domingo, 6 de novembro de 2011

FAZER NADA

Rubem Alves*

Ah! Muitas pessoas não têm alma. O que elas têm, no seu lugar, é uma agenda. Por isso serão incapazes de entender o que estou dizendo: em suas almas-agendas já não há lugar para o desejo. No lugar dos ipês existe apenas um imenso vazio. Há um vazio que é bom: vazio da fome (que faz lugar para o desejo de comer); vazio das mãos em concha (que faz lugar para a água que cai da bica); vazio dos braços (que faz lugar para o abraço); vazio da saudade (que faz lugar para a alegria do retorno).
Mas há um vazio ruim que não faz lugar para coisa alguma, vazio-deserto, ermo onde moram os demônios. E esse vazio, túmulo do desejo, precisa ser enchido de qualquer forma. Pois, se não o for, ali virá morar a ansiedade.
A ansiedade é o buraco deixado pelo desejo esquecido, o buraco de um coração que não mais existe: grito desesperado pedindo que desejo e coração voltem, para que se possa de novo gozar a beleza da copa do ipê contra o céu azul. Tão terrível é esse vazio que vários rituais foram criados para exorcizar os demônios que moram nele. Um deles é a minha agenda – e a agenda de todo mundo. Quando a ansiedade chega, basta ler as ordens que estão escritas, o buraco se enche de comandos e se fica com a ilusão de que tudo está bem. E não é por isso que se trabalha tanto – da vassoura das donas de casa à bolsa de valores dos empresários? São todos iguais: lutam contra o mesmo medo do vazio.

E vós, para quem a vida é trabalho e inquietação furiosos – não estais por demais cansados de viver? Não estais prontos para a pregação da morte? Todos vos para quem o trabalho furioso é coisa querida – e também tudo o que seja rápido, novo e diferente – , vós achais por demais pesado suportar a vós mesmos; vossa atividade é uma fuga, um desejo de vos esquecerdes de vós mesmo. Não tendes conteúdo suficiente em vós mesmos para esperar – e nem mesmo para o ócio (Nietzsche)

Por isso ligamos as televisões, para encher o vazio; por isso passamos o domingo lendo os jornais (mesmo enquanto nossos filhos brincam no balanço do parquinho), para encher o vazio; por isso não suportamos a ideia de um fim de semana ocioso, sem fazer nada (já na segunda-feira se pergunta: “E no próximo fim de semana, que é que vamos fazer?”); por isso até a praia se enche de atividade frenética, pois temos medo dos pensamentos que poderiam nos visitar na calma contemplação da eternidade do mar, que não se cansa nunca de fazer a mesma coisa.
Certos estão os taoistas: felicidade suprema é o Wu-Wei, fazer nada. Porque só podem se entregar às delícias da contemplação aqueles que fizeram as pazes com a vida e não se esqueceram dos seus próprios desejos.
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* Teólogo. Educador. Escritor. Cronista e poeta.
Fonte: ALVES, Rubem. Palavras para desatar nós. Ed. Papirus. SP, 2011, pp.77-78.
O texto completo vc encontra no livro citado.
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