sexta-feira, 18 de novembro de 2011

''O aborto terapêutico é ético'', afirma o padre jesuíta Carlos Novoa

O padre Carlos Novoa SJ, doutor em Ética e professor da Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá, afirmou, em entrevista ao diário El Espectador, que “o aborto terapêutico é ético” e que a vida humana é um bem que necessita de proteção especial, mas não um bem absoluto. Sobre a decisão da Corte Constitucional que despenaliza o aborto em três situações, o jesuíta disse que discorda “como sacerdote", mas como cidadão considera "aceitável”.

Carlos Novoa, que foi reitor da Universidade Javeriana, publicou um artigo há alguns anos no qual afirmava que após assistir várias vezes ao DVD da última turnê da cantora Madonna, defendia a sua polêmica "crucificação", reivindicava o uso do nu e sugeria o seu show como um modelo de evangelização.

O Pe. Carlos Novoa é licenciado em Teologia e em Filosofia, mestre e doutor em Ética. Especializou-se em ética sexual e em ética econômico-política. É professor pesquisador nas Faculdades de Teologia, Economia, Arquitetura e no doutorado de Direito. Publicou 13 livros e 50 artigos acadêmicos.

Na entrevista concedida à jornalista Cecilia Orosco e publicada no jornal colombiano El Espectador, 17-10-2011, ele analisa, como religioso e como cientista, a proposta de proibir em qualquer circunstância o aborto na Colômbia. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Os deveres éticos que nascem da teologia podem ser impostos a uma sociedade inteira?
Não, de maneira alguma. O Concílio Vaticano II, cujos 50 anos do seu começo celebraremos em 2012, mencionou expressamente a liberdade religiosa. Na declaração Dignitatis Humanae (Dignidade Humana), o santo Concílio diz, a respeito da liberdade religiosa, que a nenhuma pessoa pode ser imposta uma religião. Dito de outra maneira, ninguém pode ser violentado em sua consciência, muito menos em matéria de assuntos religiosos. Adicionalmente, a Constituição de 1991 estabeleceu que a Colômbia é um Estado Social de Direito, também declarou que é um Estado não confessional. Esses são os marcos da discussão sobre o aborto.

É possível violentar a consciência dos outros com o argumento de que prevalecem as crenças religiosas do maior grupo ou do grupo mais poderoso?
Jamais se pode violentar a consciência do outro.

Você concorda com o projeto de lei que está tramitando no legislativo, e no futuro mediante referendo, que pretende aprovar a proibição absoluta da prática do aborto na contramão de uma decisão da Corte Constitucional?
Evidentemente, a sociedade civil tem o direito de debater todos os seus pontos de vista e aos católicos também cabe o direito de intervir no debate. Como diz o grande mestre da ética contemporânea Jürgen Habermas, é preciso ouvir as religiões, mas essa discussão deve ser secular. Como sacerdote e, ao mesmo tempo como cientista, eu resumiria a situação do debate sobre o aborto dizendo que estamos carregando as tintas onde não é preciso carregar...

Por quê?
Porque o problema do aborto não se resolve com a proibição nem com a prisão de ninguém. Não podemos lidar com esse drama de qualquer jeito, nem podemos igualá-lo a um homicídio que se comete de forma premeditada e desleal. O problema não se resolve apenas a partir da perspectiva da ética teológica, filosófica ou da jurisprudência, porque, na maioria dos casos, o aborto é uma tragédia que ocorre quando as mulheres ficam sem alternativa.

Essa afirmação, vinda de um sacerdote católico, é forte. É sua opinião pessoal ou tem um fundamento teórico que a sustente?
Claro que sim. É de ninguém menos que João Paulo II. Em sua encíclica Evangelium Vitae, n. 17, diz textualmente: “As opções contra a vida – entre elas o aborto, acrescento eu – procedem, às vezes, de situações difíceis ou inclusive dramáticas de profundo sofrimento, solidão, falta de perspectivas econômicas, depressão e angústia pelo futuro. Essas circunstâncias podem atenuar inclusive notavelmente a responsabilidade subjetiva e a consequente culpabilidade de quem toma essa opção em si mesma moralmente má”. Portanto, a partir da concepção de João Paulo II, não se pode ver o drama do aborto simplesmente com soluções que recorrem à prisão, à penalização ou ao castigo.

Quando você diz que “estão carregando as tintas” onde não é necessário, refere-se à “atenuação da responsabilidade”, de que fala João Paulo II no texto que menciona?
Exatamente. Não conheço mulher que goste de abortar. Creio que estamos de acordo em que o aborto não é o ideal. Mas é preciso compreender humanamente “as situações difíceis ou inclusive dramáticas e de profundo sofrimento” que uma mulher angustiada e sozinha enfrenta.

