quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Steve Jobs e o SUS

ALEXANDRE HOHAGEN*

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Se Steve Jobs tivesse sido acometido
por esclerose múltipla no Brasil,
teria considerado o SUS
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A essa altura você certamente já sabe quem é Steve Jobs. E que ele morreu no começo de outubro. Também sabe que ele foi um visionário obsessivo. Ele tinha mais de cem camisetas pretas, de gola alta, todas iguaizinhas. E também sabe que ele foi adotado. Nunca quis reencontrar o pai biológico. Deixou um legado de qualidade, design, simplicidade que mudou o conceito de inovação e tecnologia da nossa era.
Da mesma forma, imagino que o câncer encontrado no ex-presidente Lula nesta semana não seja mais novidade. Ele provavelmente foi causado pelo cigarro.
Ele está sendo tratado pelos melhores médicos do país. O hospital onde começou as sessões de quimioterapia é referência e não faz parte da rede pública. Afortunadamente, o presidente está bem e desejo que ele se recupere rapidamente. Provavelmente os leitores mais conectados também sabem que há uma corrente nas redes sociais desafiando que o nosso ex-presidente seja tratado em uma unidade do SUS (Sistema Único de Saúde).
A corrente se espalhou com velocidade. Os posts em defesa ao atual tratamento e votos de recuperação ao presidente também começam a se multiplicar, em uma espécie de maniqueísmo social.
Os três temas acima foram propagados nos últimos meses pelas redes sociais. Nunca na história do Twitter, por exemplo, um assunto tinha sido tão comentado como a morte de Steve Jobs. Foram 8 milhões de notas postadas e lidas por centenas de milhares de pessoas em 36 horas. Da mesma forma, a história bizarra das pessoas mandando o Lula para o SUS, em uma demonstração de desrespeito com um ser humano doente, está em toda a parte no Facebook.
De acordo ou não, as redes sociais são assim mesmo. Cada dia mais parecidas com o dia a dia. Igualzinho a um papo na mesa de bar. As pessoas iniciam uma conversa. Se ela for de interesse, se amplia. Outros opinam. E o boca a boca escala velozmente. Até minha filha de sete anos reconhece o Steve Jobs em foto pela tradicional e minimalista indumentária. Como pai, executivo, cidadão eu tenho pensado muito em como garantir uma curadoria saudável de todo o conteúdo que aparece na nossa frente todos os dias.

"O texto é emocionante e mostra
uma perspectiva bastante diferente
dos ataques de pessoas que seguramente
jamais passaram perto
de um posto de saúde."

Para ter uma ideia, o sistema de segurança do Facebook processa e revisa 25 bilhões de ações de conteúdo todos os dias. O que interessa ler e compartilhar?
Quando li o post que pedia para que Lula se tratasse no SUS, fiquei confuso. Me recusei a compartilhar. Eu realmente não acredito que um brasileiro deseje o mal a Lula. Ele dedicou a sua vida ao país. Humor sem graça virou moda ultimamente. Mas ainda pior foi o fato de que o SUS virou sinônimo de castigo. Tem um inimigo? Deseje que ele se trate no SUS. Não gosta da sogra, manda para o SUS.
Ontem eu me deparei com um desses posts que vale a pena ler e compartilhar. É o relato da paranaense Nina Crintzs. Com o título "Eu, o SUS, a ironia e o mau gosto", Crintzs descreve a sua experiência sendo tratada no SUS de uma doença raríssima: esclerose múltipla.
O texto é emocionante e mostra uma perspectiva bastante diferente dos ataques de pessoas que seguramente jamais passaram perto de um posto de saúde.
Segundo Crintzs, "o Brasil é o único país do mundo que distribui gratuitamente os remédios para o tratamento da esclerose múltipla". Ela complementa: o maior especialista em esclerose múltipla do Brasil atende no Hospital das Clínicas, que é do SUS, em um ambulatório especial para a doença.
Ou seja, caro leitor: se o Steve Jobs, que, como sabemos, era um obsessivo por qualidade, tivesse sido acometido por essa doença no Brasil, provavelmente teria considerado o SUS.
E seguramente essa história teria muito mais relevância do que as brincadeiras sem graça que muitas vezes pipocam por aí. Crintzs tem propriedade para falar e eu para compartilhar: "Fazer piada com a tragédia alheia não é humor, é mau gosto".
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* ALEXANDRE HOHAGEN, 43, jornalista e publicitário, é responsável pelas operações do Facebook na América Latina. Em 2005, fundou a operação do Google no Brasil e liderou a empresa por quase seis anos. Escreve às quintas-feiras, a cada quatro semanas, nesta coluna.
Fonte: Folha on line, 03/11/2011

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