sábado, 26 de maio de 2012

A teoria apocalíptica de Girard

 

Mundialização dos medos e temores é sinal de crises miméticas, aponta Stéphane Vinolo. Teoria do desejo mimético é, “infelizmente”, muito atual

“Toda a teoria de Girard, não o esqueçamos, é uma teoria apocalíptica. Vemos claramente que hoje ocorrem crises miméticas mundiais e que os medos e temores também são mundializados. E, bem entendido, como todas as crises, elas têm seus bodes expiatórios. Mas, como nos permite predizê-lo a teoria de Girard, eles funcionam menos bem porque o cristianismo passou por lá. Agora não podemos mais fazer como se não soubéssemos que nossos bodes expiatórios só nos servem para descarregar a nossa violência”. A afirmação é de Stéphane Vionolo na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. E completa: “ainda há bodes expiatórios que nos servem para gerir nossa violência deslocando-a, mas isso cada vez funciona menos bem”.
Stéphane Vinolo nasceu na França. É conferencista e professor de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Equador. Também leciona no Regent’s College, de Londres. Suas principais publicações são René Girard: Do mimetismo à hominização (que será lançada na Biblioteca René Girard) e Épistémologie du sacré: En vérité, je vous le dis.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o elo que liga o mimetismo e a hominização?
Stéphane Vinolo – Na realidade, se René Girard é um pensador interessante para enfrentar o problema da hominização, é porque ele propõe a esse respeito um modelo provável. A filosofia sempre desejou pensar essa passagem do animal ao homem, e tomou em grande parte como paradigma o problema do contrato e do acordo racional. Neste modelo do contrato, porém, uma dificuldade aparece para todos os filósofos (que, aliás, sempre disseram, fossem Rousseau , Hobbes  ou Spinoza , que esse contrato não era mais que uma ficção). Nós vemos realmente que o contrato supõe resolvido o problema que ele pretende resolver, isto é, que ele dá nas premissas a conclusão que deveria demonstrar. Com efeito, para que símios se assentem em torno de uma mesa e se digam: “Deixemos de lado esta violência interna que arruína nosso grupo e estabeleçamos elos hierárquicos estabilizadores, delegando o poder a um só entre nós”, é preciso que eles já tenham feito esse primeiro passo de renúncia à violência. É isso que num certo sentido viu Karl-Otto Apel  contra Jürgen Habermas . Não podemos pensar que a paz possa provir do diálogo, já que, para entrar em diálogo com alguém, é preciso já ter renunciado ao desejo de eliminá-lo. A ética não pode ser construída pelo logos, já que entrar em relações mediatizadas por ele já é uma postura ética mínima e primária. A ruptura que procura pensar o contrato já é, portanto, dada antecipadamente nesta visão racional das coisas.
Contra isso, o que permite pensar Girard é a maneira segundo a qual podemos pensar a descontinuidade animal/homem no seio de algo que habita um e o outro, isto é, no seio de uma continuidade fundamental. E essa ponte entre o animal e o homem é, bem entendido, o medo. Se nos é muito difícil imaginar por que animais mudariam pelo diálogo, vemos, pelo contrário, em que medida o medo da morte pode ser um terrível motor para os mamíferos. A proposição de Girard é, pois, a de dizer que na gestão da violência mimética é que os grandes símios se tornaram homens, pela aparição do fenômeno do seu deslocamento sobre um dos membros do grupo. Jamais vemos isso entre os animais, já que no reino animal a violência jamais ameaça a própria existência do grupo, pois a violência é aí estruturante, pois estabelece uma hierarquia objetiva dos poderes entre os dominados e os dominantes. Num combate animal, o mais forte vence e os outros, renunciando bater-se até a morte, se submetem. A ordem é, portanto, imediatamente criada pela violência. 

Homicídio fundador
Entre os homens, vemos claramente que a coisa não é assim, porque a força não permite estruturar a comunidade a não ser pela técnica ou pelas alianças, e o homem mais fraco pode sempre matar o mais forte (é o que já havia compreendido Hobbes em seu Leviatã). Ninguém é suficientemente forte para assentar de modo suficiente seu poder físico por muito tempo e é preciso, então, que a violência se resolva por outros caminhos. É aí que intervém seu deslocamento, sua mudança, ou, para empregar o conceito de Derrida , poderíamos até dizer sua “diferença”. Todo mundo desloca seu ódio sobre um só indivíduo à margem da sociedade e sua morte, absorvendo toda a violência interior, resgata o grupo pela criação de um inimigo comum e faz desse homicídio fundador o modelo que será preciso repetir em sacrifícios, toda vez que a violência ou a discórdia ameaçarem o grupo. Nesse sentido, Girard tem razão em dizer que, se os símios, em vez de se atirarem galhos, imediatamente se lançassem pedras, a ordem do reino animal seria totalmente subvertida. 

