quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O que Jesus faria?

Paulo Nogueira*

Estou na frente da catedral de St Paul, no centro de Londres. Faz já duas semanas que ativistas acamparam ali, como parte do movimento internacional de protesto iniciado com o “Ocupe Wall Street”.
São cerca de 200 tendas, e uma organização admirável para uma manifestação sem uma liderança clara. Há voluntários que cuidam da cozinha. Outros respondem por problemas médicos. As propostas são encaminhadas num microfone, e aceitas ou não com gestos. Braços para cima, balançando, significam aprovação. Braços cruzados, rejeição.
Existe uma “Barraca Universitária”, na qual falam palestrantes convidados. Entro nela e vejo um homem de óculos, sentado, ouvido por dez ou quinze pessoas. É Martin Smith, um dos líderes da União Contra o Fascismo, UCF. A UCF nasceu como uma resposta ao crescimento de um partido de ultradireita, o BNP.
“Temos que combater a islamofobia”, diz Smith. Ele se refere à onda de rejeição aos muçulmanos que se alastra pela Europa. “O racismo cresce como câncer. Se você não combate logo, a metástase é inevitável.” Smith nota que a ultradireita cresce nas grandes crises econômicas. A Depressão dos anos 30 contribuiu fortemente para que Hitler chegasse ao poder na Alemanha. Outra vez o mundo contempla uma crise de proporções consideráveis, e Smith teme que novamente o mundo caminhe para a direita.
Ali, na comunidade que se instalou nas cercanias da belíssima catedral, você tem uma idéia clara de que já é realidade a resistência ao cenário temido por Smith e tanta gente. São pessoas que querem que a humanidade caminhe exatamente na direção oposta, rumo a uma sociedade mais justa.
Há uma firmeza clara nos ativistas, mas também um pacifismo intenso. Uma placa diz que ocupar pode ter um signficado violento nos dicionários, mas que ali naquela comunidade nada de agressivo é tolerado. Uma jovem escreve no chão “Power to the People” em que o “o” de “power” tem a forma de um coração. Algumas placas lembram que bebida e droga são proibidas no local.
Há uma atmosfera familiar ali. Uma mãe leva pelas mãos duas crianças cujos rostos estão pintados com o símbolo dos protestos: a imagem de Guy Fawkes, o homem que quis explodir o Parlamento britânico no começo do século 17. A máscara de Fawkes – popularizada no filme “V de Vendetta” — foi adotada pelo Anonymous, um grupo de hackers que é basicamente contra as grandes corporações e contra os grandes governos. E depois se transformou no ícone dos protestos iniciados em Nova York.
Poucos metros adiante, um homem e uma criança estão brincando juntos. Pai e filha, provavelmente. Ele se veste de executivo – de “1%”, para usar a fraseologia do movimento dos “99%” – e sua boca está tapada por uma cédula. Há muitos turistas circulando por lá. A razão é que você tem hoje dois programas num só: você pode visitar a catedral e ao mesmo tempo presenciar um movimento que pode ter dimensões históricas.
Não há nada, no atual protesto, que remeta às turbulências pelas quais passou Londres há alguns meses, os riots, quando multidões se esparramaram pelas ruas para saquear lojas e gritar sua revolta depois que um homem negro foi morto pela polícia em circunstâncias controvertidas. Por isso, você vê, sim, polícias vigiando a turma, mas são poucos, e parecem calmos, quase que integrados à turma de ativistas.
Sem saber direito o que fazer estão as autoridades. A prefeitura comunicou formamelmente, dois dias atrás, que deseja que as tendas sejam retiradas. Provavelmente, essa questão vai se arrastar por algum tempo na justiça. O que complica especialmente o quadro para as autoridades é o caráter inovador dos protestos em curso: eles não têm começo, meio e fim. Não são passetas que começam de manhã e terminam à tarde. Os ativistas simplesmente acampam no lugar.
Numa situação ainda mais complexa está a Igreja da Inglaterra. Não há consenso nela sobre como lidar com o caso. “Claro que a Igreja tem que estar em dúvida entre apoiar gente que luta por uma sociedade mais justa e uma pequena elite que só quer saber de si mesma”, disse alguém, ferino e irônico, num espaço aberto pela BBC para debates em seu site. Uma faixa, em St Paul’s, pergunta: “O que Jesus faria?”
Não sou especialista em Jesus, mas suspeito que ele montaria sua barraquinha ali.
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* Paulo Nogueira é correspondente em Londres. Foi repórter da Veja, editor da Veja SP, diretor da Exame, dir superintendente da Abril e dir editorial da Ed Globo.
Fonte: http://ponto.outraspalavras.net/2011/11/03/

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