundamental. Continuam, como desafios, os lamentáveis problemas da permanência e da conclusão, o que pode perfeitamente explicar os vazios da educação média, que sofre as consequências dos problemas trazidos da base.
Muitos jovens dessa faixa etária crucial fogem da escola, com conhecimentos precários. Muitas vezes se limitam a assinar o nome, caracterizando o que chamamos de analfabetismo funcional. Os conhecimentos de leitura e interpretação não passam de precários.
Como pretender alunos críticos, reflexivos e investigadores se lhes falta o essencial, que é o adequado domínio da língua portuguesa?
Melhorar a educação brasileira, de um modo geral, pode ser uma utopia? Depende, naturalmente, da existência de uma política séria, no setor, conduzida por pessoas competentes e desinteressadas de proveito pessoal ou político. A boa escola deixará de ser utopia quando esse quadro se modificar.
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* ARNALDO NISKIER, 75, é doutor em educação. Foi presidente da Academia Brasileira de Letras (gestão 98-99) e pertenceu ao Conselho Nacional de Educação.
Fonte: Folha on line, 28/11/2011
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domingo, 27 de novembro de 2011

Filho de Woody Allen se destaca como assessor de Hillary Clinton

Filho de Woody Allen e Mia Farrow, Ronan Farrow destaca-se
 como garoto-prodígio ao lado de Hillary Clinton




"Aquele garotinho? Tem certeza de que é com aquele garotinho ali que você quer falar?", perguntou, incrédulo, o assessor de imprensa do Departamento de Estado americano.
Durante uma festa do governo, ele se desdobrava para trazer figurões, como a secretária de Estado, Hillary Clinton, até os jornalistas.
O tal garotinho é Ronan Farrow, 23 anos, assessor especial de Hillary para questões da juventude mundial.
Ele é também o único filho biológico da atriz Mia Farrow com o cineasta Woody Allen. Menino prodígio, começou a falar aos sete meses e ler aos dois anos, entrou para a universidade aos 11 e foi aceito no curso de direito de Yale aos 16. Mas, no Departamento de Estado, ele ainda é "aquele garotinho".
"Já passei por vários momentos embaraçosos por ser jovem e desconhecido. A velha guarda fala comigo com condescendência e, às vezes, até certo menosprezo. O que importa é que a chefe dá apoio total ao meu trabalho", diz Ronan, em entrevista à Serafina.
Não foi fácil falar com o rapaz. Flashes e gravadores provocam nele um óbvio desconforto. Natural para alguém que, aos quatro anos, se viu no centro de um escândalo de repercussão mundial.

PAPAIZINHO QUERIDO

Vale relembrar alguns momentos dessa história. Depois de dois casamentos fracassados -- com Frank Sinatra e com o músico André Previn --, Mia Farrow teve um relacionamento de 12 anos com Woody Allen, que também já tinha sido casado duas vezes.
Eles viviam em casas separadas pelo Central Park, em Nova York. Os dois gostavam de se observar com binóculos, de caminhar de manhã lado a lado no parque e de trabalhar.
Juntos, fizeram 13 filmes -- entre eles, "Hannah e Suas Irmãs" (1986), "A Rosa Púrpura do Cairo" (1985) e "A Era do Rádio" (1987).
Juntos, também adotaram duas crianças e, finalmente, tiveram Ronan. "A falta de entusiasmo de Woody (com a gravidez) era deprimente", escreveu Mia em sua biografia, "What Falls Away", de 1997. O nascimento do garoto não ajudou. De fato, Woody contaria depois que o relacionamento sexual do casal começou a se deteriorar com a chegada do filho.
A vida, então, tomou um rumo "woodyalleano" e, em janeiro de 1992, Mia encontrou fotos polaroides de Soon-Yi, sua filha adotiva com Previn, na casa do cineasta. A menina de 21 anos estava nua, de pernas abertas.
A atriz ainda estava filmando o que seria a sua última parceria com o cineasta, o ótimo e muito autobiográfico "Maridos e Esposas". Na história, ele faz o papel de um professor casado (com a personagem de Mia), que se envolve com uma jovem aluna (Juliette Lewis).
Na vida real, Soon-Yi se mudou para o apartamento de Woody, no East Side. Chocada, Mia ainda acusou o cineasta de abusos sexuais contra uma das crianças que o casal adotou, Dylan, uma menina dois anos mais velha que Ronan.
Ele, então, resolveu brigar na justiça pela custódia dos três filhos. As acusações de abuso nunca foram provadas.
Mas Mia ganhou a briga e ficou com a guarda das crianças. Woody ganhou o direito de ver Ronan três vezes por semana, em visitas monitoradas de duas horas.
A relação de pai e filho, que nunca tinha sido muito boa, se deteriorou. Ronan não tem qualquer contato com o pai desde 1995, quando ainda tinha sete anos.

