João Cezar de Castro Rocha*
Anunciado esta semana como vencedor do Prêmio Camões, o autor paranaense consagrou uma galeria de personagens exemplarmente medíocres, sob o coerente signo da concisão
Dalton Trevisan (1925) é autor de uma das obras mais originais da
literatura brasileira. Com sabor de paradoxo, es,sa originalidade foi
conquistada através da recorrência obsessiva de temas, de personagens,
de situações e de uma fidelidade quase perfeita à forma do conto - em
sua extensa obra, a exceção é o romance A Polaquinha (1985).
Acrescente-se uma habilidade incomum para ampliar os efeitos
linguísticos de seus textos a partir da redução aparentemente
contraditória do universo das palavras, além do emprego deliberado de
chavões. O resultado é uma estética da contenção; aliás, no duplo
sentido da palavra: conciso e agônico.
O vampiro de Curitiba é um jogador de xadrez que sempre lança
mão de idêntica abertura de jogo e adota um único sistema defensivo,
porém nunca repete o xeque-mate! Detalhe relevante, porque ele costuma
vencer suas partidas.
Recordemos a trajetória fundamental do autor de Cemitério dos Elefantes (1964).
Com sabor de paródia, Quem Tem Medo de Vampiro?,
reunido em Dinorá (1994), talvez seja um ponto de partida conveniente.
Pelo avesso, o conto oferece um retrato da literatura (e mesmo de
aspectos da biografia) de Dalton Trevisan. O texto incorpora
satiricamente as ressalvas mais comuns feitas a seu estilo,
transformando em matéria ficcional a incompreensão de certos críticos.
Leia-se a abertura:
“Há que de anos escreve ele o mesmo conto? Com pequenas
variações, sempre o único João e a sua bendita Maria. Peru bêbado que,
no círculo de giz, repete sem arte nem graça os passinhos iguais.
Falta-lhe imaginação até para mudar o nome dos personagens. Aqui o
eterno João: ‘Conhece que está morta’. Ali a famosa Maria: ‘Você me
paga, bandido.’”
O retorno de personagens em narrativas do mesmo autor não é
exatamente novidade e nem precisamos mencionar a Honoré de Balzac. Por
exemplo, Quincas Borba surge como personagem em Memórias Póstumas de Brás Cubas e posteriormente volta no romance homônimo.
Contudo, Dalton Trevisan vira o recurso de ponta-cabeça. Nos
casos de Balzac e Machado, os personagens que retornam são tipos
excepcionais. Na literatura de Trevisan, “João” e “Maria” retornam
precisamente por não possuírem traços singulares.
Ora, se a galeria de personagens é escolhida por ser
exemplarmente medíocre, mesmo banal, a linguagem que os define não pode
ser exuberante, muito menos barroca. A repetição, tornada método de
escrita, exige uma linguagem sistematicamente esvaziada, quase anônima.
Retorne-se ao conto. De novo, pelo avesso, o autor explicita seu projeto linguístico e temático:
“Quem leu um conto já viu todos. Se leu o primeiro pode
antecipar o último - bem antes que o autor. (...) Mais de oitenta
palavras não tem o seu pobre vocabulário. O ritmo da frase, tão monótona
quanto o único tema, não é binário nem ternário, simplesmente primário.
Reduzida ao sujeito sem objeto, carece até de predicado - todos os
predicados. Presume de erótico e repete situações da mais grosseira
pornografia. No eterno sofá vermelho (de sangue?) a última virgem louca
aos loucos beijos com o maior tarado de Curitiba. (...)”
Naturalmente, o leitor deve inverter o sentido das
afirmações, a fim de avaliar a superioridade dessa concepção de
literatura, compreendendo na repetição metódica a diferença almejada por
Trevisan.
Escassez não é obrigatoriamente sinônimo de precariedade.
Afinal, se literatura é a arte combinatória do propriamente humano, 80
palavras permitem a reinvenção infinita de um núcleo restrito de
histórias. Isso para não mencionar os jogos literários que Trevisan
inclui com sutileza no “único” conto que reescreve sem parar.
Entre 1946 e 1948, ele foi editor de importante revista, que
assim definiu: “O movimento de renovação inventado por Joaquim não tem
ambições modernistas: tem ambições modernas.” Por isso, no seu conto,
menos é sempre mais. Esteta da concisão, Trevisan vislumbra no conto a
possibilidade de um haicai narrativo.
Leia-se, então, O Vampiro de Curitiba, publicado no
livro homônimo, saído em 1965. O texto apresenta um personagem-síntese
das obsessões do autor: “Nelsinho, o Delicado”, definido com poucas, mas
definitivas pinceladas: “Pobre rapaz na danação dos vinte anos.” O nome
do personagem não deixa de trazer à baila o universo de Nelson
Rodrigues. Ademais, o conto alude à linguagem bíblica, à obra de Machado
de Assis, à poesia de Carlos Drummond de Andrade:
“Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham
nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de
se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda (...).”
A breve menção à passagem bíblica, acerca da beleza
espontânea dos lírios do campo, amplifica o efeito de dessacralização
provocado pela sequência imediata: “bem que estão gordinhas”!
De igual modo, na sua peregrinação, o vampiro Nelsinho, na
urgência típica dos 20 anos, flerta não apenas com mulheres as mais
diversas, mas também com a literatura.
Recorde-se outra passagem do conto:
“Cedo a casadinha vai às compras. (...) Ó bracinho nu e
rechonchudo - se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma
agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão
sozinho.”
Malicioso, o narrador pisca um olho para Machado de Assis, na alusão a Uns Braços.
Nesse conto, Inácio, um rapaz de 15 anos, não resiste à visão dos
braços nus de D. Severina, “belos e cheios, em harmonia com a dona, que
era antes grossa que fina”.
Ao mesmo tempo, o narrador enfrenta dilema semelhante ao impasse do poeta drummondiano. Leiam-se os versos iniciais de O Lutador:
“Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a
manhã. São muitas, eu pouco (...).” Basta substituir “palavras” por
“mulheres”, e Nelsinho, o Delicado, não hesitaria em se engajar na
porfia.
O trânsito entre repetição, esvaziamento da linguagem e jogos
literários se encontra no título do primeiro livro de Dalton Trevisan -
isto é, o primeiro reconhecido, pois ele renegou suas publicações
anteriores. Refiro-me a Novelas Nada Exemplares (1959), cuja menção a Miguel de Cervantes não passou incólume.
Otto Maria Carpeaux reagiu com ambiguidade ao livro, que
obteve o Prêmio Jabuti. No calor da hora, ele se viu compelido a
ressalvar: “A pretensão inédita desse título parece desafio à crítica.” A
resenha não é exatamente favorável, mas tem o mérito de assinalar os
eixos da literatura do autor de A Guerra Conjugal (1969) - aliás, adaptado para o cinema por Joaquim Pedro de Andrade.
No juízo de Carpeaux: “Os acontecimentos nas novelas de
Cervantes criam nos personagens um estado de alma próprio ‘para el
hombre salvarse’. Nas novelas nada exemplares do Sr. Dalton Trevisan, os
acontecimentos criam nos personagens um estado de alma para o homem
perder-se.”
Sem dúvida.
A não ser que esse homem seja leitor de Dalton Trevisan.
Nesse caso, ele intui que a esperança de salvação ou o temor da condenação pouco importam ao vampiro (que todos nós somos).
E não apenas em Curitiba.
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* JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMENTADA DA UERJ
Loredano - Caricatura do escritor Dalton Trevisan
Fonte: Estadão on line, 27/05/2012
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