sábado, 5 de novembro de 2011

“Me interessam olhares monomaníacos”

ENTREVISTA ALAN PAULS ESCRITOR

Pauls: "A História do Cabelo"

O argentino Alan Pauls é um dos autores mais minuciosos da atual literatura em língua espanhola. E aqui não se usa minucioso no sentido que se usaria para um escritor de romances de aventura com muita pesquisa histórica como base, como Bernard Cornwell, por exemplo. Pauls é minucioso na maneira como descreve com um preciosismo ao mesmo tempo clínico e apaixonado, por paradoxal que pareça, os mínimos estados emocionais e os gestos mais cotidianos de seus personagens. Pauls é um autor miniaturista, capaz de escavar obsessivamente a gama complexa de emoções que fazem um tradutor vítima de um amor obsessivo perder seu domínio dos idiomas que traduz ou os medos atrozes que acometem uma criança de quatro anos ao descobrir o que a separação de seus pais implica – respectivamente, situações descritas por ele nos romances O Passado e História do Pranto, ambos lançados no Brasil pela Cosac Naify.
O Passado se tornou seu livro mais conhecido no país tanto pela boa recepção crítica quanto pela adaptação realizada para o cinema por Hector Babenco, com Gael García Bernal como o protagonista. É um romance alentado de 600 páginas sobre a longa descida aos infernos de Rímini e Sofía, um ex-casal que, cada qual por seu turno, não consegue se livrar do passado que tiveram em comum. Rímini não tem forças para resistir ao assédio obsessivo de Sofía, que exige dele um gesto simbólico de fim de relacionamento: a separação das fotos e cartas que ambos amealharam ao longo dos anos. A cada nova etapa da vida, quando já parece estruturado e liberto, Rímini se vê outra vez confrontado com Sofía e sua obsessão e observa, apático, enquanto a presença dela tritura sua realidade com seu peso e gravidade.
História do Pranto é o primeiro volume de uma trilogia que pretende abarcar os anos 1970 na Argentina. Entretece a complexa realidade política circundante com as sensações exacerbadas de uma criança muito sensível ao mundo. O segundo volume, História do Cabelo, está sendo publicado agora pela mesma editora, e terá sessão de autógrafos na Feira às 19h30min da próxima sexta-feira. Antes, às 17h30min, Pauls conversa com Luís Augusto Fischer sobre seu trabalho, na Sala dos Jacarandás do Memorial do Rio Grande do Sul. A trilogia ainda será completa com um terceiro volume, História do Dinheiro.
História do Cabelo aborda, ao enfocar um personagem obcecado com encontrar o que considera o perfeito corte de cabelo, as transformações comportamentais e políticas na Argentina dos anos 1970 – e esse é um efeito claro do estilo de Alan Pauls: reduzidos a um resumo, seus livros não parecem possíveis, não parecem sequer bons, mas é no efeito encantatório que ele consegue com sua precisão minuciosa que reside seu desconcertante efeito literário – como acontece na melhor literatura, a propósito.
Por e-mail, Pauls concedeu a seguinte entrevista:

Zero Hora – Em História do Cabelo, assim como em seus livros anteriores O Passado e História do Pranto, a narrativa captura com minúcia gestos, atitudes e rituais que são quase automáticos no mundo contemporâneo. É a função da literatura tornar complexas as realidades que temos como “normais” ou “comuns”?
Alan Pauls – Torná-las estranhas, no mínimo. Arrancar-lhes uma certa naturalizade que as torna invisíveis. E, acima de tudo, conectá-las com as coisas ou fenômenos ou contextos com que a priori não teriam muito a ver. O cabelo, por exemplo – fetiche frívolo – com as energias revolucionárias dos anos 70.

ZH – Os elaborados rituais que o protagonista de História do Cabelo cria para seus cortes de cabelo são paralelos a rituais místicos. É possível ler esse paralelo como um comentário sobre o momento em que houve uma transferência da metafísica do trascendente para o corpo?
Pauls – Não havia pensado nisso. O que eu me perguntava enquanto escrevia o romance é: no que o mundo se transforma quando é olhado através de um único elemento? Me interessam olhares monomaníacos, que pretendem explicar tudo por uma única chave. Nesse sentido, a relação de extrema exclusividade que o herói tem com o cabelo não é muito diferente da que tinham os militantes nos anos 1970 com a política.

Zero Hora – Dado que falamos de misticismo: seu modo de narrar é um “fluxo constante” que leva o leitor ao passado e ao presente, ao micro e ao macro. Sua intenção era tornar a própria narração um feitiço, um encantamento?
Pauls – Em algum momento tive a ideia de que o romance fosse escrito em uma única frase, longa e megalomaníaca. Depois reconsiderei e me conformei em fazer o leitor sentir que estava escrita dessa forma. Mas gosto que a história tenha um efeito ambiental, de ecossistema, de habitat, e que as frases funcionem como lugares onde o leitor possa passar por diferentes estados: vertigem, êxtase, letargia, sonho, alucinações etc. Como um parque de diversões um pouco lisérgico.