UM GAROTO TRABALHADOR

De volta a 2011, não é difícil entender porque o assessor do Departamento de Estado leva mais de dez minutos para convencer "aquele garotinho" a ir até a área dos jornalistas.
Quando finalmente veio, encheu a repórter de perguntas. Por fim, deu o contato de sua secretária e, depois de duas semanas, concordou em dar uma entrevista por telefone -- desde que fosse sobre sua trajetória profissional.
Só quando o assunto é trabalho, Ronan abre a guarda, fala sem parar e até dá seu email e o número do telefone celular.
"Desde cedo, fiz viagens incríveis com minha mãe para locais de conflito. Em Darfur, no Sudão, sofri muito ao ver as condições de vida do povo. Na volta, tive minha maior vitória: participei de um protesto que acabou fazendo com que os fundos de pensão das universidades parassem de comprar ações de empresas que negociam com o Sudão", conta, empolgado.
Mia e o filho têm muito em comum. Os olhos azuis, os cabelos louros acinzentados e o interesse por direitos humanos são algumas características compartilhadas.
Entre os 14 filhos da atriz -- quatro biológicos e dez adotivos--, Ronan sempre foi o mais próximo. Quando, aos 11 anos, ele entrou para o Bard College, Mia levava o filho às aulas diariamente. Dirigia sua minivan verde por uma hora e meia desde a casa da família, em Connecticut, para onde se mudou depois da separação.
Como Ronan era muito novo para ir de uma sala de aula à outra, a atriz passava o dia no campus com o filho.

LONGE DOS PALCOS

Do pai, ele herdou o corpo franzino, a pouca altura (1,68m) e o gosto por música. Assim como Woody faz com o clarinete, Ronan toca guitarra para relaxar: "Tem uma sala de música no Departamento. É para onde vou quando sobra tempo".
Ao que parece, não sobra muito. Depois de três anos vivendo em Washington, ele nunca apareceu em colunas sociais.
O restaurante que mais frequenta é a cafeteria do trabalho. "Tem dia que faço as três refeições lá", diz ele, que costuma contar o que comeu no Twitter. "Se a China soubesse o que a cafeteria do Departamento de Estado vende como comida chinesa, teríamos um incidente diplomático", escreveu.
Ronan nunca se interessou pela carreira dos pais e dos avós maternos. Atriz de "O Bebê de Rosemary" e de mais de 40 outros filmes, Mia é filha do diretor John Farrow e da atriz Maureen O'Sullivan, que ficou famosa como a Jane do Tarzan.
Desde cedo, seu interesse é por ativismo e política. Antes de assumir, em junho, o cargo de assessor de Hillary e diretor do setor de juventude mundial, Ronan trabalhou dois anos no próprio Departamento de Estado, como assessor especial para Assuntos Humanitários e ONGs com foco no Afeganistão e no Paquistão.
Ele também tem no currículo o cargo de porta-voz da Unicef na Nigéria, Angola e Darfur e o Prêmio Humanitário McCall-Pierpaoli de 2008. Para completar o histórico, Ronan publicou artigos em jornais como "Wall Street Journal" e "International Herald Tribune" e trabalhou, nos tempos de Yale, como advogado para uma firma conceituada de Nova York.
Um dos próximos destinos do ativista político é o Brasil, que já foi citado em seus discursos e no Twitter:
"Temos vários programas interessantes em conjunto, como o dos Jovens Embaixadores. O Brasil tem aparecido no cenário mundial com uma resposta vibrante à realidade da população jovem. No ano que vem, finalmente vou conhecer o país durante o Rio+20 [Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que será realizada no Rio de Janeiro, em junho de 2012]."
Curiosamente, Ronan Farrow já trocou de nome duas vezes. Nos primeiros anos de vida, era chamado pelo primeiro nome, Satchel, homenagem do pai a um famoso jogador de beisebol americano.
Depois que o casal se separou, Satchel passaria a ser chamado de Seamus. Ao se formar em Yale, virou Ronan.
"Não mudei de nome legalmente. Tenho vários nomes e posso escolher", justifica, dizendo que na certidão seu nome é Satchel Seamus Ronan O'Sullivan Farrow.
O sobrenome do pai não entrou porque Mia já tinha oito filhos quando Ronan nasceu e não queria que ele fosse o único diferente entre seis Previns e dois Farrows. Quem disse que nome não é destino?

