Entrevista especial com Massimo Di Felice
“A revolução digital é hoje a última revolução comunicativa
que alterou, pela primeira vez na história da humanidade,
a própria arquitetura do processo informativo”,
constata o sociólogo.
“A revolução digital é hoje a última revolução comunicativa que alterou, pela primeira vez na história da humanidade, a própria arquitetura do processo informativo”. Isso se deu pela “substituição da forma frontal de repasse das informações (teatro, livro, imprensa, cinema, TV) por aquela reticular, interativa e colaborativa”.
É a partir desse contexto que o sociólogo ítalo-brasileiro Massimo Di Felice explica o surgimento de “uma nova forma de interação, consequência de uma inovação tecnológica que altera o modo de comunicar e seus significados, estimulando, ao mesmo tempo, inéditas práticas interativas entre nós e as tecnologias de informação”.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Di Felice, que também é coordenador do Centro de Pesquisa Atopos (ECA/USP), repassa diversos conceitos e abordagens pesquisados por ele, como netativismo, sujeito e território, pós-humanismo, redes digitais e sustentabilidade.
E também aprofunda sua reflexão sobre os desdobramentos das redes digitais, que exigem uma perspectiva reticular de análise, o que leva a uma superação da complexidade moriniana. “Quando falamos de rede não estamos falando de um sistema. Estamos, portanto, perante um tipo de complexidade não sistêmica, enquanto não composta nem subdivisível num conjunto de partes interdependentes, pois seus fluxos informativos não são lineares e suas dinâmicas interativas não são frontais”.
Massimo Di Felice é sociólogo pela Universidade La Sapienza de Roma e doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo. É professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo onde coordena o Centro de Pesquisa Atopos (ECA/USP), que desenvolve estudos sobre as transformações sociais promovidas pelo advento das novas tecnologias comunicativas digitais. É professor visitante da Libera Università di Lingue e Comunicazione (IULM) de Milão. É autor de ensaios e artigos editados na Itália em revistas acadêmicas tais como La Critica Sociológica e Agalma. No Brasil, coordena a coleção Era Digital, na qual é organizador das obras Do público para as redes (2008) e Pós-humanismo (2010); e a coleção Atopos (Editora Annablume), na qual publicou os livros Paisagens pós-urbanas: O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (2009) (obra traduzida em italiano e em espanhol) e Redes digitais e sustentabilidade: As relações com o meio ambiente na época das redes (2011).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos compreender a importância e o significado das redes digitais no contexto atual?
Massimo Di Felice – Como aconteceu em outras épocas da história, o advento de uma nova tecnologia comunicativa gera transformações qualitativas em todos os setores da sociedade. Marshall McLuhan foi um dos poucos autores do século XX, junto a Walter Benjamin, a observar a importância das mídias a das formas comunicativas no interior dos processos de transformação social. Nas ciências sociais, como é conhecido, difundiu-se no século XX um paradigma interpretativo que analisava a função social das mídias a partir de uma perspectiva instrumental que julgava a comunicação como uma simples atividade de repasse das informações entre os atores sociais e, portanto, atribuindo-lhes a simples função de veículo e representando-as como um conjunto de canais passivos e jamais intervenientes como partes ativas no processo.
Ao contrário, como observado por McLuhan, a função social das mídias não se limita ao seu conteúdo ou ao seu impacto social: “As sociedades sempre foram influenciadas mais pela natureza dos media, através dos quais os homens comunicam, do que pelo conteúdo da comunicação”. Daqui a necessidade de repensar a função social da comunicação que se estende para além do impacto social de seu conteúdo ou da sua função política. Descobre-se, assim, a partir dessa ótica, a importância estrutural da introdução de uma nova tecnologia da comunicação, do advento da escrita na cultura ocidental, da impressão no século XV, através da invenção de Gutenberg, assim como da eletricidade e das mídias de massa no século XX. A cada uma dessas revoluções comunicativas alterou-se não apenas a forma de comunicar – isto é, a quantidade do público atingido pela informação, reduzindo-se o tempo e os custos necessários a difusão –, mas também a sociedade inteira que passou por qualitativas transformações.
