domingo, 13 de novembro de 2011

Os bolsos do morto

Luis Fernando Veríssimo*

O morto não é exatamente um amigo. Mais um conhecido, mas daqueles que você não pode deixar de ir ao velório. E lá está ele, estendido dentro do caixão forrado de cetim, de terno azul-marinho e gravata grená, esperando para ser enterrado.
Se fosse um amigo você ficaria em silêncio, compungido, lembrando o morto em vida e lamentando sua perda. Como é apenas um conhecido, você comenta com o homem ao seu lado – que também não parece ser íntimo do morto:
– Poderiam ter escolhido outra gravata...
– É. Essa está brava.
– Já pensou ele chegando lá com essa gravata?
– “Lá” onde?
– Não sei. Onde a gente vai depois de morto. Onde vai a nossa alma.
– Eu acho que a alma não vai de gravata.
– Será que não? E de fatiota?
– Também não.
– Bom. Pelo menos esse vexame ele não vai passar.
– Você é da família?
– Não. Apenas um conhecido.

~

Você examina o morto. Engraçado: ele vai partir para a viagem mais importante, e mais distante, da sua vida, mas não precisa carregar nada. Identidade, passaporte, nada. Nem dinheiro, o que dirá cheques de viagem ou cartões de crédito. Nem carteira!
Você diz para o outro:
– A coisa mais triste de um defunto são os bolsos.
O outro estranha.
– Como assim?
– Os bolsos existem para ele carregar coisas. Coisas importantes, que definem a sua vida. CPF, licença para dirigir, bloco de notas, caneta, talão de cheques, remédio pra pressão...
– Pepsamar.
– Pepsamar, cartão perfurado da sena, recortes de artigos sobre a situação econômica, fio dental... Isso sem falar em coisas com importância apenas sentimental. Por exemplo: um desenho rabiscado por uma possível neta que parece, vagamente, um gato, e que ele achou genial e guardou. Entende?
– Sei...
– E aí está ele. Com os bolsos vazios. Despido da vida e de tudo que levava nos seus bolsos, e que o definia. O homem é o homem e o que ele leva nos bolsos. Poderiam ter deixado, sei lá, pelo menos um chaveiro.
– Você acha?
– Claro. As chaves da casa. As chaves do carro. Qualquer coisa pessoal, que pelo menos fizesse barulho num bolso da fatiota, pô!

~

Você se dá conta de que está gritando. As pessoas se viram para reprová-lo. “Mais respeito”, dizem as caras viradas. Você faz um gesto, pedindo perdão. Sou apenas um conhecido, desculpem. Mas continua, falando mais baixo:
– A morte é um assaltante. Nos mata e nos esvazia os bolsos.
– Sem piedade.
– Nenhuma.
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* Escritor. Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 13/11/2011
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