*
Linha do tempo
A vida de Ronan Farrow e a obra de seu pai.

19/12/1987
Ronan nasce de cesariana e mora com a mãe e os irmãos no apartamento de oito quartos da Central Park West, onde Allen filmou os jantares de "Hannah e Suas Irmãs".

1 ano (1988)
Segundo o cineasta, no aniversário de um ano do filho, a relação já era "totalmente platônica". Neste ano, Woody lança o filme "A Outra" (1988). Mia faz o papel de uma grávida que pensa em suicídio.

2 anos (1989)
O cineasta não quer que a atriz amamente o filho, o que ela faz até os dois anos e meio. Os pais fazem três outros filmes juntos: "Crimes e Pecados" (1989), "Contos de Nova York" (1989) e "Simplesmente Alice" (1990). Neste último, a personagem de Mia deixa o marido, vai criar os filhos sozinha e se dedicar 
a trabalhos voluntários.

4 anos (1991)
Mia reúne os filhos mais velhos e Soon-Yi para discutir a crise familiar. O caçula, Ronan, assiste à "Pequena Sereia" na sala ao lado. Soon-Yi decide deixar a família.

8 anos (1995)
Ronan já lê Kafka, Camus e Sartre. Woody lança "Poderosa Afrodite" (1995). O filme conta a história de um casal que adota uma criança brilhante, filho de uma prostituta.

10 anos (1997)
Woody e Soon-Yi se casam na Itália. O filme do cineasta deste ano é "Desconstruindo Harry" (1997), em que ele faz o papel de um escritor em crise criativa e odiado pelas três ex-mulheres.

11 anos (1998)
Ronan se torna o estudante mais jovem do Bard College e entra para o Hall da Fama dos Jovens Superdotados (YEGS Hall of Fame, em inglês). Woody, que está lançando "Poucas e Boas" (1999), fica sabendo da novidade por jornalistas.

12 anos (1999)
O cineasta assina um contrato de cinco filmes com a DreamWorks, de Steven Spielberg. Seriam considerados alguns dos piores do diretor.

15 anos (2002)
Ronan escreve uma tese sobre ciência política e se forma com nota máxima no Bard College. A DreamWorks lança a comédia "Igual a Tudo na Vida" para atrair 
o público jovem aos filmes de Woody Allen.

16 anos (2003)
Ronan é aceito para o curso de direito da Universidade de Yale. Ele já trabalha como porta-voz da Unicef e assistente de político. No filme "Melinda e Melinda" (2004), um personagem diz: "O importante é quem você conhece. A vida é uma rede de contatos".

17 anos (2004)
O "Daily Mail" entrevista Ronan: "Ele é meu pai e se casou com minha irmã. Isso é uma transgressão moral. Eu não posso vê-lo. Não posso ter uma relação com meu pai e ser moralmente consistente". Woody Allen diz que o escândalo foi um golpe de sorte em sua vida. O brilhante "Match Point", sobre sorte e destino, entra em cartaz.