Revolução digital, revolução comunicativa
A revolução digital é hoje a última revolução comunicativa que alterou, pela primeira vez na história da humanidade, a própria arquitetura do processo informativo, realizando a substituição da forma frontal de repasse das informações (teatro, livro, imprensa, cinema, TV) por aquela reticular, interativa e colaborativa. Surge, portanto, uma nova forma de interação, consequência de uma inovação tecnológica que altera o modo de comunicar e seus significados, estimulando, ao mesmo tempo, inéditas práticas interativas entre nós e as tecnologias de informação.
É evidente como, perante tais perspectivas, se faz necessária uma nova teoria social das mídias e uma nova perspectiva dos estudos de comunicação. Não podemos mais pensar as mídias como “ferramentas”, instrumentos a serem utilizados, pois, ao utilizarmos novos meios, passamos a desenvolver novas formas de interação e experimentamos novos modos de comunicar, por exemplo, as redes sociais e os smartphones são portadores de inovação não apenas no âmbito tecnológico, mas também no social, sensorial, político, econômico e cultural.
Evidencia-se em tal perspectiva uma importante dimensão social da técnica que as ciências sociais abordaram geralmente de forma superficial, preferindo se concentrar na análise políticas dos impactos e de seus efeitos, valendo de uma perspectiva dialética que compreendia a técnica como algo externo ao social e, consequentemente, como uma ameaça às atividades humanas e à sociedade como todo. Se continuarmos a concentrar nossa atenção apenas nos efeitos dos “meios” e na dimensão política de suas mensagens, não conseguiremos mais entender as transformações sociais em ato e suas dimensões tecnossociais.
IHU On-Line – Em conferência recente, o senhor abordou o conceito de “pós-complexidade”, propondo um modo de pensar a comunicação digital a partir de um “paradigma reticular”. O paradigma complexo está superado? Que questionamentos as redes colocam à reflexão contemporânea?
Massimo Di Felice – As redes digitais, isto é, o conjunto de redes de redes, apresentam-se, antes de tudo, como um problema hermenêutico. Quando falamos de rede não estamos falando de um sistema. A forma rede é sempre um conjunto de redes de redes, isto é, um conjunto de conjunto de inter-relações, cujos limites ou perímetros são ilimitados e remetem, sobretudo, a mais de um sujeito.
Uma vez que o repasse de informações não é mais frontal (emissor-receptor), este acontece entre diversos membros e coletivos; a digitalizar-se não são apenas as relações comunicativas entre as pessoas, mas também os territórios, as mercadorias, os objetos, o meio ambiente, a natureza etc. Devemos pensar, portanto, o processo comunicativo em rede como um ecossistema e, portanto, sujeito como todos os ecossistemas a um conjunto de relações com os outros ecossistemas no interior da biosfera que torna cada um parte de uma rede de redes.
A delimitação de um ecossistema é uma operação arbitrária, legítima, contudo, não objetiva. Como nos explicam as ciências biológicas, quando nós falamos de um ecossistema qualquer, por exemplo, uma lagoa, nós estamos incluindo nesse o conjunto de populações vegetais, animais e minerais aí residentes. Porém, ao fazer esta soma, devemos incluir também as aves, parte das quais por metade do ano emigram para outras localidades, modificando com as suas ausências o meio ambiente, como também a ação do animal humano que resultará nas emissões de CO2, pela eletricidade pela difusão no território de elementos químicos, etc., estendendo o microclima e a delimitação ecológica dos ecossistemas, para além do perímetro da própria lagoa. Se acrescentamos a esses elementos a quantidade de chuva ou a luz do sol, elementos fundamentais para o normal funcionamento do ciclo de vida dos ecossistemas, entendemos que ele seja um conjunto de redes de redes indelimitável. Quando falamos de comunicação em rede devemos ter presente tudo isso.
