terça-feira, 15 de maio de 2012

Elegia ao tédio, esse paradoxo

ANNA VERONICA MAUTNER*


O vazio é necessário para pensar e criar; sem a capacidade de reprimir pensamentos é difícil adormecer 

Pode parecer um absurdo, mas o tédio é ingrediente essencial da humanização do "bicho homem".
"Tédio" soa como algo com conotação negativa que, se possível, deveria ser evitado. Entre pessoas educadas, encontramos uma certa tolerância ao tédio.
Mas, afinal, o que é o tédio, esse estado de ânimo tão mal visto? Sabemos recorrer a muitos expedientes para diluí-lo, torná-lo suportável. Momentos de tédio são aqueles em que estamos alheios ao que ocorre fora de nós e também dentro de nós. Evocar fatos passados distrai, observar o movimento que ocorre dentro de nós, também.
No tédio não há pensamento. Contudo, eu preciso desse vazio existencial para fazer associações novas entre o ver e o lembrar. Preciso do tédio para pensar.
O tédio é ainda um estado de ânimo em que não ocorre desejo, em que não sentimos abstinência -contudo, assim mesmo, tem que ser tolerado.
Tanta coisa negativa relativa a uma necessidade banal! Se não nos entediarmos, se não vivermos o vazio, não criaremos, não inventaremos nem descobriremos -não teremos nada a lembrar desses momentos necessários.
A religião é uma grande geradora desse vazio, no qual são inseridas as chamadas "virtudes". No caso da Igreja Católica, elas são claramente definidas como "fé, esperança e caridade". Bem sabe o religioso como é tomado pela devoção quando mergulhado em multidões, em condições cheias de inesperados.
É no chão do tédio, no bom sentido, que plantamos nossos sonhos, nossas esperanças de futuras alegrias. Quem não é capaz de se esvaziar, de reprimir seus pensamentos, desejos e esperanças, tem dificuldade até para adormecer. Adormecemos depois de a mente estar vazia.
Ouso dizer que quem sofre de insônia está fugindo do vazio. Não vou entrar nas razões que levam a essa fuga. Cada um contará uma história.
Religiosos orientais usam a meditação para alcançar o estado de vazio que leva ao contato com a fonte da vida.
As religiões ocidentais usam a oralização na oração, mil vezes repetida até que se consiga atingir a devoção. É o mantra do ocidental.
A ausência do tédio torna os homens meros repetidores e, raras vezes, não pensadores. A partir do vazio, do tédio, encontramos espaço para pensar, criando condições de transformar o agora em futuro e também em evocação do passado.
É a partir do vazio que captamos a sensação do tempo - espaço para o surgimento de algo novo, que não precisa ser sensacional, pode apenas representar o novo -algo a mais no tempo, na experiência. No viver! 
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* Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) e "Educação ou o quê?" (Summus) 
Fonte: Folha on line, 25/05/2012
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