2008 / 21 anos
Ronan entra no Departamento de Estado. Woody lança "Tudo Pode Dar Certo", sobre o relacionamento de um homem mais velho com uma mulher jovem. Ele e Soon-Yi continuam juntos e têm duas meninas adotivas. Elas não conhecem o irmão.
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Reportagem por ADRIANA MAXIMILIANO DE WASHINGTON
Fonte: Portal Luis Nassif -  27/11/2011

Um tipo arrogante, e admirável

Mary Gabriel:
"Jenny ajudou a fazer de Marx mais que um filósofo.
Sua influência, como a de Engels,
ampliou sua perspectiva de modos muitos importantes.
Ela injetou um pouco de poesia
na vida de Marx e, por extensão, em seus escritos.

A princípio, ainda nos esboços do projeto que resultaria na publicação de “Love and Capital - Karl and Jenny Marx and the Birth of a Revolution” (a ser publicado no Brasil em 2012, pela Zahar) , Mary Gabriel não tinha nenhuma simpatia por Marx, pessoalmente. Ela o via na vida familiar tão arrogante quanto se mostrava em público, tomado por um “egocentrismo patológico”. Acabou gostando dele. “Comecei a sentir-me em relação a ele, acho, do mesmo modo como sua família e Engels: seus defeitos eram inegáveis, mas ele era tão maravilhoso, poderoso e único, que poderiam desculpá-lo. Sentia-me em uma companhia rara quando lia suas cartas e suas obras. E falhas de caráter que não teria perdoado em outro homem as perdoei facilmente em Marx”. Mary também escreveu uma biografia de Victoria Woodhull, a líder sufragista americana (“Notorious Victoria – The Life of Victoria Woodhull, Uncensored” – Alconquin, 1998).

Leia a seguir trechos da entrevista que Mary concedeu ao Valor.

Valor: Parece haver contradições entre a vida familiar de Marx e ideias que ele defendia (abolição da família, visão crítica do casamento, liberdade sexual etc.). Por exemplo, quando Paul Lafargue cortejava sua filha Laura, Marx exigiu que ele mantivesse distância por um tempo e que demonstrasse capacidade financeira para sustentar a ambos no casamento. E opôs obstáculos ao relacionamento entre a filha Eleanor e Prosper Lissagaray. Como se deveriam entender esses aparentes conflitos entre as opiniões de Marx e sua própria vida?
Mary Gabriel: Marx e Jenny [sua mulher] estavam bem a par do conflito entre as atitudes de ambos em relação às filhas e suas convicções políticas, mas não se desculpavam por isso. Queriam que as filhas tivessem não menos que um futuro burguês seguro, financeiramente equilibrado. É uma contradição, certamente, mas acredito que a posição deles seja compreensível. Eles tinham visto todos os filhos sofrerem – e quatro morreram – por causa da pobreza em que viviam. E sabiam que a pobreza era resultado de decisões políticas que haviam tomado, o que tornava difícil para Marx conseguir dinheiro e os punha em conflito com a sociedade em torno deles. Penso que Marx carregava a culpa adicional de ter arruinado a vida de sua mulher por causa das escolhas radicais que havia feito, e queria evitar que as filhas tivessem o mesmo destino. Mas não seria assim. Como os pais, as filhas de Marx estavam comprometidas com a melhoria dos oprimidos e explorados. Como consequência, os homens que escolheram para si, longe de serem burgueses, eram ativistas socialistas. Na verdade, elas se tornaram versões menores do próprio Marx.