ZH – O pranto, o cabelo e, mais tarde, o dinheiro. São os títulos dos três episódios de sua trilogia sobre os anos 1970. Em sua leitura esses três temas de alguma forma resumem a Argentina da década?
Pauls – Mais que temas, são relíquias de uma época: a sensibilidade (pranto), a imagem (cabelo), a economia (dinheiro). Eu as uso como fósseis, como se trouxessem gravados os segredos mais baixos, íntimos e sentimentais de um momento histórico – os anos 1970 na Argentina – que até agora só se aceitava apresentar com ares da aventura militante e da épica revolucionári. História do Cabelo é o segundo volume de um tríptico que busca investigar tudo que as armas devem à intimidade e tudo que a intimidade deve às armas.

ZH – Escrever um livro sobre o cabelo e suas mudanças e torná-los o centro de todo um romance, como o senhor fez, parece um feito de grandes proporções. Esse desafio também o motivou a eleger esse tema em particular ao dar início a esse livro?
Pauls – Bom, de Flaubert para cá, a literatura é feita dessas desproporções, não? Mas não: o cabelo – como o pranto e o dinheiro – já estava lá bem no início do projeto, quando tive a ideia de escrever um tríptico de romances curtos ao redor da década de 1970 – a primeira parte da década, a parte do sonho revolucionário. Me interessava entrar naquela época por alguma porta lateral, menor, que me permitisse escapar dos lugares comuns associados a ela. Esses três elementos cumprirão essa função.

ZH – O Passado recebeu boas críticas no Brasil e foi adaptado para o cinema por um diretor com filmografia ligada ao cinema brasileiro, Hector Babenco. Depois disso, sua obra está sendo publicada por aqui com regularidade. Esse contexto torna especial esta visita?
Pauls – Na realidade é um regresso: estive em Porto Alegre em 1996 ou 1997, apresentando a primeira edição brasileira de um dos meus livros, Wasabi, publicado na época pela Iluminuras, uma editora superpioneira. Através de Porto Alegre descubro que tenho uma relação com o Brasil maior e mais fiel do que acreditava.

Memória capilar

ANTÔNIO XERXENESKY*

Alan Pauls consegue convencer uma pessoa a ler descrições de qualquer situação, por mais banais que sejam. O autor argentino tem se mostrado um estilista tão poderoso que é capaz de tornar uma cena enfadonha, como um demorado corte de cabelo no salão de beleza, em algo digno de ser lido em voz alta. Como? Compondo parágrafos cuidadosamente estruturados, com frases que vão se alargando e se expandindo no tempo. Tudo isso, no entanto, seria virtuosismo vazio se Pauls não fosse igualmente ambicioso em termos de conteúdo.
O argentino é autor de um brilhante ensaio sobre Borges (El Factor Borges, ainda inédito no Brasil) e de O Passado, um volumoso romance que versa sobre o relacionamento obsessivo entre um homem e uma mulher. Este último foi levado para o cinema por Hector Babenco, uma adaptação sem sal, que não capta nem metade das nuances da obra original. O Passado pode ser lido de diversas formas: como uma investigação sobre a natureza do amor, uma desconstrução da figura masculina ou um estudo sobre a relação entre amor e arte.
Os dois livros mais recentes de Pauls, História do Pranto e História do Cabelo, são obras breves, mas não menos poderosas. Fazem parte de uma trilogia ainda inacabada, que pretende dar conta da história da Argentina. O diferencial está no fato de que a história do país não é abordada diretamente. Pelo contrário: é contada a partir de coisas mínimas. Enquanto o livro História do Pranto é focado no ponto de vista de uma criança sobre eventos complexos e ambivalentes, História do Cabelo se vale da metáfora dos cortes de cabelo de um homem para representar toda a vida do indivíduo e sua relação com a história argentina – o que inclui o período assombroso da ditadura, ainda viva e pulsante na memória coletiva.
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*POR ANTÔNIO XERXENESKY ESCRITOR, AUTOR DE “A PÁGINA ASSOMBRADA POR FANTASMAS” (ROCCO, 2011)HISTÓRIA DO CABELO
Cosac Naify, 2011
168 páginas, R$ 45