IHU On-Line – De que modo você analisa a atualidade da teoria do desejo mimético de René Girard?
Stéphane Vinolo – Infelizmente, eu a considero muito importante. Eu digo infelizmente porque toda a teoria de Girard, não esqueçamos disso, é uma teoria apocalíptica. Vemos claramente que, hoje, ocorrem crises miméticas mundiais e que os medos e temores também são mundializados. E, bem entendido, como todas as crises, elas têm seus bodes expiatórios. Mas, como nos permite predizê-lo a teoria de Girard, eles funcionam menos bem porque o cristianismo passou por lá. Agora não podemos mais fazer como se não soubéssemos que nossos bodes expiatórios só nos servem para descarregar a nossa violência. Vejam, por exemplo, as reações das pessoas ante a guerra da França no Afeganistão ou na Líbia: vemos bem que há aí um problema, sentimos bem que isso não resolve e que o discurso oficial não convence muita gente. As guerras verdadeiramente não chegam mais a resgatar um país, a recriar a famosa união sagrada. Toda vez que se espera expulsar a violência para fora do grupo designando culpados, vê-se bem que isso cria um mal-estar. Então, bem entendido, ainda há bodes expiatórios que nos servem para gerir nossa violência deslocando-a, mas isso cada vez funciona menos bem. Hoje vemos claramente que somos condenados a inventar outra coisa. Nesse sentido, portanto, Girard realmente tem razão: o cristianismo conseguiu desconstruir totalmente a lógica do bode expiatório, mostrando-a em toda a sua lógica, posta a nu sobre a Cruz; trazendo-a à plena luz da Revelação.

IHU On-Line – Qual é a particularidade da leitura de Sartre  feita por Girard? Neste sentido, como podemos compreender a crítica da razão mimética? 
Stéphane Vinolo – Em meu artigo sobre Sartre e Girard, procuro mostrar em que medida podemos encontrar intuições similares entre os dois autores e, notadamente, neste imenso texto de Sartre, que é a Crítica da razão dialética (Buenos Aires : Losada, 1979). Para tal fim, propus o conceito de “Razão mimética” a fim de mostrar que o drama do mimetismo é ser ele racional. Há, por vezes, uma objeção que é feita a Girard e é a da origem do mimetismo. Certamente todo mundo compreende o que quer dizer que os homens são miméticos, mas, por que eles o são? A resposta é paradoxal: eles o são porque não o querem ser. Expliquemos. Por toda parte, em nossas sociedades, em torno de nós, vemos que se nos exige sermos originais, sermos diferentes. Se fazes um doutorado, por exemplo, deves fazer algo original, algo novo; mas, igualmente em todos os aspectos da vida cotidiana, se quiser seduzir uma mulher, ela solicita surpreendê-la com coisas novas para evitar que, fazendo a repetição e a cópia, estas serão imediatamente denunciadas como “rotineiras”. Em tudo nos é sem cessar necessário ser único, original, diferente. E, de fato, se perguntares a alguém na rua se ele segue uma moda ou se imita pessoas, ele responderá provavelmente que não, que os outros fazem isso, mas ele não, que ele é verdadeiramente ele mesmo, que não quer cair na moda e não deseja cair no conformismo social. No entanto, vemos bem que tudo é idêntico no mundo, que um imenso movimento de homogeneização nos envolve. Como é possível isso? Como indivíduos que desejam e afirmam querer ser diferentes são impelidos a se imitar? É esta a minha proposição da “razão mimética”. 