Qual é a sua opinião sobre os promotores do projeto de proibição e penalização total do aborto que agora tentarão realizar um referendo?
Devemos dizer a verdade: temos entre os promotores desse projeto um grupo de pessoas da mais duvidosa reputação. Eles são como o diabo que quer fazer hóstias. Não sei com que cara os senhores do PIN, bem conhecida da opinião pública, falam de ética. Mais concretamente, que autoridade moral tem algum dos atuais congressistas do Partido Conservador para agitar essa bandeira? Por exemplo, o que está fazendo aí o senhor Corzo que há poucos dias se queixava de que não tinha dinheiro para a gasolina do seu veículo e dos seus guarda-costas, enquanto diz que quem ganha 190.000 por mês está acima do nível de pobreza? Que cinismo este dos partidos que votaram a favor deste projeto e que, simultaneamente, têm vários de seus membros presos por narcoparapolítica!
"O problema não se resolve apenas
a partir da perspectiva da ética teológica,
filosófica ou da jurisprudência, porque,
na maioria dos casos, o aborto é uma tragédia
que ocorre quando as mulheres
ficam sem alternativa."
Acredita que os promotores desse projeto estão buscando limpar sua imagem diante da população religiosa do país?
Claro que sim. Esses políticos querem lavar a cara e aparecer como muito católicos e cristãos para ganharem votos em cima da dor de muitas mulheres.

Os extremistas de qualquer crença, promovem ou causam prejuízos à religião?
Fazem mal não apenas às religiões, mas também à sociedade.

Que reflexão você faz diante do fato de que o grande promotor desse projeto é o procurador geral da Nação, que parece velar pelos direitos apenas daqueles setores da população que partilham das crenças dele?
Não compartilho de muitas das argumentações do promotor, mas é necessário um esclarecimento: ninguém quer incentivar a prática de abortos. Todos concordamos em que é uma tragédia a ser evitada. Há uma grande polêmica sobre o momento em que surge a vida humana e eu, como cientista, não posso fechar a discussão e tenho que reconhecer que há argumentos sérios num e noutro sentido. No entanto, você disse: o problema de fundo é que se está movendo uma agenda muito sutil de tergiversação da sensibilidade católica.

Qual das posições sobre o momento em que começa a vida você assume?
A da Igreja, que diz que há vida desde a fusão do óvulo com o espermatozóide, que é, ao mesmo tempo, uma postura científica, aceita dentre muitas outras. Por isso nós não concordamos com o aborto e isso deve ficar claro. Mas, ao mesmo tempo, também não estou de acordo com a prisão e o castigo para as mulheres que abortam.

Volto ao tema do procurador: com sua autoridade, ele coloca pressão sobre a consciência das mulheres, e também sobre os médicos e as clínicas e, além disso, ameaça com investigações. O exercício do poder nessas condições não chega a ser abusivo e, portanto, imoral?
Em linhas gerais, diria que não se deve cultivar um exercício punitivo do poder, nem tampouco incentivar a caça às bruxas frente a qualquer situação de conflito, como é o tema do aborto. Concretamente, penso que não é papel do procurador impor posturas éticas em temas absolutamente polêmicos. Nesse sentido, manifesta-se um abuso de autoridade e de poder.

Um tema com tantas implicações científicas e de saúde pública pode ser decidido num referendo popular?
Essa resposta não se pode dar no sentido geral; faz-se necessário relacioná-la com momento cultural colombiano. Se houvesse educação sexual integral da população nos seus três níveis, ou seja, o psicológico, o fisiológico e o espiritual, as pessoas seriam capazes de decidir com pleno conhecimento do tema. Lamentavelmente, a situação na Colômbia não é a ideal para se colocar esse tipo de problema nas urnas.

A Corte tem dito, e mantém vigente sua opinião, que é possível abortar em três casos específicos...
É preciso afirmar o argumento que alguns tergiversam: o que a Corte tem feito é despenalizar o aborto em três situações extremas: estupro, má formação e poucas possibilidades de vida do feto, ou perigo para a vida da mãe. Não é correto afirmar que tenha dito que o aborto é legal.
"Um absoluto ético é aquele contra o qual
eu nunca posso agir. Os absolutos éticos
no consenso mínimo universal são a
base da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
Pessoais e Sociais de 1948: a dignidade
da pessoa humana e a solidariedade.
Ninguém pode agir contra esses absolutos.
No que diz respeito à vida humana,
devo protegê-la, mas há certos momentos
 que eu posso agir contra ela."


Você está de acordo com essa sentença da Corte?
É uma pergunta muito complexa. Para a comunidade católica, essa sentença da Corte Constitucional não está clara. Como sacerdote, tenho que dizer que não estou de acordo, mas como cidadão penso que é aceitável.