“Somos rede”
Mas existe outro elemento decisivo que devemos levar em conta e que nos leva a superar a lógica do sistema. Esse elemento está relacionado à impossibilidade da visão externa do conjunto de redes de redes. A única forma para observar um processo reticular é fazer parte dele, experimentá-lo e, portanto, alterá-lo, modificá-lo, aspecto este que impossibilita a sua percepção objetiva. Acontece numa arquitetura reticular algo próximo ao que aconteceu no estudo da matéria na física, em particular, algo próximo ao princípio de indeterminação de Werner Heisenberg, que estabelece uma relação dialógica entre o observador e o objeto observado. Tal relação se dá não apenas no momento da observação, mas também na fase anterior e em todas as fases da pesquisa.
Como é conhecido, o estudo das partículas subatômicas pressupõe a escolha prévia de uma específica teoria da matéria, cuja opção irá determinar o tipo de objeto a ser observado. Portanto, o resultado do nosso pesquisar mudará conforme a nossa ideia de rede e o tipo de concepção de rede que elegemos antes de começar a observação. Como observou George Bateson, não podemos nos colocar externamente a um processo comunicativo reticular, pois estamos nele, fazemos parte dele, assim como ele nos compõe.
Estamos, portanto, perante um tipo de complexidade não sistêmica enquanto não composta nem subdivisível num conjunto de partes interdependentes, pois seus fluxos informativos não são lineares e suas dinâmicas interativas não são frontais. Parece-me que a perspectiva reticular supera a dimensão multicausal e aquela da reversibilidade da complexidade, apresentada por Edgar Morin na obra “O Método”.
IHU On-Line – Em seu livro Do público para as redes, o senhor propõe o conceito de “netativismo”. Em termos políticos, quais os avanços e os limites oferecidos pelas tecnologias digitais? Qual a sua análise das recentes mobilizações políticas ao redor do mundo, como o 15-O, e os novos fluxos comunicacionais possibilitados pela internet?
Massimo Di Felice – Esse antecipou e conseguiu descrever o que hoje está na mídia do mundo inteiro. Do WikiLeaks até a Primavera Árabe, aos Movimentos dos Indignados e às centenas de formas de ativismo e de conflitualidade que surgem e se multiplicam na rede, invadindo sucessivamente as praças e as ruas, derrubando governos e antigos ditadores ou criando movimentos que impulsionam novas formas de conflitualidade e práticas participativas horizontais.
"As sentenças de alguns teóricos que devem
a sua fama às suas posições políticas,
como Slavoj Žižek, erraram o alvo,
demonstrando a distância entre
as ideologias políticas modernas e
as dinâmicas das conflitualidades
contemporâneas."
Há anos venho estudando tais movimentos e tais práticas de conflitualidade que hibridizam nas ações as arquiteturas informativas virtuais com aquelas também virtuais dos espaços nacionais ou com aquelas arquitetônicas dos espaços urbanos. São movimentos e ações muito distintas entre si, surgidos em contextos diferentes e com tipologias e finalidades diversas. Mesmo assim podemos distinguir algumas características comuns destas novas formas de conflitualidade social.
A primeira está ligada ao aspecto de que são movimentos e formas de protagonismo que exprimem uma experiência de um tipo de cidadania tecnológica e de um tipo de ação social informativa realizada por um tecnoator, cujo âmbito de ação é expressão de um social não apenas antropomórfico, mas tecnoinformativo que nasce, multiplica-se e encontra seus significados em simbiose com as tecnologias da informação, numa dimensão que podemos definir transorgânica.
A segunda característica está no caráter atópico dessas formas de ações que superam o espaço nacional e urbano, ligando-se a outros movimentos parecidos ou expandindo o mesmo movimento em localidades diferentes, como no caso dos Indignados e da Primavera Árabe. Além da esfera pública nacional, tais formas de conflitualidades apresentam-se ao mesmo tempo como globais e locais.
A terceira característica é que são movimentos sem líderes nem hierarquia oficial. Às vezes existem porta-vozes, na maioria dos casos nem estes, e ninguém pensaria de se apresentar como o líder do movimento. Esse aspecto é absolutamente novo e incompreensível no interior da lógica política partidária e representativa.
