Mundialização dos medos e temores é sinal de crises miméticas, aponta Stéphane Vinolo. Teoria do desejo mimético é, “infelizmente”, muito atual
“Toda a teoria de Girard, não o esqueçamos, é uma teoria
apocalíptica. Vemos claramente que hoje ocorrem crises miméticas
mundiais e que os medos e temores também são mundializados. E, bem
entendido, como todas as crises, elas têm seus bodes expiatórios. Mas,
como nos permite predizê-lo a teoria de Girard, eles funcionam menos bem
porque o cristianismo passou por lá. Agora não podemos mais fazer como
se não soubéssemos que nossos bodes expiatórios só nos servem para
descarregar a nossa violência”. A afirmação é de Stéphane Vionolo na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.
E completa: “ainda há bodes expiatórios que nos servem para gerir nossa
violência deslocando-a, mas isso cada vez funciona menos bem”.
Stéphane Vinolo nasceu na França. É conferencista e
professor de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Equador.
Também leciona no Regent’s College, de Londres. Suas principais
publicações são René Girard: Do mimetismo à hominização (que será
lançada na Biblioteca René Girard) e Épistémologie du sacré: En vérité,
je vous le dis.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o elo que liga o mimetismo e a hominização?
Stéphane Vinolo – Na realidade, se René Girard é um
pensador interessante para enfrentar o problema da hominização, é porque
ele propõe a esse respeito um modelo provável. A filosofia sempre
desejou pensar essa passagem do animal ao homem, e tomou em grande parte
como paradigma o problema do contrato e do acordo racional. Neste
modelo do contrato, porém, uma dificuldade aparece para todos os
filósofos (que, aliás, sempre disseram, fossem Rousseau , Hobbes ou
Spinoza , que esse contrato não era mais que uma ficção). Nós vemos
realmente que o contrato supõe resolvido o problema que ele pretende
resolver, isto é, que ele dá nas premissas a conclusão que deveria
demonstrar. Com efeito, para que símios se assentem em torno de uma mesa
e se digam: “Deixemos de lado esta violência interna que arruína nosso
grupo e estabeleçamos elos hierárquicos estabilizadores, delegando o
poder a um só entre nós”, é preciso que eles já tenham feito esse
primeiro passo de renúncia à violência. É isso que num certo sentido viu
Karl-Otto Apel contra Jürgen Habermas . Não podemos pensar que a paz
possa provir do diálogo, já que, para entrar em diálogo com alguém, é
preciso já ter renunciado ao desejo de eliminá-lo. A ética não pode ser
construída pelo logos, já que entrar em relações mediatizadas por ele já
é uma postura ética mínima e primária. A ruptura que procura pensar o
contrato já é, portanto, dada antecipadamente nesta visão racional das
coisas.
Contra isso, o que permite pensar Girard é a maneira segundo a qual
podemos pensar a descontinuidade animal/homem no seio de algo que habita
um e o outro, isto é, no seio de uma continuidade fundamental. E essa
ponte entre o animal e o homem é, bem entendido, o medo. Se nos é muito
difícil imaginar por que animais mudariam pelo diálogo, vemos, pelo
contrário, em que medida o medo da morte pode ser um terrível motor para
os mamíferos. A proposição de Girard é, pois, a de dizer que na gestão
da violência mimética é que os grandes símios se tornaram homens, pela
aparição do fenômeno do seu deslocamento sobre um dos membros do grupo.
Jamais vemos isso entre os animais, já que no reino animal a violência
jamais ameaça a própria existência do grupo, pois a violência é aí
estruturante, pois estabelece uma hierarquia objetiva dos poderes entre
os dominados e os dominantes. Num combate animal, o mais forte vence e
os outros, renunciando bater-se até a morte, se submetem. A ordem é,
portanto, imediatamente criada pela violência.
Homicídio fundador
Entre os homens, vemos claramente que a coisa não é assim, porque a
força não permite estruturar a comunidade a não ser pela técnica ou
pelas alianças, e o homem mais fraco pode sempre matar o mais forte (é o
que já havia compreendido Hobbes em seu Leviatã). Ninguém é
suficientemente forte para assentar de modo suficiente seu poder físico
por muito tempo e é preciso, então, que a violência se resolva por
outros caminhos. É aí que intervém seu deslocamento, sua mudança, ou,
para empregar o conceito de Derrida , poderíamos até dizer sua
“diferença”. Todo mundo desloca seu ódio sobre um só indivíduo à margem
da sociedade e sua morte, absorvendo toda a violência interior, resgata o
grupo pela criação de um inimigo comum e faz desse homicídio fundador o
modelo que será preciso repetir em sacrifícios, toda vez que a
violência ou a discórdia ameaçarem o grupo. Nesse sentido, Girard tem
razão em dizer que, se os símios, em vez de se atirarem galhos,
imediatamente se lançassem pedras, a ordem do reino animal seria
totalmente subvertida.
