segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Clarice em camadas


Há uma meta-mensagem nos escritos
de Clarice Lispector


Há uma meta-mensagem nos escritos de Clarice Lispector. E, ainda que esse não tenha sido um objetivo explícito, é certo que sua obra se baseia na busca por uma realidade livre das construções humanas. Quem lê Clarice precisa chegar à outra “camada” de entendimento e isso não é tarefa fácil. Com o objetivo de agregar mais sentidos ao seu legado, o crítico literário José Castello decidiu recuperar e comentar fragmentos dos nove romances da autora. “Clarice na Cabeceira – Romances” (Rocco) dá chaves contextualizadas para entender o recado.
Leia abaixo um trecho do livro:

"O pai...

A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa. Não não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.
Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiamque-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer.
Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar,a máquina trotando,o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados.
Então subitamente olhou com desgosto para tudo como se tivesse comido demais daquela mistura. “Oi, oi, oi...”, gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia acontecer, compreende?"
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Reportagem por Laura Daudén e Marcos Diego Nogueira
Fonte: Sítio da Revista Isto É, ed.2192, 16 nov 2011, pág.128

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