Valor: As ideias de Marx e Engels têm alguma importância para o debate atual a respeito dos papéis sociais das mulheres?
Mary: Sim, de uma forma bastante importante, mas não aquela que poderíamos imaginar. Marx e Engels escreveram durante um período em que os direitos das mulheres estavam relegados a segundo plano entre os direitos da classe trabalhadora em geral. A noção de igualdade para as mulheres sempre esteve nas sombras do trabalho deles – e Engels passou a dar atenção ao assunto bem cedo em seus estudos – mas nenhum dos dois gastou muito tempo discutindo direitos políticos para as mulheres. A questão das mulheres era parte do debate mais amplo sobre o trabalho e a sociedade.
Mas – e é aqui que o trabalho deles é pertinente no que se refere aos papéis sociais das mulheres atualmente – as mulheres estavam na linha de frente da luta deles contra a exploração capitalista porque, como aceitavam salários menores, eram frequentemente empregadas no lugar de homens. E tanto Marx como Engels acusavam a sociedade capitalista de explorar as mulheres sexualmente.
Penso que hoje as mulheres estão sendo usadas de novo pelos empregadores para reduzir custos. Os homens ainda exigem maiores salários do que as mulheres – mesmo em vários dos assim chamados países desenvolvidos – e, nestes tempos em que austeridade é a desculpa usada para justificar cortes de empregos, as mulheres são frequentemente empregadas no lugar de homens porque são mais facilmente ajustáveis aos resultados pretendidos. Esta não é uma questão de se dar poder às mulheres, como alguns poderiam sugerir, mas de sua exploração.
De modo semelhante, as formas de exploração sexual que Marx e Engels denunciavam na Inglaterra vitoriana e na França constituem hoje um fenômeno global. Em números difíceis de acreditar em sociedades que se dizem civilizadas, mulheres são vendidas como uma “commodity” por meio de prostituição, na indústria de entretenimento adulto e em situações de escravidão sexual. Essa espécie de “comércio” se desenvolve hoje numa escala que não poderia ser imaginada quando Marx e Engels a condenaram no “Manifesto Comunista”.
A lição a ser aprendida de Marx e Engels, no que se refere ao lugar de trabalho e à exploração sexual das mulheres hoje, é que aquelas atividades não apenas ferem suas vítimas imediatas, mas corroem a sociedade. A desumanização de um segmento da população inevitavelmente leva à desumanização de toda a sociedade.

Valor: As várias formas de casamento e de composição familiar observadas hoje, tão diferentes de modelos tradicionais, seriam saudadas por Marx e Engels como espelhadas em suas idéias?
Mary: Marx era muito mais conservador do que Engels nos assuntos de casamento. Esta é uma das raras áreas em que os dois se mostram bastante diferentes. Ambos entendiam que o contrato de casamento em meados do século XIX na Europa exigia que a mulher abrisse mão de direitos demais. Ela se tornava “propriedade” do marido, e não tinha sequer o direito de determinar o futuro dos filhos. Mas Marx, pelo que li, opunha-se a qualquer coisa que se denominasse “amor livre” e certamente respeitava os laços tradicionais de casamento.
Engels era muito mais inflexivelmente contrário ao casamento, que, dizia, inibia não apenas a mulher, mas também o homem. Em sua vida, ele se relacionou com duas mulheres – uma morreu bastante moça e Engels então se ligou a sua irmã mais nova – com as quais não se casou. E quando a filha mais moça de Marx pediu que Engels opinasse se devia desafiar a sociedade e ir morar com um homem casado, ele não procurou dissuadi-la.
Tenho certeza de que, embora vendo essa questão de maneiras diferentes, eles teriam concordado em que, desde que a união garantisse a duas pessoas – e a seus filhos – felicidade, saúde, segurança etc., então deveria consumar-se, sem preocupações com normas sociais. O cuidado principal era que não houvesse nenhum tipo de coerção, nem maus tratos.

Valor: Os relatos sobre o casamento de Marx e Jenny são marcados pela ideia de que se tratava de uma união quase perfeita, tanto afetivamente, como intelectualmente. Não haveria a possibilidade de o relacionamento deles se caracterizar também por uma certo grau de neurose? Jenny vinha de uma família rica e aceitou viver em condições literalmente miseráveis. Enquanto isso, Marx permitiu-se moldar a vida familiar de acordo com seus interesses pessoais, de um modo claramente egocêntrico...
Mary: Pode-se dizer, em retrospecto, que o amor de Marx e Jenny foi duradouro e que Jenny ajudou Marx a produzir algumas das mais importantes obras de todos os tempos. Através dos anos, porém, houve vários períodos em que a tensão no relacionamento entre eles foi severa – principalmente, por causa de atitudes de Marx. Marx era extremamente egocêntrico – eu me atreveria a dizer que, nesse aspecto, não era diferente de muitos artistas ou outros grandes pensadores – e teria posto à prova a paciência mesmo da mais equilibrada das mulheres. Jenny, no entanto, não era completamente estável. Mesmo sendo uma mulher forte, e penso que ela demonstrou sua força interior ao longo da vida com Marx, tinha uma tendência para a depressão, que frequentemente resultava em males físicos. Então, o egocentrismo de Marx e a depressão de Jenny traziam dificuldades, para dizer o mínimo.
Acredito que a força do relacionamento deles se devia ao fato de que ambos estavam comprometidos com uma coisa muito maior do que eles próprios. Mais de uma vez, quando suas vidas pessoais se mostravam mais desalentadoras – por causa de dívidas, ou pior, por causa da morte de uma criança, o filho Edgar – foi o trabalho político, na verdade, que ajudou a reequilibrar o relacionamento, e suas vidas.