Espiral mimética
Tomemos um exemplo que todo mundo pode compreender. Imaginemos que desejo me diferenciar no volante de um carro. Imaginemos que, na rua, desejo que as pessoas me olhem como alguém diferente, como alguém distinto do grupo. Que carro devo, então, comprar? É bem claro que neste caso é uma Ferrari que é preciso comprar, pois é esta que me tornará diferente. É no volante de minha Ferrari que todos os olhares se voltarão para mim e que as pessoas verão que sou diferente dos outros condutores. Ora, por que a Ferrari me torna diferente? Será que é porque sou o único a desejá-la? Minha diferença é uma diversidade em meu desejo que teria um caráter único? Absolutamente não; antes pelo contrário, porque todo mundo deseja uma Ferrari é que seu possuidor é percebido como diferente.
A diferença não consiste, portanto, no fato de se ter desejos originais e únicos, mas, ao contrário, no fato de realizar os desejos mais comuns, mais banais, mais miméticos, por conseguinte. Ora, esta concepção da diferenciação tem enormes consequências em filosofia e em política, já que vemos bem que, segundo esta concepção, para formar um grupo é preciso não fundá-lo diretamente, mas que este só se mantém paradoxalmente porque todo mundo deseja sair dele. É exatamente isso que pensa Sartre naquilo que ele chama a “série” e que nós podemos definir como o “coletivo segundo a fuga”. Lembrem do exemplo de Sartre em A náusea (Buenos Aires: Losada, 1984), mas também na Crítica da razão dialética: quando certo número de indivíduos espera um ônibus, eles propriamente não querem criar um grupo; ao contrário, eles até prefeririam que menos pessoas estivessem lá para estar mais à vontade e estar certos de poder tomar o próximo ônibus. Quando chega o ônibus, cada um se apressa para nele entrar e não ter de esperar o próximo coletivo. Os indivíduos se apressam, portanto, uns contra os outros, mas sem o objetivo de formar uma coletividade; não para estar no grupo, mas para escapar dele. Eles se apressam para serem os primeiros a se afastar da massa e entrar no ônibus. É preciso ultrapassar o primeiro para não ser inserido no grupo que vai permanecer no abrigo de parada do ônibus. Infelizmente, quanto mais pessoas houver, mais devemos empurrar-nos uns contra os outros, pois os lugares serão raros e mais interesse teremos de nos apertar uns contra os outros. A espiral mimética se manifesta quando ninguém gostaria de ser esmagado contra os outros e quando preferiríamos fugir do grupo. É por este mesmo movimento de fuga que ele se reforça. Quanto mais desejo evitar o grupo e mais sou constrangido a jogar-me nele, no fundo mais eu quero me diferenciar dos outros e mais sou constrangido a fazer como eles. É a tragédia da razão mimética.

IHU On-Line – Em que medida o existencialismo sartreano influenciou o pensamento de Girard?
Stéphane Vinolo – Essa questão é, se bem entendida, muito complexa porque penso que Girard provavelmente responderia que ele em nada foi influenciado por Sartre. Mas quem pode crer nisso? Quem pode crer que os intelectuais franceses não tenham sido todos influenciados ao seu modo por Sartre, mesmo que fosse de maneira negativa? Sobre esse ponto parece-me que Girard não é suficientemente girardiano e que ele deveria ter assumido seus modelos, como toda a sua teoria convida a fazê-lo. É preciso imaginar o que pode ter sido o fenômeno Sartre. Eis alguém que durante um século ocupou quase todo o espaço intelectual: filosofia, romances, novelas, teatro, jornalismo, cenários, política. Sartre estava por toda parte e nenhum campo parecia lhe escapar. Como, então, não ser por ele influenciado, mesmo contra a vontade? E me parece que podemos ver essa influência pelo menos sobre dois conceitos fundamentais para os dois autores: o de “eu” e o de “jogo”. O existencialismo sartreano após A náusea, e ainda mais após O ser e o nada (Petrópolis : Vozes, 1997), sempre mostrou que nossa singularidade é habitada pela inautenticidade, pelo não essencial, pelo “o que eu não sou” e que realmente é preciso ser um salafrário, um cafajeste (“salaud”: a palavra é de Sartre) para pensar que nossa realidade humana coincide com qualquer “ser”. O “eu” é, portanto, fundamentalmente frágil e sempre fora de si – mesmo antes de si –, mesmo projetado no mundo e sob o olhar dos outros. Isso, no fundo, não está tão longe das consequências filosóficas da teoria do desejo mimético de Girard.
Mas há mais: vocês se lembram que em Sartre, uma vez que minha realidade humana não coincide com um ser, eu sou condenado a escolher o que eu desejo ser representando-o. Da mesma forma como o garçom de café representa ser garçom de café ou o filósofo representa ser filósofo. Tudo é um jogo, uma representação, e por trás do jogo se esconde outro jogo, e assim ao infinito. Em Sartre, tudo não é senão máscara, mas por trás das máscaras não existe um original, pois há somente máscaras. Isso também é muito próximo das consequências filosóficas da teoria do desejo mimético. No fundo, é ainda a ideia de que não tenho profundidade, de que o sujeito é sempre como uma leve película pousada sobre nós, sempre frágil, portanto, e como que descentrado.

