Antonio Prata*
Temos pressa. Trabalhar é importante. Vagabundear é urgente. Procrastinar, não, minha gente
PROCRASTINAR, SEGUNDO o "Houaiss", é "transferir para outro dia ou
deixar para depois; adiar, delongar, postergar, protrair". Mas o que
sabem os dicionários? Bichos afoitos, na ânsia de engolir o mundo, mal
têm tempo de mastigar cada palavra, de extrair delas todo o sabor e os
nutrientes, de modo que a definição acima diz tanto sobre a complexa
arte da embromação quanto "forma de interação psicológica ou
psicobiológica entre pessoas, seja por afinidade imanente, seja por
formalidade social" explica o "amor".
Percebo, porém, que divago. Em vez de encarar o dever proposto no título
e falar sobre a procrastinação, a pratico: passeio por enfadonhos
arrabaldes, perco-me nas borradas fronteiras da linguagem e do coração.
Tudo bem, não há razão para me afligir, pois as crônicas são redondas
como a Terra, e às vezes é indo para trás que chegamos ali na frente. Se
o parágrafo anterior fugiu à teoria, serve ao menos como demonstração
prática do que entendo por procrastinar: adiar alguma obrigação chata
arrumando outra atividade igualmente tediosa para pôr em seu lugar.
Veja, caro leitor: ir ao cinema em vez de trabalhar não é
procrastinação. É vagabundagem, no melhor sentido do termo. Fazer sexo
num sábado de manhã, quando se deveria pendurar estantes, não é
procrastinação: é sabedoria, compreensão de que a vida é breve, é besta e
que os instintos são muito mais importantes que as estantes. Já abrir o
site do banco e ficar digitando a infinita sequência numérica do código
de barras de uma conta de luz que só vence no fim de junho, quando se
está cheio de trabalho para amanhã, eis o mais nítido retrato da
procrastinação. Pois essa praga dispersória é filha de Deus com o Diabo,
é um pecado que já vem com penitência. O procrastinador só se permite
gozar o adiamento do trabalho maltratando-se no interlúdio. Troca-se de
aborrecimento, mais do que dele se desvia; eis como o saci da
procrastinação oculta sua presença e surrupia nosso tempo, nossa vida.
Quantas vezes, atrasado na escrita, me pego limpando o antispam,
arrumando papéis na gaveta, aceitando solicitações de amizade no
Facebook, lendo, na internet, uma matéria sobre a tendência de queda nos
juros do financiamento imobi-liário? Nunca, no entanto, nessas
inconscientes delongas, me encontro gargalhando com uma crônica do
Verissimo, tomando sol no quintal, assistindo a um antigo episódio de
"Seinfeld", ouvindo um disco de ska.
A procrastinação é um mal, meus caros, não por arrancar-nos do trabalho,
mas por nos grilar o ócio. Não é aferrando-me à labuta, portanto, que
pretendo combater este vício, mas buscado forças para me entregar
totalmente à lassidão. Da próxima vez que me flagrar pagando conta de
luz às duas da tarde, vou desligar o computador, fechar os olhos e
repetir os versos de Fernando Pessoa: "Ai que prazer/ Não cumprir um
dever,/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!/ Ler é maçada,/ Estudar é
nada./ O sol doira/ Sem literatura./ O rio corre, bem ou mal/Sem edição
original./ E a brisa, essa/ De tão naturalmente matinal,/ Como tem tempo
não tem pressa...".
Nós temos pressa. Trabalhar é importante. Vagabundear é urgente. Procrastinar, não, minha gente.
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* Escritor. Cronista da Folha
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