Luiz Felipe Pondé*
Depois do dilúvio, surgem milhares de "resistentes" corajosos para colher louros que não merecem
IMAGINE PARIS entre 1940 e 1944. Ocupação nazista. Agora se pergunte:
onde estavam os artistas e intelectuais, franceses ou não, naquele
momento? Estes que gostam de posar de arautos da ética, da transparência
e do bem.
Claro, houve a "resistência francesa". Se contarmos o número de pessoas
cujos pais e avós foram da Resistência Francesa, não teremos franceses
suficientes para completar a cota dos resistentes de cada família.
Provavelmente, os resistentes de fato não enchiam dois ônibus. A
Resistência Francesa é um dos maiores mitos modernos, assim como a
dinamarquesa, a sueca, a holandesa e outras. A falsa coragem não é
privilégio de nenhum povo. A maioria conviveu com o nazismo. E
conviveria de novo. Raros são os que se revoltam contra situações assim,
porque simplesmente temos medo e somos seletivos em nossas prioridades
morais -quando existem.
Em situações assim, pensamos primeiro no café da manhã, no almoço e na
janta. No emprego, no cotidiano, nas vantagens que podemos ter, dadas as
condições em que vivemos. Danem-se as vítimas.
O século 20 criou uma das maiores mentiras da humanidade: a
solidariedade abstrata. Aquela que se presta direto do Facebook ou do
cardápio orgânico.
Não quero dizer que "tudo bem ser covarde", desculpando nossos atos pela
banalização do medo. Basta um só corajoso para a covardia revelar sua
face vergonhosa. O que me espanta é a mentira moral que se conta negando
a epidemia de covardia em situações como essas. E gente "chique
intelectualmente" adora esse tipo de farsa.
Depois de passar o dilúvio, aí aparecem milhares de "resistentes"
corajosos para colher os louros que não merecem. Onde estavam Sartre,
Beauvoir, Camus, Picasso, Dalí, Mauriac, Colette, Malraux, Gide e outros
luminares naqueles anos?
Se você quer saber, leia o maravilhoso livro de Alan Riding, "Paris, A
Festa Continuou - A Vida Cultural durante a Ocupação Nazista, 1940-4",
publicado pela Cia. das Letras. Trata-se de um painel definitivo do
cenário intelectual e artístico da época, revelando detalhes do convívio
"pacífico" da casta erudita francesa (e de estrangeiros que lá viviam)
com a ocupação alemã.
Não se tratam dos reconhecidos fascistas e antissemitas franceses como
Louis-Ferdinand Céline, o grande escritor e médico. Mas sim daqueles que
ensaiaram uma resistência cultural tímida (que os alemães nunca levaram
de fato a sério) a troco de permanecer vivendo suas vidas comuns de
intelectuais e artistas "comprometidos com um mundo melhor" (risadas?).
Até o mercado das artes plásticas viveu um crescimento tímido, mas real, na época.
Não eram "colabôs" de fato ("colaboracionistas", termo usado na França
para quem apoiou a ocupação nazista), apenas faziam teatro, escreviam
livros, pintavam quadros, faziam música, bebiam vinho. E quando os
Aliados libertaram a França, logo se apressaram em "provar" sua condição
de membros da resistência "cuspindo" na cara de gente que, muitas
vezes, os ajudou porque eram de fato "colabôs" e tinham acesso a favores
nazistas.
Os "comités d' épuration" (comitês de depuração) se multiplicaram no
pós-guerra e visavam estabelecer a verdade de quem era ou não "colabô".
Os alemães sabiam que, mantendo os salões, os cabarés, as "brasseries",
os cafés, as livrarias, as galerias de arte e os teatros em atividade,
ajudariam a manter os franceses e estrangeiros cultos "ocupados". Todo
mundo sabe que o risco para regimes como o nazista está em quem pega em
armas, e não em quem fala delas.
Por que a vergonha da casta artística e intelectual manchou tanto o nome da França? Porque se esperava mais deles.
Segundo Riding, o trauma francês com relação à covardia daqueles que se
diziam combatentes do pensamento e da arte pode ter sido causada pelo
fato de que, desde a Revolução Francesa de 1789, a França "é uma
população educada para reverenciar ideias... Alguns consideram este um
dos legados da revolução de 1789, a noção inebriante de que uma ideia
traduzida em ação pode produzir uma mudança súbita, radical e
idealizada".
Ledo engano.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário. Colunista da Folha
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