IHU On-Line – A partir da concepção do desejo triangular, pode-se dizer que Girard faz uma aposta quanto à importância do Outro na legitimação de nosso Eu?
Stéphane Vinolo – Sim, você tem plenamente razão. É exatamente isso e é mesmo preciso levar mais longe o que você diz para aproximar Girard não somente de Sartre, mas também cada vez mais de Emmanuel Lévinas , como ele mesmo nos convida a fazê-lo em seu último livro Achever Clausevitz (Rematar Auschwitz. São Paulo: É Realizações, 2011); e talvez mesmo aproximá-lo – acrescentaria eu de minha parte – de Jacques Derrida. Toda a teoria do desejo mimético desemboca na ideia de que o “eu” não é primário, mas que ele só se constrói como reflexo nesse espelho que são os outros. No fundo, trata-se de uma inversão da posição do cogito cartesiano; inicialmente não existe o eu, inicialmente há o outro. Isso quer dizer que minha identidade só pode ser pensada como uma fratura, como uma crise entre mim e os outros. Então, não é necessário dizer que a identidade pode entrar em crise, como hoje o entendemos tão frequentemente, ou pelo menos não é preciso dizê-lo, se com isso queremos dizer que nesta crise uma essência poderia de repente fender-se. É preciso, ao contrário, afirmar com Girard que a identidade é uma crise, que só há identidade no modo da fratura.
É por isso que eu insistira tanto, numa conferência feita na Colômbia, conferência à qual me convidou meu amigo e professor Roberto Solarte, sobre o papel essencial da América do Sul quanto ao pensamento de Girard. Isso porque, no fundo, ninguém melhor do que vocês (sul-americanas e sul-americanos) sabem que a identidade não ressalta aspectos da essência em sua pureza – como o pensava em certo sentido Platão  –, e sim quebra, fende e talvez até mesmo fere. Sobre esse ponto é a vocês que devemos colocar no centro da reflexão e assumir como modelo. E, se eu também falava de Derrida nesse mesmo sentido, é porque há em Derrida um conceito que podemos perfeitamente utilizar nessas questões e é a belíssima expressão de “latino-americanização” do mundo. É a ideia simultaneamente derridiana, mas também girardiana de que, o que pensamos habitualmente como a margem é, de fato, o centro; é a ideia segundo a qual é preciso afirmar que o centro é a margem, ou que, quanto mais avançamos para o centro, mais encontramos aí a margem. Isso é válido para o eu sempre fraturado pelo outro e no outro, mas talvez isso seja verdade de modo mais geral. Nesse sentido, o verdadeiro centro do mundo seja, talvez, a América do Sul, isto é, o que sempre foi pensado como estando à margem. 

IHU On-Line – Qual é a contribuição de Girard para que reflitamos sobre nossa época, marcada pela ascensão do individualismo e a proliferação de seitas religiosas?
Stéphane Vinolo – Não estou certo que possamos afirmar de maneira tão abrupta que somos individualistas, ou, pelo menos, talvez mais do que os outros. Entendo muito bem o que você quer dizer com isso, mas não obstante, hoje, quando uma catástrofe golpeia um recanto do mundo, um tsunami, um tremor de terra ou uma epidemia de fome, milhões de pessoas se mobilizam, o que não era verdade faz bem pouco tempo. Então, certamente somos individualistas, mas creio que tomamos cada vez mais consciência que justamente no cerne de meu indivíduo está o outro. Paradoxalmente, o cuidado pela alteridade jamais foi tão forte em toda a história da humanidade do que em nossas sociedades individualistas. Lembremos que Rousseau, este grande pedagogo (autor do sublime Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1995) e homem das Luzes, abandonou seus filhos, e que Montaigne  – grande moralista, se o é – ignorava até o número de seus filhos mortos ou em amamentação. Hoje, quase ninguém ignora quantos de seus filhos morreram. Podemos por certo ignorar que temos filhos (isso é outro problema). Em todo caso, se sabemos que temos filhos, é raro que não nos preocupemos com o fato de saber se são vivos ou mortos. 

