quarta-feira, 30 de maio de 2012

Ars procrastinaria

Antonio Prata*
Temos pressa. Trabalhar é importante. Vagabundear é urgente. Procrastinar, não, minha gente 

PROCRASTINAR, SEGUNDO o "Houaiss", é "transferir para outro dia ou deixar para depois; adiar, delongar, postergar, protrair". Mas o que sabem os dicionários? Bichos afoitos, na ânsia de engolir o mundo, mal têm tempo de mastigar cada palavra, de extrair delas todo o sabor e os nutrientes, de modo que a definição acima diz tanto sobre a complexa arte da embromação quanto "forma de interação psicológica ou psicobiológica entre pessoas, seja por afinidade imanente, seja por formalidade social" explica o "amor".
Percebo, porém, que divago. Em vez de encarar o dever proposto no título e falar sobre a procrastinação, a pratico: passeio por enfadonhos arrabaldes, perco-me nas borradas fronteiras da linguagem e do coração. Tudo bem, não há razão para me afligir, pois as crônicas são redondas como a Terra, e às vezes é indo para trás que chegamos ali na frente. Se o parágrafo anterior fugiu à teoria, serve ao menos como demonstração prática do que entendo por procrastinar: adiar alguma obrigação chata arrumando outra atividade igualmente tediosa para pôr em seu lugar.
Veja, caro leitor: ir ao cinema em vez de trabalhar não é procrastinação. É vagabundagem, no melhor sentido do termo. Fazer sexo num sábado de manhã, quando se deveria pendurar estantes, não é procrastinação: é sabedoria, compreensão de que a vida é breve, é besta e que os instintos são muito mais importantes que as estantes. Já abrir o site do banco e ficar digitando a infinita sequência numérica do código de barras de uma conta de luz que só vence no fim de junho, quando se está cheio de trabalho para amanhã, eis o mais nítido retrato da procrastinação. Pois essa praga dispersória é filha de Deus com o Diabo, é um pecado que já vem com penitência. O procrastinador só se permite gozar o adiamento do trabalho maltratando-se no interlúdio. Troca-se de aborrecimento, mais do que dele se desvia; eis como o saci da procrastinação oculta sua presença e surrupia nosso tempo, nossa vida.
Quantas vezes, atrasado na escrita, me pego limpando o antispam, arrumando papéis na gaveta, aceitando solicitações de amizade no Facebook, lendo, na internet, uma matéria sobre a tendência de queda nos juros do financiamento imobi-liário? Nunca, no entanto, nessas inconscientes delongas, me encontro gargalhando com uma crônica do Verissimo, tomando sol no quintal, assistindo a um antigo episódio de "Seinfeld", ouvindo um disco de ska.
A procrastinação é um mal, meus caros, não por arrancar-nos do trabalho, mas por nos grilar o ócio. Não é aferrando-me à labuta, portanto, que pretendo combater este vício, mas buscado forças para me entregar totalmente à lassidão. Da próxima vez que me flagrar pagando conta de luz às duas da tarde, vou desligar o computador, fechar os olhos e repetir os versos de Fernando Pessoa: "Ai que prazer/ Não cumprir um dever,/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!/ Ler é maçada,/ Estudar é nada./ O sol doira/ Sem literatura./ O rio corre, bem ou mal/Sem edição original./ E a brisa, essa/ De tão naturalmente matinal,/ Como tem tempo não tem pressa...".
Nós temos pressa. Trabalhar é importante. Vagabundear é urgente. Procrastinar, não, minha gente. 
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* Escritor. Cronista da Folha
antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata
Fonte: Folha on line, 30/05/2012
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