IHU On-Line – De que modo você analisa a atualidade da teoria do desejo mimético de René Girard?
Stéphane Vinolo – Infelizmente, eu a considero muito
importante. Eu digo infelizmente porque toda a teoria de Girard, não
esqueçamos disso, é uma teoria apocalíptica. Vemos claramente que, hoje,
ocorrem crises miméticas mundiais e que os medos e temores também são
mundializados. E, bem entendido, como todas as crises, elas têm seus
bodes expiatórios. Mas, como nos permite predizê-lo a teoria de Girard,
eles funcionam menos bem porque o cristianismo passou por lá. Agora não
podemos mais fazer como se não soubéssemos que nossos bodes expiatórios
só nos servem para descarregar a nossa violência. Vejam, por exemplo, as
reações das pessoas ante a guerra da França no Afeganistão ou na Líbia:
vemos bem que há aí um problema, sentimos bem que isso não resolve e
que o discurso oficial não convence muita gente. As guerras
verdadeiramente não chegam mais a resgatar um país, a recriar a famosa
união sagrada. Toda vez que se espera expulsar a violência para fora do
grupo designando culpados, vê-se bem que isso cria um mal-estar. Então,
bem entendido, ainda há bodes expiatórios que nos servem para gerir
nossa violência deslocando-a, mas isso cada vez funciona menos bem. Hoje
vemos claramente que somos condenados a inventar outra coisa. Nesse
sentido, portanto, Girard realmente tem razão: o cristianismo conseguiu
desconstruir totalmente a lógica do bode expiatório, mostrando-a em toda
a sua lógica, posta a nu sobre a Cruz; trazendo-a à plena luz da
Revelação.
IHU On-Line – Qual é a particularidade da leitura de Sartre
feita por Girard? Neste sentido, como podemos compreender a crítica da
razão mimética?
Stéphane Vinolo – Em meu artigo sobre Sartre e
Girard, procuro mostrar em que medida podemos encontrar intuições
similares entre os dois autores e, notadamente, neste imenso texto de
Sartre, que é a Crítica da razão dialética (Buenos Aires : Losada,
1979). Para tal fim, propus o conceito de “Razão mimética” a fim de
mostrar que o drama do mimetismo é ser ele racional. Há, por vezes, uma
objeção que é feita a Girard e é a da origem do mimetismo. Certamente
todo mundo compreende o que quer dizer que os homens são miméticos, mas,
por que eles o são? A resposta é paradoxal: eles o são porque não o
querem ser. Expliquemos. Por toda parte, em nossas sociedades, em torno
de nós, vemos que se nos exige sermos originais, sermos diferentes. Se
fazes um doutorado, por exemplo, deves fazer algo original, algo novo;
mas, igualmente em todos os aspectos da vida cotidiana, se quiser
seduzir uma mulher, ela solicita surpreendê-la com coisas novas para
evitar que, fazendo a repetição e a cópia, estas serão imediatamente
denunciadas como “rotineiras”. Em tudo nos é sem cessar necessário ser
único, original, diferente. E, de fato, se perguntares a alguém na rua
se ele segue uma moda ou se imita pessoas, ele responderá provavelmente
que não, que os outros fazem isso, mas ele não, que ele é
verdadeiramente ele mesmo, que não quer cair na moda e não deseja cair
no conformismo social. No entanto, vemos bem que tudo é idêntico no
mundo, que um imenso movimento de homogeneização nos envolve. Como é
possível isso? Como indivíduos que desejam e afirmam querer ser
diferentes são impelidos a se imitar? É esta a minha proposição da
“razão mimética”.