A quarta característica é que são ações que não têm como objetivo, em sua maioria, a luta pela conquista do poder. Também esta é uma grande novidade se pensarmos que toda a história da conflitualidade no interior do ocidente – desde as disputa política no interior do Império Romano até a revolução iluminista e aquelas socialistas – teve como espaço de confrontação e como cenário único a luta pela conquista do poder. Às vezes através da busca da hegemonia por meio do debate e da confrontação democrática, outras vezes, através da luta armada. Esses movimentos não aspiram a conquista do poder – e isso é praticamente comum a todos –, mostrando uma preocupação mais profunda com uma transformação mais radical que realize mudanças mais profundas do que aquela alcançável com a mudança de um governo para outro.
Nova democracia
Nesse sentido e coerentemente com isso, tais movimentos não são partidários, não possuem bandeiras políticas ou ideológicas, mas fazem parte de um dinamismo que se articula ou pela resolução de problemas concretos ou pela mudança de posturas. Em todos os casos, enquanto fora das instituições políticas tradicionais, inauguram outra forma de conflitualidade, geralmente não violenta, e podem ser já considerados como o início de uma nova época da democracia, que parece se apresentar como a superação da democracia representativa e opinativa, uma vez que as tecnologias da informação permitem a participação direta e digital de todos. Tais movimentos não elegem representantes, mas exprimem a vontade de transformar os processos sem se limitar a opinar sobre os assuntos públicos, organizando-se em rede para as mudanças reais.
É necessário um novo olhar e novas teorias para compreendê-los. As sentenças de alguns teóricos que devem a sua fama às suas posições políticas, como Slavoj Žižek, erraram o alvo, demonstrando a distância entre as ideologias políticas modernas e as dinâmicas das conflitualidades contemporâneas.
IHU On-Line – Já em seu livro Paisagens pós-urbanas, o senhor faz uma análise das diversas formas de relação entre sujeito, mídia e território. Como sujeito e território se relacionam e que papel as mídias desempenham nesse contexto?
Massimo Di Felice – Esse livro foi o resultado de uma ampla pesquisa que durou dez anos e que havia como objetivo verificar a importância e o papel das mídias na construção das relações com o território e nas práticas habitativas. O livro foi bem recebido, traduzido na Itália e está em fase de publicação na Argentina, em Portugal e na França, dada a originalidade do argumento. Um dos conceitos-chave foi aquele do habitar, desenvolvido por Martin Heidegger que, ao analisar a dimensão relacional do ser e evidenciando seu dinamismo transformador, reflete sobre sua dimensão habitativa. Nela o ser encontrava sua essência dinâmica e não metafísica, na medida em que habitava em cima da terra em baixo do céu, perto de deuses e dos mortais.
Tal dimensão comunicativa do habitar abriu a possibilidade de pensar o papel da mídia como um elemento interveniente nas práticas habitativas, capaz de alterar a percepção do lugar e, ao mesmo tempo, de influenciar as relações com o meio ambiente. A partir de tais premissas, apontei para existência de três épocas habitativas, a primeira ligada à época midiática da leitura, a segunda àquela da eletricidade e da mídia de massa, e a terceira que se difundiu em seguida ao advento das mídias digitais. Três formas comunicativas e três práticas habitativas diversas.
A primeira eu defini empática e que se caracteriza como a condição habitativa ligada à interação com o meio ambiente através da leitura que reduz o mundo e a paisagem ao texto, criando o processo de transformação do território à imagem dos livros (cidades ideais), instituindo uma ligação entre o habitar, a escrita e o construir.
A segunda difunde-se com o advento da eletricidade e do processo industrial que inaugurou a experiência habitativa exotópica que descreve a experiência própria do indivíduo que habita um espaço desconhecido e autônomo que se apresenta a ele como paisagem em movimento e independente (cinema, escadas rolantes, elevadores e espaços metropolitanos modernos).