Como se resolve o dilema do ponto de vista da ética teológica: a vida da mãe ou a vida do filho? É preferível que ela morra para que viva o filho?
Tecnicamente falando, você está se referindo ao aborto terapêutico, que é o que se pratica por razões médicas. Por exemplo, uma gravidez extra-uterina, aquela se desenvolve nas trompas de falópio, coloca em risco a vida da mulher. Por outro lado, ali há uma vida humana, segundo correntes muito sérias da biologia, da genética e da medicina. Sua pergunta entra, então, num campo muito delicado da ética que tem a ver com o bem moral mais valioso, o da vida humana que é preciso proteger de maneira especial. Não obstante, esse bem não é um absoluto. Por isso se pode dizer que o aborto terapêutico é ético.

Como a vida humana não é um bem absoluto?
Um absoluto ético é aquele contra o qual eu nunca posso agir. Os absolutos éticos no consenso mínimo universal são a base da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pessoais e Sociais de 1948: a dignidade da pessoa humana e a solidariedade. Ninguém pode agir contra esses absolutos. No que diz respeito à vida humana, devo protegê-la, mas há certos momentos que eu posso agir contra ela. Por exemplo, na autodefesa. Ou no exercício do monopólio por parte das forças do Estado, ajustado, é claro, ao Direito Internacional Humanitário. Ou por uma causa maior, como a de Jesus Cristo, que pôs em perigo sua própria vida pela humanidade. Nesses momentos surge um paradigma ético que consiste na ponderação dos bens morais, neste caso, a vida do zigoto e o da vida da mãe. Prima o da mãe.

É eticamente aceitável que uma mulher estuprada queira abortar?
Nesse caso nos encontramos com as situações limites de que nos fala João Paulo II. Eu a convidaria, a compreenderia e lhe daria terapia psicológica para que fique com a vida. Apresentaria soluções de última instância, como a da adoção. Mas em última instância, é ela quem tem que decidir em consciência o que irá fazer. O Concílio diz isso, assim como a Constituição da Colômbia.

Um médico católico comum, que trabalha em um hospital público, como deve agir quando chega uma mulher que quer fazer um aborto?
Deve examinar, ouvir sua consciência e decidir.

Como se decide em consciência?
Quando eu respeito a dignidade humana e quando sou sinceramente solidário, todos os meus comportamentos se orientam para as escolhas que se tomam em consciência. Evidentemente, se o médico é católico não vai achar que o aborto é o caminho ideal, mas poderá avaliar se está diante de uma mulher que, parafraseando João Paulo II, se encontra "numa situação difícil ou mesmo dramática, de profundo sofrimento, solidão, falta total de perspectivas econômicas, de pressão e de angústia quanto ao futuro”. Estas circunstâncias podem atenuar "inclusive muitíssimo o grau da responsabilidade subjetiva e a consequente culpabilidade" do médico diante dessa tragédia.

Os leitores não crentes podem se interessar por suas respostas?
Por um lado, sou um homem da ciência e, de outro, um sacerdote. Não posso abstrair de um ou de outro, mas ter presente as diferenças.

Um teólogo estuda a ética do ponto de vista dos do que têm fé?
Esta ciência tem duas vertentes: uma teológica, que evidentemente é para os crentes, e uma filosófica. Ambas são autônomas. Eu tenho estudado as duas e por isso sei que a partir da ética teológica pode-se fazer propostas aos não crentes. Esses se movem na esfera da ética filosófica.

Qual dessas duas é pertinente para discutir o intrincado tema do aborto?
Nesse debate, que temos que resolver dentro do consenso constitucional, a única ética que cabe é a da ética filosófica.

Os políticos ultraconservadores que posam de religiosos, representam os católicos?
Vão contra a essência do catolicismo, que é o Evangelho. Não me parece católico alguém dedicado ao roubo do erário público ou ao narcoparamilitarismo. O Evangelho diz: "Eu não vim buscar a morte do pecador, mas trazê-lo à vida”. A perspectiva católica autêntica não é punir as pessoas que estão em dificuldades. Você não pode imaginar quantas mulheres nos procuram para confiar o drama que vivem. Essa atitude de colocá-las na cadeia não é nada cristã.

De qualquer forma, eles tomaram as bandeiras do catolicismo...
Como diz Daniel Samper Ospina, esses sujeitos amam tanto a moral que acabam tendo duas. Por que, em lugar de promover projetos punitivos, não apresentam projetos e recursos para promover a educação sexual? Por que não destinam esforços e recursos para diminuir uma das grandes causas do aborto, que é a pobreza? Por que não atacamos as causas sociais que provocam, segundo o Ministério da Proteção Social, 300.000 abortos clandestinos por ano, 70 mortes por ano e 132.000 vítimas de traumas físicos?
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Fonte: IHU on line, 18/11/2011

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