Espiral mimética
Tomemos um exemplo que todo mundo pode compreender. Imaginemos que
desejo me diferenciar no volante de um carro. Imaginemos que, na rua,
desejo que as pessoas me olhem como alguém diferente, como alguém
distinto do grupo. Que carro devo, então, comprar? É bem claro que neste
caso é uma Ferrari que é preciso comprar, pois é esta que me tornará
diferente. É no volante de minha Ferrari que todos os olhares se
voltarão para mim e que as pessoas verão que sou diferente dos outros
condutores. Ora, por que a Ferrari me torna diferente? Será que é porque
sou o único a desejá-la? Minha diferença é uma diversidade em meu
desejo que teria um caráter único? Absolutamente não; antes pelo
contrário, porque todo mundo deseja uma Ferrari é que seu possuidor é
percebido como diferente.
A diferença não consiste, portanto, no fato de se ter desejos
originais e únicos, mas, ao contrário, no fato de realizar os desejos
mais comuns, mais banais, mais miméticos, por conseguinte. Ora, esta
concepção da diferenciação tem enormes consequências em filosofia e em
política, já que vemos bem que, segundo esta concepção, para formar um
grupo é preciso não fundá-lo diretamente, mas que este só se mantém
paradoxalmente porque todo mundo deseja sair dele. É exatamente isso que
pensa Sartre naquilo que ele chama a “série” e que nós podemos definir
como o “coletivo segundo a fuga”. Lembrem do exemplo de Sartre em A
náusea (Buenos Aires: Losada, 1984), mas também na Crítica da razão
dialética: quando certo número de indivíduos espera um ônibus, eles
propriamente não querem criar um grupo; ao contrário, eles até
prefeririam que menos pessoas estivessem lá para estar mais à vontade e
estar certos de poder tomar o próximo ônibus. Quando chega o ônibus,
cada um se apressa para nele entrar e não ter de esperar o próximo
coletivo. Os indivíduos se apressam, portanto, uns contra os outros, mas
sem o objetivo de formar uma coletividade; não para estar no grupo, mas
para escapar dele. Eles se apressam para serem os primeiros a se
afastar da massa e entrar no ônibus. É preciso ultrapassar o primeiro
para não ser inserido no grupo que vai permanecer no abrigo de parada do
ônibus. Infelizmente, quanto mais pessoas houver, mais devemos
empurrar-nos uns contra os outros, pois os lugares serão raros e mais
interesse teremos de nos apertar uns contra os outros. A espiral
mimética se manifesta quando ninguém gostaria de ser esmagado contra os
outros e quando preferiríamos fugir do grupo. É por este mesmo movimento
de fuga que ele se reforça. Quanto mais desejo evitar o grupo e mais
sou constrangido a jogar-me nele, no fundo mais eu quero me diferenciar
dos outros e mais sou constrangido a fazer como eles. É a tragédia da
razão mimética.
IHU On-Line – Em que medida o existencialismo sartreano influenciou o pensamento de Girard?
Stéphane Vinolo – Essa questão é, se bem entendida,
muito complexa porque penso que Girard provavelmente responderia que ele
em nada foi influenciado por Sartre. Mas quem pode crer nisso? Quem
pode crer que os intelectuais franceses não tenham sido todos
influenciados ao seu modo por Sartre, mesmo que fosse de maneira
negativa? Sobre esse ponto parece-me que Girard não é suficientemente
girardiano e que ele deveria ter assumido seus modelos, como toda a sua
teoria convida a fazê-lo. É preciso imaginar o que pode ter sido o
fenômeno Sartre. Eis alguém que durante um século ocupou quase todo o
espaço intelectual: filosofia, romances, novelas, teatro, jornalismo,
cenários, política. Sartre estava por toda parte e nenhum campo parecia
lhe escapar. Como, então, não ser por ele influenciado, mesmo contra a
vontade? E me parece que podemos ver essa influência pelo menos sobre
dois conceitos fundamentais para os dois autores: o de “eu” e o de
“jogo”. O existencialismo sartreano após A náusea, e ainda mais após O
ser e o nada (Petrópolis : Vozes, 1997), sempre mostrou que nossa
singularidade é habitada pela inautenticidade, pelo não essencial, pelo
“o que eu não sou” e que realmente é preciso ser um salafrário, um
cafajeste (“salaud”: a palavra é de Sartre) para pensar que nossa
realidade humana coincide com qualquer “ser”. O “eu” é, portanto,
fundamentalmente frágil e sempre fora de si – mesmo antes de si –, mesmo
projetado no mundo e sob o olhar dos outros. Isso, no fundo, não está
tão longe das consequências filosóficas da teoria do desejo mimético de
Girard.
