Antonio Delfim Netto*
Grupos não pequenos de estudiosos insistem em atribuir a crise a uma organização social misteriosa à qual dão o nome genérico de "capitalismo", codinome da organização da atividade econômica em torno dos "mercados", instituição que os homens "descobriram" para coordenar a atividade de consumir bens e serviços e, ao mesmo tempo, estimulá-los a produzir de forma relativamente eficiente e com maior liberdade individual.
É preciso reconhecer que:
1) os mercados são meros instrumentos alocativos que tentam compatibilizar os interesses dos indivíduos no seu duplo papel;
2) obviamente, não há simetria de poder entre esses papéis; e
3) eles (os mercados) não podem funcionar (ou mesmo existir!) sem um Estado para regulá-los.
Essa economia de mercado não foi inventada. Há claras evidências de que os mercados existem desde a velha Mesopotâmia (500 anos antes de Cristo). Foi sendo "descoberta" pelos próprios homens na sua atividade prática de buscar instituições que lhes permitissem facilitar a sobrevivência material e a possibilidade de combiná-la com sua eterna busca de liberdade de iniciativa. Ela não é nem perfeita nem imortal. A grande esperança é que a ação do Estado que garante a sua funcionalidade, possa minorar seus defeitos com as políticas econômica (a flutuação) e social (a desigualdade).
A ideia que os mercados têm a capacidade de autocorrigir-se e que os resultados da distribuição de seus benefícios são "justos" ou "merecidos" - e que, portanto, dispensam a ação do Estado - é absurda. Tão absurda quanto a ideia que os problemas que estamos vivendo se devem apenas a eles, sem nenhuma cumplicidade do Estado.
Já passou da hora de os economistas livrarem-se de umas ingenuidades. A primeira é que Deus foi bom com eles deixando-lhes como objeto de estudo um mundo, cuja ordem poderia ser descoberta, como, por exemplo, o movimento dos astros. A segunda é o reconhecimento que, por mais importante que seja o papel do Estado, o poder incumbente está longe de ser onisciente e, logo, não precisa ser onipresente e, muito menos, pretender a onipotência!
A irresponsabilidade fiscal dos
Estados precisa ser superada
A história nos ensinou, e a experiência atual confirma, que o Estado precisa ser fiscalmente responsável! Não é preciso ser economista para entender tal "conta de padaria". A receita pública não pode ser, permanentemente, maior do que a despesa pública, não importa a "qualidade" ou a "necessidade" do gasto.
Se ele é imperioso e permanente, só há três formas de atendê-lo: 1) aumentando a eficiência do governo; 2) cortando despesa menos prioritária; ou 3) aumentando os impostos. É uma maldição aritmética desagradável que a relação dívida pública/PIB só possa ser estabilizada num nível cujo financiamento possa ser feito, permanentemente, com uma taxa de juros real menor do que a taxa de crescimento real do PIB.
Parece razoável concluir, portanto, que o que precisa ser superado é a irresponsabilidade fiscal dos Estados e a sua incompetência regulatória. Vivemos, basicamente, uma manifestação de Estados pouco cuidadosos fiscalmente e impotentes diante do poder econômico dos interesses financeiros. A crise de 2007/09, que se recusa a terminar, é a testemunha da tendência do setor financeiro de servir-se do setor real e de sua capacidade de apropriar-se do poder incumbente.
Os "indignados" sugerem trazer de volta ideias de cérebros peregrinos, que "inventaram" outros mecanismos de organização social. Os mesmos que rechearam de tragédias o século XX. É preciso insistir que, até agora, o mercado como instrumento alocativo relativamente eficiente não encontrou nenhum substituto, como mostram o fracasso soviético e o sucesso chinês.
A crise americana é menos grave do que a da Eurolândia, mas tem pouca probabilidade de terminar antes da eleição de novembro de 2012. E depois? Depois, valha-nos Deus se os intelectuais republicanos vencerem a batalha eleitoral! É uma pena. Os EUA têm tudo para sair mais depressa da crise. Faltam-lhes apenas uma liderança que reconstrua a confiança da sociedade.
Na Eurolândia, a questão é mais complicada. Ela tem, na verdade, quatro problemas:
1) um desalinhamento das moedas dentro do euro, que causa resultados assimétricos nos balanços de pagamentos;
2) um descontrole dos déficits públicos;
3) uma perspectiva de crise bancária; e
4) falta-lhe um Banco Central autônomo, que seja, de fato, o emprestador de última instância e possa organizar as dívidas dos países.
O jogo dialético civilizatório (apoiado no sufrágio universal) entre o mercado e a urna não é uma linha reta: pode sofrer graves e custosos desvios. O fato fundamental é que ele não resiste à irresponsabilidade fiscal. Quando essa leva as lideranças políticas à completa predominância do curto prazo sobre o longo, aproveitando-se de situações econômicas passageiras favoráveis para permanecer no poder, o mercado (isso é, a realidade fática) acaba cobrando o seu preço.
O Brasil pagou tal preço no passado. A presidente deve ser fortemente apoiada quando corta na carne o Executivo e pede moderação ao Legislativo, ao Judiciário e aos sindicatos. Nunca a solidez fiscal foi tão necessária para proteger-nos da crise mundial, que está longe de terminar. É por isso que a DRU deve ser aprovada.
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* Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Fonte: Valor Econômico on line, 29/11/2011
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