Inovador e típico

Nascido em Buenos Aires, Argentina, em 1959, o escritor Alan Pauls é licenciado em letras, professor universitário, tradutor e colaborador em suplementos culturais, tanto em crítica cinematográfica quanto literária. Escreveu ensaios sobre literatura argentina, particularmente sobre as obras de Roberto Arlt, Jorge Luis Borges e Manuel Puig.
Em 2010, a publicação de A História do Cabelo, pela editora argentina Anagrama, notabilizou-o como um dos mais brilhantes escritores da nova geração. A edição concretizou o segundo volume da trilogia sobre os anos 1970, que incluem O Pranto, O Cabelo e O Dinheiro, designados pelo autor como os grandes fósseis e obsessões da época em questão.
A despeito da influência francesa, Pauls confessa sentir-se tão endogâmico como todo bom escritor argentino. Para o psicanalista e escritor Contardo Calligaris, os personagens de Pauls circulam por interiores abarrotados de restos do passado: livros, fotografias, quadros, os inúmeros objetos que, a cada mudança de casa, confirmam que nunca conseguimos deixar para trás os vestígios de nossa vida pregressa.

O PASSADO

“Não tive intenção de homenagear Fellini (Rímini, o protagonista, se parece com Rimini, cidade natal do cineasta italiano Federico Fellini, mas também ecoa Francesca da Rimini, que Dante retrata ao lado do amante no ‘Inferno’ da ‘Divina Comédia’). Necessitava de um nome especial, ambíguo, que pudesse ser lido ao mesmo tempo como prenome e sobrenome, e Rímini cumpria esse função. Pensei em Fellini, claro, mas pensei a posteriori, quando as Mulheres que Amam Demais – a célula político-sentimental que na novela faz do excesso de amor uma bandeira – conduziram-me a ‘Cidade das Mulheres’, talvez o filme de Fellini que menos me interessa. O cinema é tão importante para mim como a literatura; estão no mesmo nível. No entanto, as influências do último não são diretas. São oblíquas. Em ‘O Passado’, aparecem explicitamente ‘Rocco e seus Irmãos’, de Luchino Visconti, e ‘A História de Adèle H.”, de François Truffaut, dois filmes dos quais sempre gostei. Porém, se tivesse de eleger uma sombra cinematográfica que paira sobre essa novela, diria, talvez, ser ‘Love Streams’ (‘Amantes’), de Cassavetes, que se insinua na frase-mantra ‘O amor é uma torrente contínua’. Além disso, nos maiores zoom in e zoom out que existem na novela e me permitem passar de um primeiríssimo plano de cinco páginas a um plano geral, reconheço a marca formal da linguagem cinematográfica. “

Cosac Naify, 2007
480 páginas, R$ 69

Rímini, um jovem tradutor, é o protagonista do período posterior ao fim de uma relação conjugal de 12 anos com Sofía, idealizadora de um grupo chamado Mulheres que Amam Demais. Ele busca em novas parceiras uma forma de anular o passado.
“Plagiei (ao intitular o livro ‘História do Pranto’) Santo Inácio de Loyola e Roland Barthes. Eles sonhavam com uma história das lágrimas. E eu gosto da idéia de fazer uma história de coisas pequenas, físicas, íntimas, que aparentemente não merecem uma história. (...)
Estou cansado da História com maiúsculas, dos Grandes Feitos, dos Heróis, das Tragédias. Cansado da história que se deixa reger por hierarquias e sistemas de dignidade e indignidade que nunca são postos em discussão. É o que se passa com a década de 1970 na Argentina. Tal como eu penso, a intimidade é o espaço para anular essas hierarquias e privilégios. Em ‘História do Pranto’, os sinais de intimidade (um gesto, uma relação de proximidade, a temperatura de um corpo), são imediatamente históricos, enquanto os sinais da história (um golpe de Estado, um golpe guerrilheiro), são íntimos e repercutem no corpo. (...)
Não concebo a linguagem como algo transparente, uma ‘janela’ que deveria desaparecer para ‘comunicar’, mostrar ‘uma história’, ou ‘a realidade’, ‘o mundo’. Para mim é algo opaco, denso, cheio de camadas, onde gosto de cavar poços e túneis como um rato. Gosto das frases que duram até se converterem em lugares. Frases-habitat. Quando a frase se expande, se revela mais parecida com a memória. Vai e vem e se perde, voltando a se encontrar. Interessa-me a frase que obriga o leitor a passar por esse mesmo processo. (...)
Não acredito que a literatura atual seja mais individualista que a de décadas anteriores. Acho apenas que tenha entrado para o regime de hipervisibilidade que define a sociedade contemporânea. Ao longo dos séculos, a literatura sempre tem dito ‘eu’. Isso não é sinônimo de individualismo: os ‘eus’ da boa literatura são plurais e povoados. A diferença, agora, é que esse ‘eu’ se vê de imediato e circula como um raio por essa grande tela em que se converteu a vida. Quanto ao fenômeno ‘blog’, gosto de ler blogs no seu contexto eletrônico.”
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REPORTAGEM POR CARLOS ANDRÉ MOREIRA
FONTE: ZH/CULTURA on line, 04/11/2011

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