Mas há mais: vocês se lembram que em Sartre, uma vez que minha
realidade humana não coincide com um ser, eu sou condenado a escolher o
que eu desejo ser representando-o. Da mesma forma como o garçom de café
representa ser garçom de café ou o filósofo representa ser filósofo.
Tudo é um jogo, uma representação, e por trás do jogo se esconde outro
jogo, e assim ao infinito. Em Sartre, tudo não é senão máscara, mas por
trás das máscaras não existe um original, pois há somente máscaras. Isso
também é muito próximo das consequências filosóficas da teoria do
desejo mimético. No fundo, é ainda a ideia de que não tenho
profundidade, de que o sujeito é sempre como uma leve película pousada
sobre nós, sempre frágil, portanto, e como que descentrado.
IHU On-Line – A partir da concepção do desejo triangular,
pode-se dizer que Girard faz uma aposta quanto à importância do Outro na
legitimação de nosso Eu?
Stéphane Vinolo – Sim, você tem plenamente razão. É
exatamente isso e é mesmo preciso levar mais longe o que você diz para
aproximar Girard não somente de Sartre, mas também cada vez mais de
Emmanuel Lévinas , como ele mesmo nos convida a fazê-lo em seu último
livro Achever Clausevitz (Rematar Auschwitz. São Paulo: É Realizações,
2011); e talvez mesmo aproximá-lo – acrescentaria eu de minha parte – de
Jacques Derrida. Toda a teoria do desejo mimético desemboca na ideia de
que o “eu” não é primário, mas que ele só se constrói como reflexo
nesse espelho que são os outros. No fundo, trata-se de uma inversão da
posição do cogito cartesiano; inicialmente não existe o eu, inicialmente
há o outro. Isso quer dizer que minha identidade só pode ser pensada
como uma fratura, como uma crise entre mim e os outros. Então, não é
necessário dizer que a identidade pode entrar em crise, como hoje o
entendemos tão frequentemente, ou pelo menos não é preciso dizê-lo, se
com isso queremos dizer que nesta crise uma essência poderia de repente
fender-se. É preciso, ao contrário, afirmar com Girard que a identidade é
uma crise, que só há identidade no modo da fratura.
É por isso que eu insistira tanto, numa conferência feita na
Colômbia, conferência à qual me convidou meu amigo e professor Roberto
Solarte, sobre o papel essencial da América do Sul quanto ao pensamento
de Girard. Isso porque, no fundo, ninguém melhor do que vocês
(sul-americanas e sul-americanos) sabem que a identidade não ressalta
aspectos da essência em sua pureza – como o pensava em certo sentido
Platão –, e sim quebra, fende e talvez até mesmo fere. Sobre esse ponto
é a vocês que devemos colocar no centro da reflexão e assumir como
modelo. E, se eu também falava de Derrida nesse mesmo sentido, é porque
há em Derrida um conceito que podemos perfeitamente utilizar nessas
questões e é a belíssima expressão de “latino-americanização” do mundo. É
a ideia simultaneamente derridiana, mas também girardiana de que, o que
pensamos habitualmente como a margem é, de fato, o centro; é a ideia
segundo a qual é preciso afirmar que o centro é a margem, ou que, quanto
mais avançamos para o centro, mais encontramos aí a margem. Isso é
válido para o eu sempre fraturado pelo outro e no outro, mas talvez isso
seja verdade de modo mais geral. Nesse sentido, o verdadeiro centro do
mundo seja, talvez, a América do Sul, isto é, o que sempre foi pensado
como estando à margem.
IHU On-Line – Qual é a contribuição de Girard para que
reflitamos sobre nossa época, marcada pela ascensão do individualismo e a
proliferação de seitas religiosas?
