ANNA VERONICA MAUTNER*
O vazio é necessário para pensar e criar; sem a capacidade de reprimir pensamentos é difícil adormecer
Pode parecer um absurdo, mas o tédio é ingrediente essencial da humanização do "bicho homem".
"Tédio" soa como algo com conotação negativa que, se possível, deveria
ser evitado. Entre pessoas educadas, encontramos uma certa tolerância ao
tédio.
Mas, afinal, o que é o tédio, esse estado de ânimo tão mal visto?
Sabemos recorrer a muitos expedientes para diluí-lo, torná-lo
suportável. Momentos de tédio são aqueles em que estamos alheios ao que
ocorre fora de nós e também dentro de nós. Evocar fatos passados
distrai, observar o movimento que ocorre dentro de nós, também.
No tédio não há pensamento. Contudo, eu preciso desse vazio existencial
para fazer associações novas entre o ver e o lembrar. Preciso do tédio
para pensar.
O tédio é ainda um estado de ânimo em que não ocorre desejo, em que não
sentimos abstinência -contudo, assim mesmo, tem que ser tolerado.
Tanta coisa negativa relativa a uma necessidade banal! Se não nos
entediarmos, se não vivermos o vazio, não criaremos, não inventaremos
nem descobriremos -não teremos nada a lembrar desses momentos
necessários.
A religião é uma grande geradora desse vazio, no qual são inseridas as
chamadas "virtudes". No caso da Igreja Católica, elas são claramente
definidas como "fé, esperança e caridade". Bem sabe o religioso como é
tomado pela devoção quando mergulhado em multidões, em condições cheias
de inesperados.
É no chão do tédio, no bom sentido, que plantamos nossos sonhos, nossas
esperanças de futuras alegrias. Quem não é capaz de se esvaziar, de
reprimir seus pensamentos, desejos e esperanças, tem dificuldade até
para adormecer. Adormecemos depois de a mente estar vazia.
Ouso dizer que quem sofre de insônia está fugindo do vazio. Não vou
entrar nas razões que levam a essa fuga. Cada um contará uma história.
Religiosos orientais usam a meditação para alcançar o estado de vazio que leva ao contato com a fonte da vida.
As religiões ocidentais usam a oralização na oração, mil vezes repetida
até que se consiga atingir a devoção. É o mantra do ocidental.
A ausência do tédio torna os homens meros repetidores e, raras vezes,
não pensadores. A partir do vazio, do tédio, encontramos espaço para
pensar, criando condições de transformar o agora em futuro e também em
evocação do passado.
É a partir do vazio que captamos a sensação do tempo - espaço para o
surgimento de algo novo, que não precisa ser sensacional, pode apenas
representar o novo -algo a mais no tempo, na experiência. No viver!
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* Psicanalista da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.
Ágora) e "Educação ou o quê?" (Summus)
Fonte: Folha on line, 25/05/2012
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