terça-feira, 22 de novembro de 2011

Como separar a Igreja do Estado

De passagem por Buenos Aires,
Micheline Milot contou como a
Suprema Corte do Canadá vem marcando limites
 às tentativas de grupos religiosos
para impor suas ideias. O aborto, o matrimônio igualitário,
o véu das muçulmanas,
o multiculturalismo.
“Cada vez que houve uma tentativa da Igreja católica de exercer um poder indevido sobre os indivíduos no Canadá, as sentenças da Suprema Corte sempre fizeram recordar que, em nome da igualdade, o Estado devia ser neutro”, destacou a socióloga canadense Micheline Milot, durante uma conferência em Buenos Aires sobre “Estado laico, religião e diversidade cultural” em seu país. Professora do Departamento de Sociologia da Universidade do Québec, em Montréal, Milot é membro do grupo Sociedades, Religião e o Laicismo do Centre National de la Recherche Scientifique de Paris, e especialista no tema no Conselho da Europa. De forma didática, deu exemplos dos limites que o Supremo Tribunal vem marcando às tentativas de grupos religiosos de impor seus valores ou preceitos morais em políticas públicas. E despertou no auditório um sentimento, talvez inesperado para ela: inveja. Além disso, Milot explicou as razões do sucesso do multiculturalismo no Canadá, onde – ao contrário da França – não se proíbe às mulheres muçulmanas de usarem o véu islâmico em espaços públicos como escolas e hospitais.
“Na França, a proibição de expor símbolos religiosos em espaços públicos se impôs com o argumento da laicidade e em nome da autonomia da mulher e de sua dignidade. No Canadá, em nome da autonomia e da dignidade, a mulher muçulmana tem o direito de usar o véu. O único lugar onde gera problemas é em Québec, onde uma parte da população gostaria de importar o modelo francês”, disse Milot.
Por que estar com o rosto coberto implica dignidade para uma mulher muçulmana? – perguntou-lhe o Página/12.
No Canadá não há mulheres que usem a burca como no Afeganistão. A maioria das imigrantes muçulmanas no Canadá são marroquinas, libanesas. Usam nikda, o véu islâmico. Para poder utilizar serviços em uma instituição pública como hospitais ou escolas elas têm que poder ser identificadas, têm que ser possível ver seu rosto, mas podem mostrar o seu rosto a outra mulher e não necessariamente a um homem. Mas um médico não tem o direito de negar atendimento a uma mulher que não quer tirar o véu. Há também imigrantes da Arábia Saudita e da Síria, que costumam ser muito instruídas, trabalham em bancos, mas não estão em contato com o público, com os clientes. A pergunta que se deve fazer é se o Estado pode se intrometer na forma como as pessoas se vestem, explicou.
No Canadá a resposta é um rotundo “não”.
Especializada em sociologia da religião, laicismo e multiculturalismo, a pesquisadora canadense esteve em Buenos Aires, e entre outras atividades, deu uma conferência sobre a experiência canadense de laicidade e diversidade cultural no marco dos 40 anos do Centro de Estudos e Pesquisas Trabalhistas (CEIL) do Conicet.
No Canadá, contou, os matrimônio entre pessoas do mesmo sexo estão autorizados. “Colocou-se um problema interessante: os manuais escolares incluíam ilustrações de famílias compostas por uma mãe e um pai, de duas mães e de dois pais. Um grupo de pais católicos e protestantes se opôs a que seus filhos fossem expostos a tipos de famílias contrárias aos seus valores e recorreram à Corte: defenderam que eram muito jovens para serem expostos a modelos de famílias tão diversos. Mas a Corte rechaçou todas as críticas e disse que não se pode impedir educar na tolerância, dado que devemos ensinar a viver em uma sociedade que inclua a diversidade”.
A laicidade é um pilar fundamental da sociedade no Canadá. Mas o Estado nunca teve que conquistar sua autonomia dos poderes religiosos, como no México e Uruguai. “Nenhuma Constituição no Canadá falou da relação das igrejas e o Estado. O Estado nunca teve que conquistar sua autonomia em relação às igrejas porque nenhuma Igreja estava ligada ao Estado”, detalhou durante a conferência. “O Québec é a única sociedade francófona e de tradição católica na América do Norte”, apontou. A primeira Constituição do Québec, de 1774, reconhece a liberdade de culto aos britânicos. “Foi o primeiro reconhecimento deste tipo no Império Britânico. Nessa Constituição não se impõe nenhuma exigência religiosa para o acesso a cargos públicos”, indicou. Como se instrumenta a laicidade em um país que nunca mencionou em seus instrumentos jurídicos aspectos sobre o conceito de laicidade? “A neutralidade do Estado se consegue a partir da separação do Estado e dos grupos religiosos. A neutralidade não é uma abstenção do Estado, mas uma intervenção que permite que se possa garantir os direitos da laicidade”, assinalou a especialista. “Não há uma laicidade perfeita ou ideal em relação à qual tender como sociedade”, acrescentou, e advertiu que “o regime de laicidade tem que se ajustar constantemente às novas situações que surgem nas sociedades”.
