quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O Enem de novo

Lya Luft*

 
Não quero desanimar nem transmitir euforia vã a ninguém: quero observe, dividir, questionar, alertar, e usar da voz que esta coluna me concede, para que ela não seja só minha mas de muitos que não a têm. Hoje me preocupa a questão da nossa insistente falta de competência para organizar, cumprir tarefas com eficiência, enfim, gerir – coisa da moda. Gestão: muita gente boa e ótima trabalhando nisso, tentando instituir e ensinar isso, mas, pelos nossos muito vícios tão antigos, parece uma missão quase impossível, se feita em escala maior.
Pois, pelo terceiro ano, o Enem, que deveria ser um modelo, um exemplo, um estímulo, abre seu flanco e falha. Enquanto escrevo, o ministério não decidiu se aceita anular todo o exame ou apenas parte das questões, e só num estado. Receio que seja um grave erro, pois no universo cibernético o que vaza, vaza imediatamente para toda parte, não há como evitar ou negar isso. Portanto, mais gente sabia do que vazou e não deveria ter vazado. Muita gente fez uso disso. Muita gente com sorte superou muita gente confiante, que gastou horas, dias, feriados, fins de semana, convívio com a família e os amigos, para se preparar. Sem falar na espera em fila diante dos estabelecimentos em que se realizariam os exames, nas informações erradas, no elevador sem funcionar ou com pouca capacidade, obrigando estudantes, depois de já desgastados, a subir vários andares pelas escadas, chegando à sala da prova esbaforidos e irritados. Como se tranquilizar, como se concentrar, como fazer uma boa prova?
Não entendo por que é tão difícil fazer as coisas com eficiência. Estradas, aeroportos, escolas, postos de saúde, hospitais públicos, universidades, deteriorados ou tendo como “remédio”, aqui e ali, um mísero band-aid para tão grandes feridas, ou uma promessa em geral vazia. Não somos povo burro. Não somos inertes. Somos mais acomodados do que deveríamos ser, distraem-nos facilmente o trio elétrico, a roda de samba (deliciosa, aliás), a bolsa família (que tem seu valor), e a gente se conforma. Isso é tão ruim quanto indignação hostil e agressiva. Violência nunca. Mas um movimento saudável, sim. E deveria partir de cima, de autoridades, ministros e seus auxiliares, todos os envolvidos no chamado bem do povo, pelo qual nem tantos se interessam.
"Pelo terceiro ano, o Enem, que
 deveria ser um modelo, um exemplo,
um estímulo, abre seu flanco
e falha"

Ainda o Enem: não vejo como repetir as provas num só lugar, se em várias partes do país se conheciam as questões vazadas. Justiça, injustiça? Ou anular o todo, submeter a nova prova a milhões de estudantes, admitir a própria incompetência (mais uma vez), solapando ainda mais a confiança nas autoridades ligadas à educação? Penso que, a repetir, repetem todos. Transtorno gigantesco, porque mais uma vez não fomos capazes de organizar o exame. Nunca fica claro por que razão a gente não consegue acertar. Falta de planejamento, é o mais provável, ou seria falta de pessoal para cuidar de tudo, apesar do incrível excesso de funcionários públicos no país? Se ele é grande demais, que se divida a administração do exame em estados.
Transparência – que na minha opinião usamos demais em relação a enfermidades de pessoas conhecidas, eu que aprecio o recato – significa explicar essas repetidas falhas. Queremos substituir o velho vestibular, julgando monstro de sete cabeças, por algo melhor? Façam como em lugares civilizados: atenção verdadeira e ampla para a educação, desde a escola elementar; muita seriedade, um bom 2º grau, exames finais de ensino médio rigoroso, segundo os quais os candidatos teriam seu lugar no ensino superior. Haveríamos de poupar enormes gastos com o Enem, poupando também alunos e autoridades desses fiascos tragicômicos que afetam a vida de tantos, multiplicadas as frustrações dos alunos pelo número de seus familiares diretamente envolvidos.
Quem sabe alguém tem uma ideia brilhante, passa a esponja nesse quadro-negro da nossa incapacidade e inventa algo melhor? Mudar é possível, escrevi há quinze dias. Não somos um país de simpáticos sacis-pererês, mas de gente que precisa (e urgentemente merece) do melhor.
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* Escritora. Colunista da Folha
Fonte: Revista Vejas impressa, 09 de novembro de 2011

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