Valor: A vida sexual de Marx fora do casamento refletiria, talvez, um modo enviezado de confrontar a moralidade burguesa? E sua hesitação em opor-se à família como instituição não constituiria outro elemento de uma moldura de relações conflituosas com sua própria vida?
Mary: Não se conhece a extensão que teria tomado a vida sexual extraconjugal de Marx. O único incidente comprovado deu-se em 1850, quando ele engravidou Helene Demuth, a empregada da família. Marx deixou-se atrair por várias outras mulheres, sem dúvida, e parece ter sido correspondido. Se alguma coisa aconteceu para além do que seria imaginável como flertes típicos da era vitoriana, não se sabe. Então, não penso que o comportamento de Marx fosse na verdade uma afronta consciente à moralidade burguesa. No caso do incidente com Helene, penso que ele estava completamente desesperado e voltou-se para ela não tanto por sexo, mas por consolo. Estava sozinho em Londres com as crianças, sem dinheiro, sob ataque dos adversários, e sem uma visão de futuro. Mesmo sua grande obra parecia perdida em meio à batalha diária pela sobrevivência. Ele se voltou para Helene como um amigo e ela o consolou da maneira mais íntima possível.
Na verdade, Marx comportava-se bem, se considerarmos o que era permitido a homens de sua classe no século XIX. Ter amantes era a norma. Homens considerados de respeito frequentavam prostitutas. A sociedade não punia um homem por desviar-se de certos padrões morais. Isso é, porém, mais uma evidência da inferioridade da mulher, na época, por se esperar que aceitasse tal comportamento sem reclamar. Não estou defendendo Marx. Apenas, não penso que se tratasse efetivamente de uma questão, em relação a ele – exceto, naturalmente, pelo fato de que teve um filho com Helene, que ele nunca reconheceu como seu.
E essa atitude de abandono está muito mais em conflito com o modo de ele pensar do que qualquer relacionamento extra-conjugal em que possa ter se envolvido. É também uma coisa que não fui capaz de absorver em meus estudos de Marx: como um homem que dizia gostar tanto de crianças pôde abandonar seu único filho sobrevivente. Imagino que ele tenha tido que tomar uma terrível decisão, como muitos de nós no curso de nossa vida, que, uma vez tomada, foi mantida. Mas é uma contradição, em relação a seu caráter e a suas convicções, que, para mim, continua a assombrar sua história.