As pressões dos grupos religiosos majoritários existem. Mas “a diversidade de grupos religiosos fragiliza o poder de cada um deles”, explicou. Os tribunais, contou Milot, funcionam como fóruns democráticos: de outra forma “as vozes da minoria não poderiam ser ouvidas no foro político. Trata-se de uma justiça independente e autônoma que se torna um fórum onde podem ser debatidos temas controversos para proteger aquilo que Tocqueville chamava de tirania das maiorias”, assinalou durante a conversa.
“Cada vez que havia uma tentativa da Igreja católica de exercer um poder indevido sobre os indivíduos, as sentenças da Corte sempre fizeram recordar que em nome da igualdade o Estado devia ser neutro”, destacou. O Canadá se rege pelo Direito dos Costumes, a jurisprudência tem quase o poder das leis. “No século XVIII e XIX os padres diziam nas igrejas em que partido votar e ameaçavam os fiéis com tirar-lhes os documentos e verificavam no confessionário em quem tinha votado. Durante o século XIX são aprovadas leis que penalizam as pessoas que queiram influenciar outras em seu voto”.
O aborto foi despenalizado em 1998. “É uma questão muito importante no Canadá – destacou a especialista. Durante muito tempo as mulheres lutaram por esse direito. Quando não era legal, muitas mulheres morriam em decorrência de abortos clandestinos. Foi determinante a ação de um médico, Morgan Taylor, que levou o debate à Suprema Corte. Durante 30 anos trabalhou na abertura de clínicas que faziam abortos em condições sanitárias. Foi perseguido pela Justiça. Os cristãos colocavam bombas em suas clínicas. Este médico dizia que o problema real era que as mulheres morriam em decorrência das condições ilegais do aborto. Defendeu que o aborto não era uma questão ideológica, mas de saúde pública e a Corte invalidou a penalização do aborto. Mas, não basta despenalizar o aborto: é necessário que o Estado outorgue os meios para que todas as mulheres possam ter acesso a clínicas de qualidade. A partir desta sentença todas as mulheres têm direito a realizar um aborto em clínicas de qualidade”, explicou. Como consequência da despenalização e da legalização, a mortalidade por abortos foi eliminada no Canadá.
Na Argentina, grupos religiosos, fundamentalmente católicos, buscam obstruir o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos e, entre outras ações, iniciaram demandas na Justiça para impedir a distribuição de anticoncepcionais, e pressionaram para que não se realizem abortos não puníveis. Há ações similares no Canadá? – perguntou-lhe este jornal, ao término da conferência.
Os grupos religiosos em todas as partes do mundo, no Canadá assim como na Argentina, se opõem à legalização do aborto. Mas o que faz a diferença – e analisei a situação em sete países – é a posição oficial que o primeiro-ministro (ou o presidente) adota. A Suprema Corte e o presidente têm um dever pedagógico com respeito ao seu país, que nem sempre é cumprido. O primeiro-ministro do Canadá disse na TV no momento em que foi aprovado o matrimônio homossexual (em 2005) que embora ele tivesse sido criado na tradição católica e que essa lei não tinha a ver com seus valores, a assinava porque o Canadá não tinha que se governar pelos valores do primeiro-ministro, mas se reger com os valores da igualdade – exemplificou Milot.
Outro pilar no Canadá é o multiculturalismo, assinalou a pesquisadora. “Angela Merkel, (Nicolas) Sarkozy, (David) Cameron proclamaram que a multiculturalidade fracassou. Esses países não impulsionaram leis para promover o multiculturalismo. Falaram sobre questões de fato. O multiculturalismo não significa que indivíduos vivam junto com outros. Pode-se falar de multiculturalismo quando há políticas explícitas ou instrumentos jurídicos que vão nessa direção”, indicou. Nesse sentido, o governo tomou como política a defesa do Estado multicultural em oposição a um Estado unicultural, como na França, por exemplo, disse. “Em 1988 foi adotada a lei do multiculturalismo, fala-se do reconhecimento e estima das diferentes culturas”, disse. Há dois idiomas oficiais (o francês e o inglês), recordou. “Mas há muitos fundos (do Governo) outorgados para que crianças que nasceram em outros países possam continuar a fazer cursos sobre o seu idioma de origem”, destacou, em mais um exemplo.
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A reportagem é de Mariana Carbajal e está publicada no jornal argentino Página/12, 21-11-2011. A tradução é do Cepat.
Fonte: IHU on line, 22/11/2011

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