«Sabeis que a humanidade pode passar sem os Ingleses,
pode passar sem a Alemanha, nada lhe resulta mais fácil do que passar
sem os Russos, para viver não necessita de ciência nem de pão, mas só a
beleza lhe e indispensável, pois, sem beleza, já não haveria
nada a fazer neste mundo! Aí reside todo o segredo; toda a historia
está aí». Assim exprime Dostoievski a sua profunda convicção, na obra Os possessos.
Uma outra grande figura do realismo russo, Gogol,
abandonado às suas amargas ilusões, exclama: «Como é terrível a nossa
vida e os seus contrastes entre o sonho e a realidade… Mais te teria
valido, ó beleza, não existir, permanecer alheia a este mundo…!».
Por sua vez, no primeiro volume da sua monumental obra Glória. A perceção da forma,
H. U. Von Balthasar escreve que «a nossa palavra inicial se chama
beleza» e que «a beleza é, também, a última palavra que o intelecto
pensante pode ousar pronunciar!». E a razão da afirmação é que o homem é
imagem de Deus-beleza e palavra de resposta ao Deus vivo, por
conseguinte forma (imagem) que não coarta o espírito e a liberdade, mas
se identifica com eles.
Perante as imagens insuportáveis do horror e da
angústia, deve ser, pois, proposta a questão da estética teológica, da
teologia da beleza em relação com a cultura e as diversas formas da
arte. No centro da nossa reflexão estará a cruz, acontecimento
absolutamente decisivo, no qual o homem é definido pela «forma de
Cristo» (Gl 4,19), onde a beleza de Deus se manifestou de forma
paradoxal e suprema, por conseguinte, na sua originalidade.
A atualidade do belo: entre a utopia e o desencanto, «a via da beleza»
A época da chamada modernidade é caracterizada pela
«razão forte», absoluta, e pela utopia: a época em que a razão moderna
pensava ter compreendido tudo e em que a vontade de poder das
ideologias pretendia impor à realidade, complexa e dramática, a
totalidade clara e sem sombras da ideia, a aspiração utópica de um
«reino do homem» perfeito. Nesta ambição, não restava espaço para a
beleza, porque não pode haver lugar para ela onde não se reconheça o
que está mais para além da realidade, o indizível, o inefável, o
mistério. A beleza evoca, não captura; suscita, não prende; invoca, não
presume. Por isso, no tempo da utopia da razão adulta, a beleza foi
exilada ou reduzida a cálculo ou kitsch. Afirma von Balthasar: «A
beleza desinteressada, sem a qual o velho mundo era incapaz de
compreender-se, despediu-se, na ponta dos pés, do mundo moderno dos
interesses, para abandoná-lo à sua cupidez e à sua tristeza». A
consequência dramática deste exílio da beleza está na inevitável perda
do sentido do verdadeiro e do bem: «Num mundo sem beleza... também o bem
perdeu a sua força de atração, a evidência do seu dever ser
cumprido... Num mundo que não se crê mais capaz de afirmar o belo, os
argumentos em favor da verdade esgotaram a sua força de conclusão
lógica».
De igual modo se exprimiu A. Solzenitzyn, em
Estocolmo, ao receber o Prémio Nobel: «O mundo moderno, agarrando-se à
grande árvore do ser, partiu o ramo da verdade e do bem. Resta só o
ramo da beleza, e compete-lhe, agora, assumir toda a linfa do tronco. A
força de convicção que está ínsita numa autêntica obra de arte é
absolutamente inconfundível, obriga a submeter-se, mesmo o coração mais
hostil».
No final da época moderna, torna-se urgente uma
recuperação da beleza da verdade e do bem que os torne amáveis porque,
como diz Sto. Agostinho, «só se pode amar o que é belo». A uma
humanidade que descobriu tão intensamente a mundaneidade do mundo e
procurou emancipar-se de toda a perspetiva estranha ao horizonte
terreno, é necessário, mais do que nunca, propor a verdade amável, o
bem atraente, o «escândalo», ao mesmo tempo fascinante e inquietante da
humanidade de Deus. Quer dizer, é necessário redescobrir a chave
estética da aproximação à verdade que salva, ao bem que liberta.
A cultura da pós-modernidade é caracterizada pela
razão débil e pelo desencanto em que a visão totalitária da razão
cedeu o lugar a uma visão fragmentada, a massificação das ideologias deu
lugar à multidão de solidões. Nesta cultura niilista, do vazio de
verdades e valores universais, de suspeita em relação a todos os
grandes horizontes de sentido, só a beleza pode oferecer-se como via de
encontro com aquilo pelo qual valha a pena viver e viver juntos, com
aquilo que seja capaz de vencer a dor e a morte, e dar esperança à
vida.
Entre a utopia e o desencanto apresenta-se-nos, hoje, a
redescoberta do belo, «a via da beleza» como metáfora de um caminho
possível e fecundo para restituir aos fragmentos um horizonte de
sentido e captar, na Verdade, no Bem e no Amor últimos, a verdadeira
fonte da dignidade e da beleza de cada fragmento.
«O homem não pode viver num mundo sem beleza e esta é,
em ultima instância, um reflexo e uma participação da gloria (beleza)
de Deus. Depois de séculos de saturação pela moral e pela psicologia, a
consciência contemporânea reclama a estética e a mística», nota
Olegario de Cardedal.
É preciso, pois, abrir-se ao sentido do belo, a ser
educado ao amor da beleza que salva, oferecida na revelação cristã. Só a
compreensão da beleza da verdade e do bem poderá estar em condições de
falar com eficácia ao mundo humano, demasiado humano, que é o nosso
mundo pós-moderno, à razão e ao coração do homem pós-moderno.
Ele não tem necessidade de provas de força
(apodíticas), depois de tantas oferecidas pelas ideologias. Não tem
sequer necessidade de renúncias débeis, de um estéril refúgio no
privado individual. Aquilo de que todos temos necessidade é da oferta
da proximidade do Amor, capaz de misericórdia e compaixão – redentor.
O rosto da verdade e do bem que mais pode atrair a si a
humanidade e o da beleza humilde do Amor eterno, incarnado e
crucificado. A estética teológica é chamada a anunciar aos homens, em
chave de beleza, a alegria da salvação que, no Verbo incarnado, lhes
foi e é dada.
Revisitar as linguagens da beleza, na memoria
teológica e cultural do Ocidente é, pois, o caminho para responder à
questão decisiva sobre onde e como poderá ser possível, ao pensamento
moderno e aos homens de hoje, reapropriar-se da via salvífica da
beleza, e como ela é fonte de uma cultura de beleza.
Esta transcrição omite as notas de rodapé.
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D. António Marto
Bispo de Leiria-Fátima
In O Evangelho da Beleza, ed. Paulinas
19.05.12
Bispo de Leiria-Fátima
In O Evangelho da Beleza, ed. Paulinas
19.05.12
Fonte: http://www.snpcultura.org/cristianismo_fonte_de_uma_cultura_de_beleza.html
OBS: Site português.
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