Busca por rituais
Quanto ao ressurgimento de seitas religiosas, creio que isso nos lembra até que ponto a desritualização do mundo e da vida humana tem sido problemas. Dizemos com frequência que os homens têm necessidade de crer em algo, mas não estou certo desta ideia. É dar demasiado crédito à especulação intelectual. Creio que as seitas nos remetem a uma concepção muito mais arcaica da religião, quando ela ainda era muito mais um “fazer” do que um “crer”, uma pura prática social mais do que um corpo de textos e de ideias. No fundo, poucas pessoas estão à busca de teologia, se com isso entendemos o conhecimento teológico enquanto tal. Quem, mesmo entre os cristãos, ainda sabe o que ocorre na transubstanciação ou na kénosis? Quase ninguém, em todo caso quase ninguém entre os fiéis ordinários. O que as pessoas vão procurar nas seitas não são, pois, explicações do mundo, dos sistemas enquanto tais; são antes de tudo rituais. 
O capitalismo e o mundo que você chama de “individualistas” queimam todas as pistas, as hierarquias desmoronam e os hábitos que estabilizam nossas vidas, dando-lhes um ritmo, são desconstruídas. As seitas tomaram este lugar; elas são o lugar do pequeno grupo que compartilha ações, momentos, coisas a fazer e a não fazer. O que nos permite compreender Girard é isto: que finalmente o homem necessita de rituais e que é somente através deles que a união reconfortante pode ser construída. O “fazer” é bem mais forte para unir os homens do que o são as ideias.
Veja as matemáticas: eis aí ideias tão universais que elas deveriam ser a base do consenso e, portanto, da união. Elas deveriam facilmente pôr todo mundo de acordo e, no entanto, nenhum grupo conhecido pôde estabelecer sua sociedade e fundar sobre elas o seu viver-junto. Jamais as matemáticas, tão universais, puderam trazer a paz e a concórdia. Certos grupos, no entanto, tentaram e até deixaram sua marca sobre a bandeira brasileira, mas isso não funcionou. Não é o universal da ideia que faz a comunidade, mas a singularidade do ritual. Para pensar isso, Girard nos é mais do que nunca indispensável.

IHU On-Line – Quais são os grandes bodes expiatórios da pós-modernidade?
Stéphane Vinolo – Paradoxalmente há dois e eles são contraditórios: de um lado está a religião e do outro a racionalidade. Penso, aliás, que é por isso que René Girard é tão rejeitado pelo mundo universitário, porque ele acumula os dois. De um lado ele nos diz que há um saber antropológico enorme na Bíblia e, para dizê-lo de forma provocante, ele nos diz que Jesus sabe mais sobre o homem do que Freud ou Marx; do outro, ele afirma de maneira totalmente coerente que há plena racionalidade na religião. Vocês certamente imaginam que essas duas afirmações são dificilmente aceitas. Neste sentido, Girard não é um filósofo pós-moderno, não porque situa a religião no coração de suas análises, porque poderíamos de fato imaginar retirar seus textos do lado da racionalidade, mas simplesmente porque ele ainda crê não haver um referencial extratextual, em que o texto só vale por si mesmo. No fundo, o que censura os pós-modernos simultaneamente quanto a religião e a racionalidade é sua pretensão à verdade (seja ela a Verdade ou simplesmente verdade). Girard deseja mantê-la, dizendo que os mitos mentem e que os Evangelhos dizem a verdade, revelando a inocência da vítima. Mas essa diferença só se pode estabelecer se conservarmos alguma coisa fora do texto, alguma coisa fora das puras construções intelectuais; digamo-lo, um mínimo de referente realista, e isso é insuportável a um bom número de pós-modernos.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo de que não falamos?
Stéphane Vinolo – Preciso apresentar rapidamente as últimas conclusões paradoxais para as quais nos conduz hoje a obra de Girard, para incitar os leitores a irem vê-lo mais de perto. Sabemos que para Girard é a lógica do bode expiatório que sempre estabilizou as sociedades humanas, deslocando a violência de todos sobre um só. Isso era fundamentalmente terrível e injusto, mas pelo menos funcionava, protegia a comunidade de sua própria violência. Ora, o Cristo deixou mal este mecanismo, revelando sua falsidade sobre a Cruz. Aceitando a Cruz, ele aceitou ser o último bode expiatório, aquele que revela (desmascara) todos e nos impede repeti-los ao infinito. Mas, então, surge um novo problema e é aquele ao qual o mundo deve agora enfrentar. Se o ritual com o qual a humanidade podia gerir sua violência desapareceu, como proceder agora, pois, se o cristianismo suprime a condução à morte do inocente, ele não suprime o desejo nem a violência. Como fazer para administrá-los, quando não temos mais o instrumento para manter o respeito, coisa que nos protegeu durante séculos? Deve-se dizer, então, que a violência já não pode mais ser freada? Poderia ser este o caso. Não é isso, no fundo, o que os cristãos sempre chamaram o Apocalipse, tecendo um elo tão firme entre a revelação de um segredo, o fato de ser erguido um véu que nos ocultava a verdade, isto é, a destruição total pelo desencadeamento da violência que ninguém mais pode frear? Hoje em dia, é preciso refletir muito seriamente sobre isso, pois talvez ainda haja tempo.
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Reportagem Por: Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger
Fonte: IHU on line, 26/05/2012
Imagem da Internet - René Girard

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