Enfim, a terceira forma comunicativa do habitar, a atópica, surge com a digitalização dos territórios e marca o advento de uma interação com o território e o meio ambiente em geral, não mais transitiva nem externa, caracterizada por um “genius loci tecnológico”, que intervém para permitir e alterar a condição habitativa. A nossa experiência do lugar e a nossa condição habitativa é, assim, resultado de uma mediação entre a nossa experiência com um determinado tipo de interface utilizada e o território. Algo que experimentamos nas nossas interações nos espaços wireless ou através da utilização dos smartphones e das tecnologias de sistemas informativos geográficos. Nesta a nossa condição habitativa é determinada e negociada com os fluxos informativos midiáticos, cuja consequência é a instauração de uma nova interação com o meio ambiente e um novo tipo de ação, nem ativa nem passiva, mas informativa e não mais em direção ao externo. Tornou-se, portanto, necessária uma nova teoria da ação que no livro sintetiza-se no conceito de atopia, do greco a-topos (algo fora de lugar, indizível, estranho).
IHU On-Line – No contexto do advento das mídias digitais, o senhor propõe repensar o humanismo e o antropocentrismo, como abordado em seu livro Pós-humanismo. Em que o humanismo e o antropocentrismo se tornaram “obsoletos” ou “superados”? Por outro lado, como podemos pensar hoje a relação entre o humano e técnica?
Massimo Di Felice – Longe de apresentar-se como uma questão de fáceis soluções, a relação entre sujeito e meio ambiente apresenta-se como uma questão, além de econômica, política e social, de qualidade filosófica.
A concepção antropocêntrica – que marca a cultura ocidental, desde a atividade filosófica de Sócrates, passando pelo pensamento medieval (Santo Agostinho) até o cogito cartesiano e a filosofia moderna reduzindo o mundo à “coisa” pensada e ao “objeto” externo, excluindo, portanto, por inteiro do seu convívio os elementos não humanos, biológicos e ambientais –, parece-nos hoje um dos principais obstáculos ao desenvolvimento de um pensamento ecológico. E, segundo o filósofo Michel Serres, deveria ser posto em debate:
“Esqueçamos, pois, a palavra ambiente (...). Ela pressupõe que nós, homens, estamos no centro de um sistema de coisas que gravitam à nossa volta, umbigos do universo, donos e possuidores da natureza. Isso lembra uma época passada, em que a terra colocada no centro do mundo refletia o nosso narcisismo, esse humanismo que nos promove no meio das coisas ou no seu excelente acabamento (...). É necessário mudar de direção e abandonar o rumo imposto pela filosofia de Descartes” (Serres, 1990, p. 100).
Por outro lado, a origem tecnológica da nossa percepção da natureza começa com o telescópio de Galileu. Desde então a técnica deixou de ser algo externo ao homem e começou a influenciar a sua forma de perceber e de habitar, estabelecendo em seu uso, para questões e projetos ambientais, uma nova aliança entre o orgânico e o inorgânico, a técnica, a informação e o meio ambiente.
“Homem fora de si”
A partir daí, não somente a técnica e os instrumentos de observação, como amplamente demonstrado pela física, passaram a alterar a nossa concepção da natureza, mas também começaram a estender o homem fora de si e, sobretudo, a produzir alterações técnicas da percepção do humano e a tornar esse último não mais o centro da natureza, mas parte de um processo revelador que acabava reinventado cada vez mais o humano, através das alterações das percepções da natureza produzidas através da técnica.
Como observado no texto Pós-humanismo (Ed. Difusão, 2010): “estas alterações se iniciaram, portanto, não apenas na época das redes e nos contextos comunicativos digitais. Pelo contrário, para dizê-lo, através de uma expressão concisa: sempre fomos pós-humanos. Pode se dizer que a parte ‘vencedora’ do humanismo, aquela que mais se impôs e se tornou hegemonia cultural, foi um longo parêntese do antropocentrismo, a síntese e o ápice do nosso narcisismo de espécie. Pensarmo-nos a medida de todas as coisas teve efeitos e consequências sobre o nosso ‘falar de nós’, sobre a nossa ‘autoconstrução’, e tem também permitido a edificação de uma estrutura conceitual certamente forte e útil, mas, ao mesmo tempo, rígida e exclusiva, fundada sobre a pretensão de autarquia em relação ao mundo, à vida e às coisas. As tecnologias da comunicação ajudam-nos agora a lembrar que o lugar do homem no mundo é algo de diferente do que definimos a partir do humanismo e durante toda a modernidade” (Di Felice & Pireddu, 2010, p. 15).