Valor: É bem conhecida a concepção materialista da história desenvolda por Marx e Engels, mas a posição da família nessa moldura filosófico-metodológica parece nebulosa. Seu livro estaria trazendo alguma contribuição para tornar mais clara a questão da família no pensamento de Marx? Outras questões teóricas ou doutrinárias teriam merecido igual atenção de sua parte?
Mary: Essa é uma questão interessante porque, embora o foco de meu livro seja a família de Marx, não descrevo especificamente como a estrutura ou as relações familiares podem ter se contraposto às teorias dele. Acredito que isso ficaria claro no transcorrer da história da família e o leitor poderia chegar a suas próprias conclusões. Obviamente, a maneira como Marx criou suas filhas estava longe do [que se recomendaria segundo] o comunismo tradicional ou mesmo o socialismo. Contudo, mesmo enquanto eram educadas como mulheres burguesas, elas estavam imersas na teoria do pai e aceitavam suas ideias como corretas, não somente para elas mesmas, mas para o mundo. O Marx sobre o qual escrevi era dois homens – um teórico profissional e um pai – e os dois tinham diferentes missões. O primeiro tinha a mente voltada para a salvação do mundo. O outro, queria salvar a família. Os métodos usados por um e por outro foram muito diferentes e de certo modo, ironicamente, o primeiro foi mais bem-sucedido do que o outro.
Seria pretensioso de minha parte dizer que esclareci qualquer aspecto da teoria de Marx. Tantos homens e mulheres brilhantes dedicaram suas vidas ao estudo e explicação da teoria de Marx que não me atreveria a me colocar entre eles. Escrevi uma biografia de Marx e sua família com o intuito de apresentar os leitores ao homem e à sua vida pessoal, de modo que fôssemos todos ajudados a ter noção adequada do lugar onde suas ideias eram produzidas [sua casa, sua família] e como sua própria vida as afetava. Acredito que, compreendendo-se o homem Marx, seja mais fácil compreender o teórico Marx.”
Valor: Entre as cartas da correspondência trocada entre Marx, Engels e Jenny que você consultou em busca de informações para seu livro, quais considera mais relevantes para os propósitos de sua pesquisa? E quais mais a impressionaram pessoalmente, como leitora?
Mary: Examinei milhares de páginas de correspondência no transcorrer de minha pesquisa. É difícil especificar alguma que me pareça mais relevante que outras. Posso dizer que trabalhar com essa rica coleção de palavras me proporcionou um prazer absoluto. Não consigo dizer como foi emocionante “ouvir” os vários personagens conversando por meio de suas cartas. Durante anos, houve uma troca diária de cartas entre os principais personagens, e por meio delas senti que poderia ouvir as mais íntimas conversas da família. Tive ainda mais sorte porque os personagens eram tão maravilhosos escritores de cartas. Suas descrições eram coloridas, suas emoções livremente expressas, e sua linguagem livre de censura. As cartas são realmente a espinha dorsal de meu livro, e acredito que me ajudaram a produzir um retrato tão íntimo quando possível de um homem e dos que estavam à sua volta, mortos há mais de um século. As cartas trazem os personagens de volta à vida de uma maneira extremamente calorosa.
Mas devo mencionar uma carta particularmente entristecedora, aquela em que Marx fala a Engels sobre a morte de seu filho Edgar, aos 8 anos. Depois de descrever sua imensa dor e solidão, Marx escreveu: “Em meio a todos os terríveis tormentos que precisei suportar recentemente, o pensamento voltado para você e sua amizade sempre me encorajou, assim como a esperança de que ainda há alguma coisa para fazermos juntos no mundo”. É como se Marx procurasse tornar sua profunda tristeza em algo que pudesse beneficiar a humanidade.
Outra carta que me impressionou foi uma que Engels escreveu para um amigo em Nova York, em 1853, na qual descreve o que esperava acontecer às ideias dele e de Marx no futuro e por que era tão importante que as pusessem por escrito para a posteridade. Seus receios de que experimentos políticos fossem implementados apressadamente com base em suas ideias -- que acabariam por fracassar -- soam como se ele previsse as interpretações equivocadas das ideias de Marx que se fariam no século XX. Mas Engels disse que ele e Marx estariam protegidos de acusações de serem brutos e estúpidos porque teriam se teriam documentado em sua literatura. Penso que isso é muito importante para nós, hoje. Não deveríamos ler interpretações de Marx e Engels, mas deveríamos ler Marx e Engels eles mesmos, para chegar à mais exata compreensão de suas ideias.
Túmulo de Marx, no cemitério de Highgate, em Londres:
sua mulher, Jenny, morta cerca de dois anos antes dele,
também está sepultada ali

Valor: Não lhe desse Engels o apoio financeiro que foi tão importante em sua vida, Marx teria tomado atitudes diferentes na condução de sua vida pessoal e familiar? E intelectualmente falando, quem poderia ser “Marx sem Engels”?
Mary: É difícil imaginar que haveria um Marx sem Engels. Engels não apenas proporcionou equilíbrio a Marx, intelectualmente , conectando a teoria de Marx com o mundo real, mas proporcionou os meios financeiros para Marx e sua família sobreviverem – mesmo depois da morte do próprio Engels. Não posso honestamente imaginar que Marx pudesse encontrar uma outra pessoa que não apenas lhe fosse intelectualmente compatível, mas também tão enormemente generosa e disposta ao autosacrifício. E sem aquele apoio Marx não teria nem os meios nem o tempo para escrever. Ele poderia ter sido um grande ativista sem Engels, mas me pergunto se poderia ter sido também um grande teórico.

