Rubem Alves*
Há uma morte feliz. É aquela que acontece no tempo certo. O rei, transbordante de felicidade pelo nascimento do seu primeiro neto, convidara todos os poetas, gurus e magos do reino a ir ao palácio a fim de escreverem num livro de ouro seus bons desejos para a criança. Um sábio de muito longe, desconhecido, escreveu: “Morre o avô, morre o pai, morre o filho...”. O rei, enfurecido, mandou prendê-lo no calabouço. A caminho do calabouço, passou pelo rei, que o amaldiçoou pelas palavras escritas. O sábio respondeu: “Majestade, qual é a maior tristeza de um avô? Não é, porventura, ver morrer seu filho e seu neto? Qual é a maior tristeza de um pai? Não é, porventura, ver morrer o filho? Ah! Quanto não dariam eles para poder trocar de lugar com os filhos e netos mortos... Felicidade é morrer na ordem certa. Morre primeiro o avô, vendo filhos e netos. Morre depois o pai, vendo seus filhos...”. Ouvindo isso, o rei tomou as mãos do sábio nas suas e beijou-as...
Não acredito que haja dor maior que a morte de um filho. A princípio é uma dor bruta, sem forma ou sem cores, como se fosse uma montanha de pedra que se assenta sobre o peito, eternamente. Com o passar do tempo essa dor bruta se transforma. Passa a ser muitas, cada uma com um rosto diferente, falando coisas diferentes.
Há aquela dor que é pura tristeza pela ausência. Ela só chora e diz: "Nunca mais...". Outra é aquela dor que se lembra das coisas que foram feitas e deveriam ter sido feitas: a palavra que não foi dita, o gesto que não foi feito. É a dor da saudade misturada com a tristeza da culpa. E há outra dor: a tristeza de que o filho não tenha completado o que começara.
Existe grande alegria em terminar a obra que se iniciou: ver a casa pronta, o livro escrito, o jardim florescendo. A vida de um filho é assim: um sonho a ser realizado. Aí vem o impossível meteoro que estilhaça o sonho. Fica a casa não terminada, o livro por escrever, o jardim interrompido.
Essa era uma das dores daquele pai que me falava da sua dor pela morte do filho... Lembrei-me de um livro que li, faz muito tempo, Lições de abismo, de Gustavo Corção. Era a estória de um homem, 50 e poucos anos, que descobre que teria não mais que seis meses de vida – a doença que estava em seu corpo matava rapidamente Sem futuro, ele examina o passado, em busca de sinais de que não vivera em vão. O que encontra: cacos, fragmentos, fracassos, um casamento desfeito, a solidão. Pensa então que a vida deveria ser como uma sonata de Mozart que dura não mais de 20 minutos. Morre cedo. Depois dela vem o silêncio. Morte feliz. O silêncio se faz porque tudo o que havia para ser dito havia sido dito. Mas a sua vida – o disco se quebraria antes que pudesse dizer qualquer coisa. Sua sonata nem mesmo se iniciara...
Assim sentia aquele pai: seu filho era uma sonata que mal se iniciara.
Se eu morrer agora, não terei do que me queixar. A vida foi muito generosa comigo. Plantei muitas árvores, tive três filhos, escreve livros, tenho amigos. Claro, sentirei muitas tristezas, porque a vida é bela, a despeito de todas as suas lutas e desencantos. Quero viver mais, quero terminar a minha sonata. Mas se por acaso ela ficar inacabada, outros poderão arrumar o seu fim. Assim acontece com a Arte da fuga, de Bach (1865-1750). O tema eram as notas do seu próprio nome, BACH, si bemol, lá, dó, si natural. Na última página do manuscrito, letra de Carl Philip Emanuel, filho de Bach, está escrito: “N.B.: No curso dessa fuga, no ponto em que o nome B.A.C.H. foi introduzido como contratema, o compositor morreu”. Bach morreu, mas a obra já estava claramente estruturada. Foi possível a um outro terminá-la. Se o mesmo acontecer comigo não terei do que me queixar. Mas fica a perguntar: E aqueles que não tiveram tempo para escrever o seu nome?
Já me fiz essa pergunta várias vezes, pensando nos meus filhos. Eu também queria que eles levassem suas sonatas até o fim, mesmo que eu não estivesse aqui para ouvi-las. Mas não se pode ter certeza. A possibilidade terrível sempre pode acontecer. E se ela acontece, vem o sentimento terrível de que tudo foi inútil.
Aí, de repente, eu experimentei satori: abriram-se meus olhos, e vi como nunca havia visto. Senti que o tempo é apenas um fio. Nesse fio vão sendo enfiadas todas as experiências de beleza e de amor por que passamos “Aquilo que a memória amou foi eterno”. Um pôr do sol, uma carta que se recebe de um amigo, os campos de capim-gordura brilhando ao sol nascente, cheiro de jasmim, um único olhar de uma pessoa amada, a sopa borbulhante sobre o fogão de lenha, as árvores de outono, o banho de cachoeira, mãos que se seguram, o abraço de um filho: houve muitos momentos em minha vida de tanta beleza que eu disse para mim mesmo: “Valeu a pena eu ter vivido toda a minha vida para viver esse único momento”. Há momentos efêmeros que justificam toda uma vida.
Compreendi, de repente, que a dor da sonata interrompida se deve ao fato de que vivemos sob o feitiço do tempo. Achamos que a vida é uma sonata que começa com o nascimento e deve terminar com a velhice. Mas isso está errado. Vivemos no tempo, é bem verdade. Mas é a eternidade que dá sentido a vida.
Eternidade não é o tempo sem fim. Tempo sem fim é insuportável. Já imaginaram uma música sem fim, um beijo sem fim, um livro sem fim? Tudo o que é belo tem de terminar. Tudo o que é belo tem de morrer. Beleza e morte andam sempre de mãos dadas.
Eternidade é o tempo completo, esse tempo do qual a gente diz: “Valeu a pena”. Não é preciso evolução, não é preciso transformação: o tempo é completo e a felicidade é total. É claro que isso, como diz Guimarães Rosa, só acontece em raros momentos de distração. Não importa. Se aconteceu fica eterno. Por oposição ao “nunca mais” do tempo cronológico, esse momento está destinado ao “para todo o sempre”.
Compreendi, então, que a vida não é uma sonata que, para realizar a sua beleza, tem de ser tocada até o fim. Dei-me conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de minissoanatas. Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amor justifica a vida inteira.
--------------------------------------------------* Teólogo. Escritor.Educador. Cronista. Mago das Palavras.
Fonte: ALVES, Rubem. Palavras para desatar nós. Ed. Papirus, SP, 2011, pg. 28/31.
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