Juremir Machado da Silva*
Crédito: Pedro Lobo Scaletsky
Quase todo mundo sonha em evadir-se. Alguns de uma prisão de verdade. Outros, da prisão do cotidiano. Que frase! Um tanto dramática. Há quem pratique esportes radicais, quem escale o Everest, quem jogue cartas, quem traia a mulher ou o marido e quem jogue em bingos clandestinos. Todos em busca de um escape, de evasão. Tenho pensado, depois da minha conversa com o professor Pedro Brum, em Santa Maria, em fugir para Palomas e colecionar caixinhas de fósforo. Eu me vejo curvado sobre um balcão organizando o material e sonhando com viagens e lugares inalcançáveis. Todo mundo precisa canalizar suas energias excedentes para um passatempo. Alguns recorrem às drogas, ao álcool, ao futebol, ao sexo ou a uma coleção. É melhor colecionar caixinhas de fósforo do que ver o Faustão. Um dos problema atuais é que a família diminuiu de tamanho, temos mais tempo livre, a caça ficou politicamente incorreta e perdemos o hábito de fazer coleções. Um homem sem um hobby pode ser muito perigoso.
O problema das coleções é que me começam a me vir ideias literárias. Um dia, depois de 28 mil caixinhas organizadas e duramente obtidas, o colecionador sai de casa com uma metralhadora e mata metade do vilarejo. Sei, ando vendo filmes americanos em demasia nas sessões da tarde. O grande escritor Aureliano de Figueiredo Pinto, um dos maiores da história da literatura do Rio Grande do Sul, nascido em Tupanciretã, largou tudo em Porto Alegre, onde chegou a ser chefe da Casa Civil do interventor Cordeiro de Farias, e foi morar em Santiago. Segundo Pedro Brum, Aureliano mandou construir um galpão no fundo do pátio e instalou seu consultório medico na parte da frente da casa. Passou a levantar de madrugada para fazer fogo de chão e tomar mate. Homens assim me fascinam. Escrevia sem o menor preocupação em publicar. Talvez tenha ido para Santiago em busca de um bom lugar para exercer a medicina. Talvez faltassem oportunidades para publicar. Aureliano revisou as provas do seu livro "Romance Estância e Querência" pouco antes de morrer.
Não importa. A ideia do escritor retirado no seu consultório, no seu galpão e aos seus poemas é muito melhor. Planejo a minha retirada. Colecionarei caixas de fósforos em Palomas, onde escreverei interminavelmente Jango no exílio, 14 de maio de 1888, o primeiro dia depois do fim da escravidão no Brasil e Inferno no paraíso. Talvez venha a ser um livro só. Há quem fuja para o grande mundo e quem fuja do mundo grande. O poeta Raul Bopp, quando era adolescente, fugiu a cavalo de Tupanciretã. Vendeu o matungo em São Borja e seguiu serpenteando pela Argentina. Chegou a Assunção, no Paraguai, de onde deu um jeito de ir para São Paulo. Conheceu os modernistas, voltou para o Rio Grande do Sul, tomou novos rumos e escreveu "Cobra Norato". A literatura pode ser uma coleção de caixinhas de fósforo. Por meio dela evade-se quem lê. Mas principalmente quem escreve.
O ideal seria fazer tudo: fugir a cavalo para São Borja, vender o matungo e sumir em Santo Tomé. Reaparecer em Palomas. Colecionar caixinhas de fósforo. Fazer fogo de chão e matear solito. Escrever uma página por dia e reler Aureliano e Bopp ao cair das tardes de inverno.
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* Sociólogo. Escritor. Prof. universitário. Colunista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo on line, 21/11/2011
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