O conjunto de inovações tecnológicas e comunicativas que se difunde em nossa contemporaneidade redefine e altera o nosso cotidiano e os nossos sentidos, mostrando-nos a inadequação e os limites dessa percepção histórica e nos obrigando a repensar o absolutismo do princípio de autoformação e autodeterminação do humano.
Redefinição do humano
Desde a medicina, a biologia, a economia, a política até a comunicação, os elementos tecnocomunicativos nos permitem hoje o desenvolvimento de funções e atividades – anteriormente impossíveis –, que são a evidência do surgimento de uma nova relação (não mais definível em termos instrumentais) entre o orgânico e o inorgânico, entre o sujeito e o território, e que está contribuindo de forma qualitativa para a redefinição da nossa condição humana.
A abordagem de um pensamento além do humanismo torna-se necessária não somente para a compreensão plena da nossa condição contemporânea, mas também para repensar, a partir de um ponto de vista histórico mais amplo, a relação entre o homem e o mundo ao seu redor.
IHU On-Line – Uma de suas últimas pesquisas trata das “redes digitais e sustentabilidade”. Como o senhor percebe as interações sociais no ambiente digital nesse período de crise ambiental?
Massimo Di Felice – Uns dos campos que melhor exprime o reducionismo epistêmico da razão moderna é, sem dúvida, a dificuldade com a qual o pensamento antropocêntrico e positivista abordou a questão da natureza. A dramática urgência da questão ambiental que caracteriza a nossa época é o desvelamento do fracasso da lógica antropocêntrica e separacionista imposta pela razão e pelo pensamento ocidental. Na modernidade, o triunfo da razão instrumental (Theodor Adorno) e a imposição de uma separação identitária entre o homem (sujeito ativo e racional) e o meio ambiente (matéria-prima, recursos) amplificaram a concepção do caráter unidirecional dessa relação.
No entender de Serge Latouche [que estará no IHU entre os dias 22 e 25 de novembro], um economista estudioso das teorias do desenvolvimento e um dos teóricos da chamada décroissance sereine (decrescimento sereno), a hybris, a desmedida do homem no confronto com a natureza, praticamente tomou o lugar da antiga sabedoria da inserção em um ambiente desfrutado de modo racional. O que leva à pergunta: Teria sido, portanto, a nossa racionalidade enquanto “medida de todas as coisas” a fazer-nos perder a mesura, fazendo-nos destruir a capacidade de regeneração dos ecossistemas dos quais dependemos?
A proeminência das tecnologias comunicativas digitais se caracteriza essencialmente pela consolidação de uma rede cibernética que conecta seus usuários por meio de arquiteturas computacionais. Nesse contexto, fica praticamente impossível desassociar sujeitos, indivíduos, comunidades, circuitos eletrônicos, computadores, celulares, interfaces, cabos de fibra ótica, ondas de rádios e todos os demais elementos que fazem parte do fluxo informacional que ocorre nas redes digitais.
Em uma percepção mais conceitual, fica muito difícil definir (dar fim) e determinar onde terminam os dedos das mãos e onde começam as teclas do teclado enquanto se produz um texto já que ambos elementos, tanto o orgânico como o inorgânico, só são relevantes ao processo proposto quando funcionam em uma associação transorgânica.
Digitalização, conectividade e interações
A digitalização do território, a partir da introdução das tecnologias digitais de comunicação que transformaram o ambiente em código informativo, produziu, pela primeira vez, uma superação da distância entre sujeito e território, permitindo a alteração da natureza desse último e a interação e interdependência entre indivíduo e ambiente. Tal interação constitui uma prática comunicativa em que a relação entre o sujeito e o território deixa de ser dicotômica, correspondendo a um tipo de forma comunicativa do habitar. Uma vez reproduzido digitalmente o espaço, transformado-o em informação, configura-se a formação de um habitar informativo, pós-arquitetônico e pós-geográfico que, multiplicando os significados e as práticas de interações com o ambiente, nos conduz a habitar naturezas diferentes e mundos no interior dos quais nos deslocamos informativamente. Esse habitar atópico não constitui um “não lugar”, nem um metaterritório, mas é um outro ecossistema construído através de interações entre territórios, indivíduos e tecnologias informativas.
