João Pereira Coutinho*
Os mesmos cientistas que demonizam
Egas Moniz não estão livres de ser
um dia olhados com desprezo
José Saramago não foi o primeiro Nobel de língua portuguesa. Antes dele, houve outro.
Às vezes, gosto de abismar o meu auditório com essas manifestações de erudição. Gera-se espanto, curiosidade, a pergunta inevitável: "Quem foi?".
E eu, com uma voz indiferente e ligeiramente pedante, concedo: "Egas Moniz, obviamente, médico e cientista". O auditório fica ao rubro. As madames, abanando os seus leques, procuram saber mais. Os cavalheiros acariciam os bigodes e imaginam descobertas heroicas para o destino da humanidade: uma vacina, uma cirurgia, uma cura!
É hora da estocada final: "Egas Moniz tornou possível a lobotomia". E, com prazer sádico, ainda acrescento: "Nunca assistiram ao filme 'Um Estranho no Ninho' [1975]?".
Gritos de horror. Desmaios. Alguém pega num crucifixo e abjura o meu nome.
Egas Moniz (1874-1955) era o meu fantasma preferido em jantares sociais. No Brasil, nunca falhava.
Infelizmente, João Lobo Antunes estragou a festa. Informação: João, irmão do romancista António, é um um neurocirurgião português. E a biografia que escreveu sobre o Nobel ("Egas Moniz: Uma Biografia") vai demolindo, com elegância e serenidade, os mitos e as maldades que sobre Egas se escreveram.
Primeiro que tudo, temos um homem, não um monstro. E que homem: nascido no norte de Portugal, em Estarreja, corria 1874, António Egas Moniz conheceu a morte demasiado cedo. A morte dos seus familiares próximos, entenda-se, de tal forma que, ao concluir medicina na Universidade de Coimbra, em 1899, já não restava ninguém para o ver doutor.
Nada que impedisse uma carreira fulgurante: na universidade, certamente, onde escreveu os primeiros estudos sobre a sexualidade humana (uma delícia!).
Mas também na política, na qual foi conspirador antimonárquico e, deposta a monarquia portuguesa (em 1910), parlamentar republicano, ministro das Relações Exteriores e presidente da delegação lusa na Conferência de Paz, em Paris, depois da Grande Guerra de 1914-1918.
Mas a política não era o território preferencial de Egas. Abandonou-a cedo para se entregar à medicina. Primeiro, à clínica, onde se fazia pagar bem e tinha como doentes Mário de Sá-Carneiro e um tal de Fernando Pessoa.
A ciência viria mais tarde. Demasiado tarde, dirão alguns; os mesmos que, ironia do destino, teceram iguais sentenças quando Saramago, já na meia-idade, se dedicou à literatura.
Egas Moniz tinha mais de 50 anos quando ofereceu à medicina a primeira descoberta -uma descoberta que, por si só, era merecedora de um Prêmio Nobel.
"Angiografia cerebral", eis o nome. Tradução: um método de diagnóstico que permite visualizar a morfologia dos vasos intracerebrais -ou, como escreve Lobo Antunes, um "retrato" que localiza o "inimigo" dentro da caixa craniana.
E o inimigo podia ser um tumor. Uma malformação. Um aneurisma cerebral. Ainda hoje é o método de diagnóstico "gold standard" em certas patologias e permitiu mesmo o desenvolvimento de outras técnicas de intervenção nas neurociências.
Mas não foi a angiografia que imortalizou Egas. Foi a lobotomia - ou, para sermos rigorosos, a "leucotomia pré-frontal", que lhe trouxe o Nobel em 1949. Trata-se de um procedimento cirúrgico que, ao cortar a substância branca da porção pré-frontal do cérebro, permitia o tratamento possível para vários transtornos mentais sem medicação disponível à época.
É fácil, hoje, olhar para o procedimento e recusá-lo. Sobretudo para quem vive num mundo saturado de medicamentos psicotrópicos e encara a leucotomia como um erro irreversível -e imperdoável.
O problema é que a história será sempre um erro irreversível e imperdoável para os que chegam depois.
Esse talvez seja o grande mérito do livro de João Lobo Antunes: mostrar que o pecado do anacronismo não é um exclusivo das humanidades. As ciências cometem-no com demasiada ligeireza.
Um pouco de humildade seria aconselhável nessas matérias.
Até porque os mesmos cientistas que demonizam Egas Moniz, e até pretendem retirar-lhe postumamente o Nobel, não estão livres de ser um dia olhados com igual desprezo e horror pelas superiores gerações vindouras. Só critica fantasmas quem acredita ingenuamente que jamais será um.
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* Jornalista português. Escritor.Colunista da Folhajpcoutinho@folha.com.br
Fonte: Folha on line, 22/11/2011
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