Marcelo Coelho*
O "Grito", do pintor norueguês Edvard Munch, ficou pronto para ser parodiado e consumido
FIZERAM O diabo com a "Mona Lisa". Duchamp pintou-lhe um bigode; Botero
copiou-a, acrescentando vários quilos à sua figura, e Mauricio de Sousa
desenhou a Mônica na mesma pose. De alguma forma, o quadro de Leonardo
da Vinci resiste a essas paródias. É até provável que tais brincadeiras
tenham o objetivo inconsciente de "testar" o poder da Gioconda.
Por mais banalizada que a imagem esteja, acho que seu mistério continua.
Não tenho certeza se "O Grito", de Edvard Munch, aguenta a
superexposição que lhe aconteceu nos últimos tempos.
Desde o espetacular arremate do quadro, num leilão no começo do mês, vê-se "O Grito" em toda parte.
Serve de símbolo, entre outras coisas, para o "Veta, Dilma"; funciona
bem quando uma revista semanal quer falar da alta de preços ou da
corrupção; pode ser posta no Facebook como retrato de qualquer usuário
que se sinta atulhado de compromissos ou tonto com muitas chamadas no
celular.
Nesse sentido, "O Grito" é bem o contrário da "Mona Lisa". Qualquer
significado "cola" no quadro de Munch, porque não faltam motivos para um
ser humano dar seus gritos de desespero de vez em quando.
Nenhum rótulo funciona direito na "Mona Lisa". Como disse o crítico
Walter Pater (1839-1894), ela "é mais antiga do que as rochas entre as
quais está posando".
Como o vampiro, continua Pater, "ela esteve morta muitas vezes, e
aprendeu os segredos do sepulcro; mergulhou em mares profundos, e guarda
consigo o dia que neles se extinguiu".
Captando bem a indiferença jocosa do retrato, Pater conclui que, para a
Mona Lisa, "tudo (e o termo sugere todos os desastres da história
humana) nada mais foi do que o som de liras e de flautas".
Certamente, não é desse tipo de sons que está tratando "O Grito". O
homenzinho do quadro nunca esteve morto, nem mergulhou no mar; parece
prestes a atirar-se da ponte.
Não é ele quem grita, embora sua boca aberta dê essa impressão. Segundo o
poema de Munch que acompanha o quadro, "eu estava andando na rua com
dois amigos/ o sol se punha, o céu se avermelhou como sangue/(...) meus
amigos continuaram o caminho, eu fiquei para trás/ tremendo de
angústia:/ senti um grande grito na natureza".
É a natureza quem grita, o que aliás torna razoável a apropriação do
quadro pelos ambientalistas. O homenzinho, por isso, tapa os ouvidos com
as mãos.
Munch pintou uma ponte perto da casa onde morava, na vizinhança de um
matadouro -e também do manicômio onde sua irmã estava internada. Os
gritos de loucos e de animais abatidos, numa paisagem de sangue, não
eram tão simbólicos e psicológicos assim.
Mas não deixa de ser sintomático o modo como a imagem é interpretada
atualmente. O grito vem de nós, e não de fora. É o desespero de alguém
que se sente diminuído pelos problemas à sua volta -pouco importando
quais sejam, o atendimento da TV a cabo ou o excesso de solicitações de
amizade no Facebook.
Esse disparate entre a intensidade da angústia e a pequenez do problema
combina bem, infelizmente, com o quadro de Munch. A razão para isso é
que o personagenzinho tem muito de figura de cartum. Poderia ser o
Gasparzinho, Homer Simpson ou um E.T.
Sua face é como um balão, a ponto de esvaziar-se. A grande beleza do
quadro, como em Van Gogh ou na arte expressionista em geral, está no
fato de que natureza e ser humano, o "fora" e o "dentro", se comunicam. A
paisagem e o homem são retratados na mesma ventania de pinceladas, na
mesma tormenta, no mesmo fluxo.
A "Mona Lisa" se mantém soberana, muito além da paisagem do fundo,
também atormentada e irreal. A subjetividade de "O Grito" extravasa para
todos os lados, mas é uma subjetividade enfraquecida.
Para o teórico Fredric Jameson, com o pós-modernismo desaparece a
"estética da expressão", e a obra de arte deixa de ser sinal da angústia
para assumir uma superficialidade irônica e vazia.
O "Grito" ficou pronto para ser parodiado e consumido. O que foi vendido
por US$ 120 milhões de dólares na Sotheby's é apenas uma, dentre as
quatro versões da obra feitas pelo pintor.
O próprio Munch, quem sabe, estava tentando exorcizar aquela imagem por
força da repetição. E o espanto do homenzinho, sem dúvida, tem outro
motivo agora: como é alto o preço que se paga para pôr toda essa
angústia no bolso!
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* Colunista da Folha
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