Esse processo de conectividade e de interações dinâmicas resulta numa concepção e numa cultura de um novo tipo de ecologia que compreende tanto os elementos orgânicos como aqueles tecnoinformativos.
Por meio dos fluxos informativos presentes nas redes digitais – e que expressam os próprios fluxos da vida do planeta, enquanto também sistema comunicativo tecnobiológico, tem mostrado, através de um processo de comunicação, o quanto o desenvolvimento antropocêntrico colocou o próprio homem em risco de extinção. E a própria Gaia tem nos revelado que o equilíbrio sustentável só é possível segundo um viés ecossistêmico no qual, seguindo a mesma lógica das redes digitais, não é possível considerar, pensar ou agir fora do próprio contexto coletivo da rede.
Aparecem assim os elementos para o desenvolvimento de uma nova cultura ecológica, feita não por elementos de diversas naturezas, interdependentes entre si e “interdialogantes”, mas por elementos simbioticamente unidos pelos fluxos informativos de redes que, comunicando-se, criam dinâmicas nem internas, nem externas. Torna-se necessário pensar um novo tipo de physis e, consequentemente, um novo tipo de ação não mais deslocativa e transitiva, mas atópica e reticular.
Michel Maffesoli descreve a nossa época como marcada pela volta de uma “pulsão selvagem”. Uma pulsão selvagem que transita ao mesmo tempo no animal e no tecnológico, uma ecosofia que proporciona contemporaneamente uma heteronomia das naturezas e o surgimento de novas peles, nem orgânicas nem inorgânicas, nem sedentárias nem nômades, nem internas nem externas, mas atuais. Esse novo tipo de pulsão selvagem, animal e tecnológica ao mesmo tempo, marca o advento de um novo tipo de ativismo.
Nova sensibilidade ecológica generalizada
A teoria de fundo presente em meu último livro, Redes digitais e sustentabilidade (resultado de uma pesquisa que obteve o patrocínio da Petrobras), no prelo pela editora Annablume e escrito em conjunto com os pesquisadores do Atopos e doutorandos, Julliana Cutolo e Leandro Yanaze, é que há uma relação estreita entre a cultura comunicativa – que se difundiu em seguida ao advento das redes digitais – e a difusão contemporânea de uma nova sensibilidade ecológica generalizada, visível nos conjuntos de práticas e presente nas preocupações políticas de governos e empresas, conhecidas pelo termo sustentabilidade.
Essa sensibilidade, de fato, apresenta-se como a expressão de uma nova cultura ecológica que exprime a percepção de uma sinergia reticular que não contrapõe mais o indivíduo ao território e ao meio ambiente, mas que parece substituir a esta oposição, as dimensões interativas de relações interdependentes e comunicantes. A difusão da demanda de produtos e alimentos biológicos, as políticas de redução de emissões de CO2, as práticas de reciclagem e a difusão das coletas seletivas municipais, as campanhas internacionais em defesa das florestas e espécies ameaçadas, independentemente de seus impactos reais, são ao mesmo tempo a expressão de uma diversa concepção do meio ambiente e o perfil de uma nova dimensão habitativa.
Na tradição ocidental, como conhecido, a nossa percepção do território e do meio ambiente, em geral, foi caracterizada pela invenção da externalidade, isto é, da suposta separação entre o homem e a natureza, baseada no mito bíblico da superioridade da espécie humana sobre as demais ou, no caso da filosofia, na redução dos elementos não humanos a objeto, “a coisa” inanimada, matéria a ser moldada, transformada e dominada. A supremacia do humano sobre a natureza e o território foi, por séculos, o pressuposto da condição habitativa que se manifestou através a manipulação e a domesticação do mundo “externo”.
Paralelamente à crise da externalidade e da separação entre nós e o meio ambiente, que se exprime hoje na consciência dos limites do desenvolvimento e na mensuração constante de seu impacto, a presença da questão da sustentabilidade em diversos contextos e setores exprime a consciência de uma dimensão habitativa relacional e conectiva.
-----------------------------------Fonte: IHU on line, 13/11/2011
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