Vivemos a passagem para o capitalismo do comum,
dos bens imateriais—diz Toni Negri.
E avisa: a transição não será pacífica
Toni Negri esteve quatro vezes na Argentina. Em 2002, 2005, em março deste ano e na semana passada, quando participou de um fórum de intelectuais organizado pela Secretaria de Cultura na Nação. Embora tenha se mostrado avesso a entrevistas, o pensador italiano aceitou responder a algumas perguntas formuladas pela revista Ñ Digital.
Antes de Buenos Aires, Toni Negri esteve realizando palestras em Santiago do Chile, onde aproveitou para expressar publicamente seu apoio ao movimento estudantil que está colocando o governo de Sebastián Piñera em maus lençóis. O italiano comparou os chilenos com os indignados espanhóis e estadunidenses, e com os ativistas da chamada primavera árabe.
Na Argentina, deu uma palestra na Universidade Nacional San Martín (Unisam) e outra no lançamento da revista Debates e Combates. Negri recordou a Cúpula das Américas de 2005, em Mar da Prata, onde parte do bloco latino-americano, dirigido pelo então presidente argentino, Néstor Kichner, disse não à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Também elogiou o movimento piquetero, e até se surpreendeu (ou fingiu supreender-se) quando lhe disseram que nem todos os movimentos sociais estão de acordo com a estratégia econômica do governo.
Você deu muita importância para o movimento dos indignados, mas também foi criticado por não propor uma forma de organização.
Sim, essa é uma das críticas que me fazem. Ontem me perguntaram como fazer para introduzir a noção comum num país como a Argentina, absolutamente atravessado por um conflito (latente ou não) entre o setor agropecuário e o governo, onde os desequilíbrios são notáveis. Bom, a verdade é que eu não sei como fazer isso. É um problema que os políticos argentinos deveriam resolver. Mas eu acredito que a questão dos indignados é produzida num contexto de relativa riqueza, como é na Europa e nos Estados Unidos, que, por uma série de manobras especulativo-financeiras que levam anos, explodiu. Explodiu deixando vários endividados, além de uma juventude que não tem recursos para atingir uma renda mínima. O homem de hoje é um homem explorado. É um homem endividado. Isso também é uma consequência da fossilização das estruturas sindicais clássicas.
Em que sentido isso se dá?
É uma questão velha, que discutíamos desde os anos 1970, quando nasce na Itália a Autonomia Operária, que é uma reação contra a burocracia do Partido Comunista Italiano (PCI), acomodado com a situação de mediador entre capital e trabalho, e corrompido por essa mesma mediação. A ponto—como se diz do outro lado—de que esse capitalismo não foi sequer capaz de distribuir a renda. Mas o problema atual é que a dissociação entre capital e trabalho não existe mais. A sociedade industrial está em transição para outra sociedade, onde o valor mais avaliado é—e será cada vez mais—a produção imaterial. A produção social da riqueza, estruturalmente, será um bem comum. O capitalismo cognitivo se organiza em torno de um bem comum, sem hierarquias, produz ideias, conceitos, é horizontal. Assim, o estudo desses procedimentos—com Michael Hardt—nos fez construir outra noção: o comum, que não é público nem privado, que se autogoverna.
É um compromisso? Diz respeito à crise de representação?
Não, de maneira alguma é uma solução de compromisso. É uma transição para outra forma de capitalismo, definida pelo valor imaterial das ideias. Nessa direção, pode-se falar de um capitalismo cognitivo, e voltar à necessidade de um novo pensamento sobre a emancipação. Precisamente porque a produção social do conhecimento é um bem comum, compartilhável, suscetível de solidariedade e reprodução por fora dos cortes impostos pelo sistema de acumulação baseado no fordismo que Michel Foucault tão bem definiu em seu momento. Estamos indo para um lugar novo, onde não se administra a coisa pública porque o deslocamento do valor é intangível.
Um bem comum—repito—não precisa de um centro de gravidade, a fábrica, o sindicato, o escritório. O próprio corpo, o pensamento operam no espaço público, geram seus atos, podem inventar saberes e formas de organização. Deixamos claro que a transição não será pacífica, e eu não acredito que será. Se não se pensa que os organismos internacionais de crédito são uma extensão dos bancos, não se entendem as medidas que está tomando a Europa para salvar a Grécia, endividando todos os seus habitantes.
A crise europeia é a crise
do capital financeiro.
Para repetir um velho ditado:
estamos na presença de algo que
não acabou de morrer e
algo que não acabou de nascer.
Não se entende o disciplinamento a que a Islândia está submetida, ou a Irlanda, que até muito pouco tempo eram consideradas exemplos de capitalismo “responsável”. Sobre a crise de representação, acredito que tudo já foi dito: só vou dizer que ela não é causada apenas por um aumento da demanda dos direitos sociais, mas também por essa divisão entre capital e trabalho. Porque precisará trabalhar sobre esse terreno baldio. E volto pela última vez a falar sobre Barack Obama, sua reforma do sistema de saúde. Ele pensou a reforma junto a movimentos sociais que o apoiaram para que alcançasse o governo. Mas, uma vez no governo, os abandonou. Agora, os movimentos sociais estão instalados em Wall Street, Los Angeles etc. E me animaria dizer que a reforma do sistema de saúde, que era pouco, mas melhor que nada, será boicotado. Não deveríamos ter vergonha de dizer que os presidentes desses países são reféns ou empregados da especulação financeira, dos bancos.
E qual seu julgamento quanto à América Latina?
É o único lugar do mundo onde os movimentos sociais têm certa potência, apesar da crise da forma-partido. Se articularam, mas não sem condições. O problema é que, na medida em que a crise monetária se agrava, também entra em crise a forma-Estado. E ainda não acredito que esse dilema esteja próximo de uma solução imediata. Se existem movimentos sociais, não é apenas por uma crise de representação, mas porque o público e o privado não se distinguem. Dependem dos mesmos insumos. E existe muita corrupção. Brasil, Chile, Argentina, Bolívia, Venezuela são laboratórios políticos: não estão totalmente nas mãos do capital, ao contrário da Europa. Centro-esquerda e centro-direita estão completamente subordinadas ao capital. A crise europeia é a crise do capital financeiro. Para repetir um velho ditado: estamos na presença de algo que não acabou de morrer e algo que não acabou de nascer.
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Reportagem Por Pablo Chacón, Revista Ñ
Tradução: Daniela Frabasile
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