IVO TONET*
Fala-se muito, hoje, em cidadania como se esse termo fosse sinônimo de liberdade tout court. Supõe-se
que lutar por um mundo cidadão seria o mesmo que lutar por uma
sociedade efetivamente livre e humana. Supõe-se também que, com a
cidadania, que certamente é inseparável da democracia, teria sido
descoberta a forma mais aperfeiçoada possível de sociabilidade. Não
porque fosse perfeita, mas porque estaria indefinidamente aberta a novos
aperfeiçoamentos.
A nós, pelo contrário, parece-nos equivocado pensar que a cidadania
expressa a forma superior da liberdade humana. Por suas origens e sua
função social, ela representa uma forma de liberdade, certamente muito
importante, mas essencialmente limitada. Ao nosso ver, a
efetiva emancipação humana é, por seus fundamentos e sua função social,
algo radicalmente diferente e superior à cidadania, que é parte
integrante da emancipação política. Esclarecer essa distinção é hoje da
máxima importância, se queremos que a luta social seja claramente
orientada para a superação desta forma desumanizadora de sociabilidade,
cujas raízes se encontram no capital. Por sua vez, este esclarecimento
supõe a busca da natureza mais íntima tanto da cidadania quanto da
emancipação humana. É isto que nos propomos fazer, brevemente, nesse
texto.
O ponto de partida
O rastreamento histórico é o caminho mais comum quando se busca
entender a questão da cidadania. Não nos parece que seja este o melhor
caminho. Certamente, o conhecimento da história é muito importante. No
entanto, o processo histórico é algo extremamente complexo e variado.
Como evitar que nos percamos em meio a esta complexidade e variedade de
aspectos. Precisamos de um fio condutor que nos permita compreender a
lógica do processo histórico. Este fio, ao nosso ver, são as
determinações gerais que caracterizam o processo de autoconstrução
humana. Vale dizer, a primeira pergunta não pode ser o que é a
cidadania, mas o que é o homem; o que são essas determinações
fundamentais que demarcam o processo de tornar-se homem do homem. Este é
o caminho que nos parece mais adequado para compreender todo e qualquer
fenômeno social.
Na
perspectiva marxiana, este fio tem como ponto de partida o ato que,
para Marx, é o fundamento do ser social, ou seja, o ato do trabalho.
Segundo ele, se queremos respeitar o processo real, temos que partir não
de especulações ou de fantasias, mas fatos reais, “empiricamente
verificáveis”, vale dizer, dos indivíduos concretos, suas ações, as
relações que estabelecem entre si no trabalho e suas condições reais de
existência. E o primeiro ato dos homens é exatamente o ato de trabalhar.
Somente assim poderemos capturar as determinações fundamentais que
caracterizam o ser social e seu processo de reprodução. O exame acurado
do ato de trabalho permite a Marx perceber que este se compõe de dois
momentos: a teleologia e a causalidade. Dois momentos, ressalte-se, de
igual estatuto ontológico. Ou seja, de um ponto de vista ontológico, a
consciência é tão importante como a realidade objetiva. Trabalhar é,
portanto, conceber antecipadamente o fim que se pretende alcançar e
atuar sobre a natureza para transformá-la de acordo com este objetivo.
Por outro lado, ao transformar a natureza, o homem cria, ao mesmo tempo o
seu próprio ser. Tanto Marx, como Lukács, insistem que é por intermédio
do ato do trabalho que se realiza o salto ontológico do ser natural ao
ser social.
A partir da análise mais rigorosa da estrutura ontológica do
trabalho, pode-se perceber que o ser social é um ser radicalmente
histórico e social. Isso quer dizer que não existe nada, no ser social,
que seja imutável; que a totalidade deste ser é sempre o resultado dos
atos humanos. Do que se segue que nenhuma ordem social pode reclamar o
título de insuperável. A partir da análise do trabalho, também se pode
perceber que o ser social é um ser que se caracteriza essencialmente
pela atividade, pela sociabilidade, pela consciência, pela liberdade e
pela universalidade. Estas determinações constituem elementos essenciais do
ser social. No entanto, é preciso sublinhar enfaticamente; a noção
marxiana de essência não é, de modo algum, uma noção metafísica. Ao
contrário, ela é inteiramente histórica. O que significa que aquelas
determinações também têm sua origem nos atos humanos. O que as distingue
dos aspectos fenomênicos não é a sua imutabilidade, mas a sua maior
unidade e continuidade.
Contudo, o fato de o trabalho ser o ato originário do ser social, não
significa que ele esgote a natureza deste ser. Por sua natureza, o
trabalho é uma atividade que tem a possibilidade de produzir de forma
cada vez mais ampla. O que significa que a complexificação sempre mais
intensa é uma característica própria do ser social. Esse aumento da
complexificação é responsável pelo surgimento de problemas e de
necessidades que não podem ser resolvidos ou satisfeitas diretamente
pelo trabalho. A resolução destes problemas e a satisfação destas
necessidades exige a estruturação de outras dimensões específicas, como a
linguagem, a ciência, a arte, a educação, o direito, a política, etc.
Todas estas dimensões têm sua origem na dimensão fundante do trabalho,
mas isto não significa, de modo algum, que seja por derivação direta e
mecânica. A autonomia relativa é-lhes necessária para que possam cumprir
suas funções sociais. Donde se segue que, para compreender qualquer uma
destas dimensões, teremos sempre que buscar as suas origens
histórico-ontológicas e a função que devem cumprir na reprodução do ser
social.
Cidadania e emancipação humana
Munidos destes pressupostos, podemos interrogar-nos acerca da natureza da cidadania e da emancipação humana.