Valor: Quem seria Marx sem Jenny?
Mary: As relações com Engels foram muito mais importantes para o Marx que reconhecemos historicamente do que seu relacionamento com Jenny. Penso que, se Jenny Von Westphalen não tivesse existido em sua vida, Marx ainda teria sido um importante teórico e ativista, mas provavelmente teria tido muito menos “coração”. Jenny humanizou Marx e o fez sentir os sofrimentos e as alegrias da vida normal. Sem isso, Marx, que tinha uma tendência para ser frio e cerebral, teria, sem dúvida, se recolhido a uma vida intelectual, e só. Ele era notoriamente irritadiço e arrogante com seus adversários e provavelmente teria sido pior sem a influência de Jenny. Penso que Jenny também ajudou a fazer de Marx mais que um filósofo. Sua influência, como a de Engels, ampliou sua perspective de modos muitos importantes. Ela injetou um pouco de poesia na vida de Marx e, por extensão, em seus escritos.

Valor: A senhora diz que, logo após o sepultamento de Marx, seus seguidores começaram a higienizar sua história, de maneira que esse “deus socialista” não parecesse humano. Exceto, talvez, por alguns excessos, não seria o caso de compreender essa “higienização” não como uma tentativa de fabricar um mito, mas apenas uma espécie de descrição compreensível num trabalho convencional de propaganda?
Mary: Sim, de fato é propaganda convencional, embora eu entenda que havia um tanto de mitificação envolvida já no princípio. Quando da morte de Marx, os socialistas, na Europa, apenas começavam a ganhar espaços significativos nos parlamentos nacionais e, então, a última coisa de que precisavam era dar aos partidos no poder munição contra eles na forma de rumores sobre os excessos pessoais de Marx. Mas penso que também havia o senso de que, na morte, Marx deveria tornar-se maior do que em vida, para servir como uma espécie de farol para futuras gerações. Depois da Primeira Guerra Mundial, antes da assim chamada Terceira Internacional (ou Comintern), as ideias de Marx foram transformadas a ponto de se tornarem irreconhecíveis. Ele então tornou-se de fato um “mito”. Finalmente, nas mãos de Stalin, foi reduzido a nada mais que uma figura decorativa, porque a substância de sua obra não se encaixava no modelo soviético.

Valor: O retrato que a senhora pinta de Marx corresponde à imagem que tinha em mente antes de iniciar sua pesquisa e escrever o livro?
Mary: Marx não me agradava pessoalmente. Parecia-me que sua arrogância, demonstrada em público, também era evidente em sua vida familiar e que ele era patologicamente egoísta. Contudo, passei a gostar dele. Acho que comecei a sentir-me, em relação a ele, do mesmo modo que sua família e Engels: seus defeitos eram inegáveis e mesmo irritantes, mas ele era uma pessoa tão maravilhosa, poderosa e única que se poderia desculpá-lo. Senti-me em uma companhia rara enquanto lia suas cartas e obras, e falhas de caráter que talvez não perdoasse em outro homem perdoei facilmente em Marx.
Como pude conhecê-lo tão intimamente, também pude apreciar muito mais seu trabalho e compreendê-lo melhor. Causou-me profunda impressão ver como ele, vivendo como viveu, em tamanhas dificuldades e transtornos pessoais –por escolha própria, é certo – foi capaz de produzir algumas das mais importantes obras da história. Isso, quando a maior parte das pessoas em sua posição não seria capaz de produzir absolutamente nada. Marx costumava dizer que poetas são diferentes das pessoas comuns e, portanto, não deveriam ser julgados segundo padrões normais. Terminei meu projeto pensando o mesmo a respeito dele.
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Reportagem por CYRO ANDRADE de São Paulo
Fonte: Valor Econômico on line, 26/11/2011