A vida como um grande diálogo
Dialogar no grande átrio do quotidiano, onde
indistintamente, se cruza o humano, em “carne e osso” (Husserl), é o
apelo forte deste tempo. Partir da pergunta é sempre um bom começo.
C.S. Lewis no seu diário interroga-se: «Porque parece assim presente (Deus) quando nós, para dizer com franqueza, não O procuramos?».
E se for Ele a vir ao nosso encontro? (Jo 1,14) É necessário
colocarmo-nos no modo de discernimento do mistério que se está a viver.
Não há linguagem absoluta para descrever este tipo de abertura. Deus é
a origem desta aproximação. A mistagogia do quotidiano, de “olhos
abertos” (Metz), medeia a presença do mistério na quotidianidade.
A imagem que Etty apresenta de Deus é uma frescura de
esperança no meio dos escombros. Crer em Deus significa viver de tal
maneira e com tanta intensidade que não é possível viver como se Ele não
existisse. «A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, meu Deus, um único grande diálogo» (Etty, Páginas místicas).
Os seus escritos revelam um ser humano com uma rara capacidade de
viver e de assumir dialogicamente em si a dor do mundo. O diálogo
situa-se no drama da alteridade. É na perceção e na vivência do absurdo
humano que esta hebreia faz a sua incursão no mundo de Deus,
redescobrindo a fé escondida no seu «coração pensante». Na sua
disposição crente não há separação entre as diversas dimensões do
acreditar (fé-razão, afeto-pensamento). O encontro do homem com Deus «não tem lugar, senão no milagre e no paradoxo da fé» (Bouillard).
Ordenar os afetos
Etty sente a debilidade e a impotência para travar não
só a crueldade dos acontecimentos mas também os ímpetos das suas
emoções e afetos. A desorientação inicial, experiência transversal a
todo o humano, não a impede de olhar o presente tensionalmente.
Aprendeu a viver no «mundo que Deus criou [que] continua belo apesar de
tudo» (Diário). Conhecer-se a si mesma, possuir o sentimento de
si, é condição de abertura à exterioridade, ao sentimento do outro,
enquanto realidade presente que a afeta. Aqui se une a feliz expressão
do «coração pensante da barraca» (Diário) onde a sua presença floresce como «um ramo de amendoeira» (Jr 1,11) no meio do nada. O ser humano «é uma cana pensante» (Pascal) no qual residem razões e emoções que escapam à mensurabilidade científica.
Leitora atenta das grandes narrativas (da Sagrada
Escritura a Dostoievski), de Rilke aprende o conceito de espaço
interior do mundo. Isto significa conter em si a experiência de Deus e a
experiência literária; manter a consciência da sua corporeidade como
ser no mundo; estar diante dos outros numa atitude afetiva de compaixão
vivida; dialogar abertamente com Deus; «aprender a ajoelhar-se» diante do Mistério porque «é preciso ousar pronunciar o nome de Deus» (Diário).
Poética da Esperança
Mulher atenta e entranhada nos desafios do seu tempo,
Etty interroga-se sobre o novo mundo que estava a surgir. Procura uma
síntese harmoniosa: «Deve manter-se o bom contacto com o efetivo
mundo atual, e tentar estabelecer o nosso lugar nele […]. Viver
plenamente, externa e interiormente, nada de sacrificar a realidade
exterior a favor da interior, e vice-versa de igual modo, eis uma bela
tarefa» (Diário). A sua vida é um tender para o amor absoluto de Deus que a desassossega radicalmente a amar absolutamente o mundo. «Estou
grata por não me teres deixado ficar sossegada a esta secretaria, mas
teres-me colocado no meio do sofrimento e das relações desta época»
(Diário).
Uma poética da esperança que reintegra a tragicidade
sem a ocultar. A sua originalidade está no modo como Etty antecipa
escatologicamente a sua presença diante da iminência do sofrimento e da
morte. Ela sabia o que a esperava. Mas como encarar este futuro
ofuscado pela tragicidade? «Esta conjuntura da época em que vivemos
é algo que consigo suportar, que posso aguentar sobre os ombros sem
vergar sob o seu peso e consigo mesmo perdoar a Deus por permitir que
tudo seja como provavelmente deve ser. Termos amor suficiente dentro de
nós para conseguirmos perdoar a Deus» (Cartas 1941-43).
Este excesso de confiança torna-a disponível para o amor humano e de
exercer a sua compaixão na contingência concreta do campo de
concentração de Westerbok. Sem uma preparação interior seria impossível
sobreviver a tragicidade do momento.
Aprender a crer e a ver
A fé de Etty, que paulatinamente se torna teologal e
oracional, é um «aprender a viver artisticamente», de tal modo que a
sua «porção ateia racional e crítica» se vai desvanecendo. Aprender a
viver crendo em abertura ao futuro pela via do silêncio, da solidão, da
atenção, da imaginação, da leitura e da escuta. Uma cisão entre
teologia e mistagogia torna inabitável o universo cristão porque nos
coloca sempre na necessidade de credibilizar a nossa fé face às
mutações da história. Uma mistagogia que não é reação (ao racionalismo,
indiferentismo, secularismo…) mas descoberta de uma presença que nos
habita e nos torna «livres para acreditar» (M.P. Gallagher) no interior da pluralidade.
É uma via que é capaz de revelar o mistério da graça
nas experiências vividas e que torna explícito o que era implícito no
encontro iniludível com Deus. Num rasgo da contemporaneidade, Etty
descobre progressivamente a presença de Deus na sua vida. Não a
antecede uma prática ou pertença religiosa. Dialoga com um Deus
discreto, por vezes vulnerável, que «precisa de ajuda»! A atitude
crente abre-nos para a invocação e para o encontro com a alteridade, «que lentamente vai-nos tornando capazes de ver»
(Bento XVI). Um desafio a crer para quem habita na margem mas também a
acreditar de novo para quem habita no centro de uma pertença religiosa!
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Reportagem por João Paulo CostaFonte: Site português: http://www.snpcultura.org/o_Deus_de_etty_hillesum.html
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