Para Marx, a cidadania é parte integrante do que ele denomina
emancipação política. Portanto, do campo da política. E a política é,
para ele, em sua essência, uma forma de opressão. Como diz, no Manifesto do Partido Comunista, de 1848: O poder político propriamente dito é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra.
Ao contrário dos autores liberais, que consideram a política como a
dimensão fundante da sociedade, Marx afirma que a emancipação política
tem seu fundamento no que ele chama de sociedade civil, ou seja, nas
relações econômicas. E a emancipação política é uma dimensão que tem
suas origens históricas na passagem do feudalismo ao capitalismo. Suas
raízes histórico-ontológicas se encontram no ato de compra-e-venda de
força de trabalho, com todas as suas conseqüências para a constituição
da base material da sociedade capitalista. Este ato originário produz,
necessariamente, a desigualdade social, uma vez que opõe o possuidor dos
meios de produção ao simples possuidor de força de trabalho. E o que
acontece, todos os dias, diante dos nossos olhos nos mostra que a
produção da desigualdade social é uma tendência crescente e não
decrescente da reprodução do capital. O que significa que será cada vez
mais forte a impossibilidade de criação de uma autêntica comunidade
humana sob a regência do capital.
No entanto, este ato originário precisa, para se tornar efetivo, de
homens livres, iguais e proprietários. Não, porém, efetivamente livres,
iguais e proprietários, mas apenas no aspecto formal. Ou seja, apenas na
sua dimensão jurídico-política e nunca em sua dimensão social. Esta
situação é a responsável pelo fato de a sociedade capitalista ser,
necessariamente, dividida em uma dimensão privada e em uma dimensão
pública. Sendo sempre a primeira a matriz da segunda. O resultado disto é
que esta esfera – jurídico-política – não é indefinidamente
aperfeiçoável, mas, pelo contrário, essencialmente limitada. Ser cidadão
é ser participante desta dimensão pública. Ser cidadão, portanto, não é
ser efetivamente, mas apenas formalmente, livre, igual e proprietário.
Por mais direitos que o cidadão tenha e por mais que estes direitos
sejam aperfeiçoados, a desigualdade de raiz jamais será eliminada. Há
uma barreira intransponível no interior na ordem social capitalista.
Conseqüentemente, a busca, hoje, pela construção de um mundo cidadão é
uma impossibilidade absoluta. Em resumo: apesar dos aspectos positivos,
para a emancipação humana, que marcam a cidadania, ele é, por sua
natureza mais essencial, ao mesmo tempo expressão e condição de reprodução da
desigualdade social e, por isso, da desumanização. Por isso mesmo, deve
ser superada, não porém em direção a uma forma autoritária de
sociabilidade, mas em direção à efetiva liberdade humana.
O que, de fato, deve ser buscado é a emancipação humana.Esta, porém, é
algo muito distinto da cidadania e da totalidade da emancipação
política. A emancipação humana, ou seja,uma forma de sociabilidade na
qual os homens sejam efetivamente livres, supõe a erradicação do capital
e de todas as suas categorias. Sem esta erradicação é impossível a
constituição de uma autêntica comunidade humana. E esta erradicação não
significa, de modo algum, o aperfeiçoamento da cidadania, mas, ao
contrário, a sua mais completa superação. Como diz Marx, nas Glosas Críticas, há uma distância infinita entre o cidadão e o homem, assim como entre a vida política e a vida humana.
Assim como o ato fundante da emancipação política é a compra e venda
de força de trabalho, o ato originário da emancipação humana deve ser,
necessariamente, o trabalho associado. Este ato pode ser definido, de
início, como uma forma de relações que os homens estabelecem entre si na
produção econômica, onde as forças individuais são postas em comum e
permanecem sempre sob o controle comum. Como conseqüência, os homens
detêm o controle consciente da integralidade do processo de trabalho. É
isto que torna o trabalho uma atividade efetivamente livre. No entanto,
este ato de trabalho – associado – exige, para sua efetivação, duas
condições. Primeira: um grande desenvolvimento das forças produtivas,
que possam produzir bens suficientes para atender as necessidades de
todos. Segunda: a diminuição do tempo de trabalho, de modo a que os
homens possam dedicar-se a atividades mais propriamente humanas. Tais
condições são o resultado do próprio capitalismo, embora se apresentem
de maneira deformada e desumanizadora sob o capital.
Esta forma de trabalho é a única que pode impedir a apropriação
privada das forças sociais e, com isso, eliminar o capital, as classes
sociais, a divisão social do trabalho, o mercado e todas as objetivações
democrático-cidadãs. Por isso mesmo, também é a única que pode permitir
a construção de uma autêntica comunidade humana, ou seja, de uma
comunidade onde todos os indivíduos possam ter acesso amplo a todas as
objetivações – materiais e espirituais – que constituem o patrimônio da
humanidade; onde poderão desenvolver amplamente as suas potencialidades;
onde se encontrarão em situação de solidariedade efetiva uns com os
outros e não de oposição e concorrência.
Neste momento, os homens terão chegado ao patamar mais elevado de sua
entificação. E, ao contrário da emancipação política, este é um patamar
que abre um processo infinitamente aperfeiçoável para a humanidade. Só
então se poderá dizer que os homens são efetivamente livres. O que não
significa dizer que serão nem completa nem inteiramente livres, mas que
serão o mais autodeterminados possível enquanto homens.
No entanto, é importante ressaltar: a emancipação humana não é algo
inevitável. É somente uma possibilidade. Se se realizará ou não,
dependerá da luta dos próprios homens. Contudo, ao contrário da
impossível cidadania mundial, ela é uma possibilidade real, cujas bases
se encontram na materialidade do próprio ser social.
* IVO TONET
é Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de
Alagoas (UFAL) e Doutor em Educação pela UNESP. Publicado na REA, nº 44, janeiro de 2005, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/044/44ctonet.htm
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