Stéphane Vinolo – Não estou certo que possamos
afirmar de maneira tão abrupta que somos individualistas, ou, pelo
menos, talvez mais do que os outros. Entendo muito bem o que você quer
dizer com isso, mas não obstante, hoje, quando uma catástrofe golpeia um
recanto do mundo, um tsunami, um tremor de terra ou uma epidemia de
fome, milhões de pessoas se mobilizam, o que não era verdade faz bem
pouco tempo. Então, certamente somos individualistas, mas creio que
tomamos cada vez mais consciência que justamente no cerne de meu
indivíduo está o outro. Paradoxalmente, o cuidado pela alteridade jamais
foi tão forte em toda a história da humanidade do que em nossas
sociedades individualistas. Lembremos que Rousseau, este grande pedagogo
(autor do sublime Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes,
1995) e homem das Luzes, abandonou seus filhos, e que Montaigne –
grande moralista, se o é – ignorava até o número de seus filhos mortos
ou em amamentação. Hoje, quase ninguém ignora quantos de seus filhos
morreram. Podemos por certo ignorar que temos filhos (isso é outro
problema). Em todo caso, se sabemos que temos filhos, é raro que não nos
preocupemos com o fato de saber se são vivos ou mortos.
Busca por rituais
Quanto ao ressurgimento de seitas religiosas, creio que isso nos
lembra até que ponto a desritualização do mundo e da vida humana tem
sido problemas. Dizemos com frequência que os homens têm necessidade de
crer em algo, mas não estou certo desta ideia. É dar demasiado crédito à
especulação intelectual. Creio que as seitas nos remetem a uma
concepção muito mais arcaica da religião, quando ela ainda era muito
mais um “fazer” do que um “crer”, uma pura prática social mais do que um
corpo de textos e de ideias. No fundo, poucas pessoas estão à busca de
teologia, se com isso entendemos o conhecimento teológico enquanto tal.
Quem, mesmo entre os cristãos, ainda sabe o que ocorre na
transubstanciação ou na kénosis? Quase ninguém, em todo caso quase
ninguém entre os fiéis ordinários. O que as pessoas vão procurar nas
seitas não são, pois, explicações do mundo, dos sistemas enquanto tais;
são antes de tudo rituais.
O capitalismo e o mundo que você chama de “individualistas” queimam
todas as pistas, as hierarquias desmoronam e os hábitos que estabilizam
nossas vidas, dando-lhes um ritmo, são desconstruídas. As seitas tomaram
este lugar; elas são o lugar do pequeno grupo que compartilha ações,
momentos, coisas a fazer e a não fazer. O que nos permite compreender
Girard é isto: que finalmente o homem necessita de rituais e que é
somente através deles que a união reconfortante pode ser construída. O
“fazer” é bem mais forte para unir os homens do que o são as ideias.
Veja as matemáticas: eis aí ideias tão universais que elas deveriam
ser a base do consenso e, portanto, da união. Elas deveriam facilmente
pôr todo mundo de acordo e, no entanto, nenhum grupo conhecido pôde
estabelecer sua sociedade e fundar sobre elas o seu viver-junto. Jamais
as matemáticas, tão universais, puderam trazer a paz e a concórdia.
Certos grupos, no entanto, tentaram e até deixaram sua marca sobre a
bandeira brasileira, mas isso não funcionou. Não é o universal da ideia
que faz a comunidade, mas a singularidade do ritual. Para pensar isso,
Girard nos é mais do que nunca indispensável.
IHU On-Line – Quais são os grandes bodes expiatórios da pós-modernidade?
Stéphane Vinolo – Paradoxalmente há dois e eles são
contraditórios: de um lado está a religião e do outro a racionalidade.
Penso, aliás, que é por isso que René Girard é tão rejeitado pelo mundo
universitário, porque ele acumula os dois. De um lado ele nos diz que há
um saber antropológico enorme na Bíblia e, para dizê-lo de forma
provocante, ele nos diz que Jesus sabe mais sobre o homem do que Freud
ou Marx; do outro, ele afirma de maneira totalmente coerente que há
plena racionalidade na religião. Vocês certamente imaginam que essas
duas afirmações são dificilmente aceitas. Neste sentido, Girard não é um
filósofo pós-moderno, não porque situa a religião no coração de suas
análises, porque poderíamos de fato imaginar retirar seus textos do lado
da racionalidade, mas simplesmente porque ele ainda crê não haver um
referencial extratextual, em que o texto só vale por si mesmo. No fundo,
o que censura os pós-modernos simultaneamente quanto a religião e a
racionalidade é sua pretensão à verdade (seja ela a Verdade ou
simplesmente verdade). Girard deseja mantê-la, dizendo que os mitos
mentem e que os Evangelhos dizem a verdade, revelando a inocência da
vítima. Mas essa diferença só se pode estabelecer se conservarmos alguma
coisa fora do texto, alguma coisa fora das puras construções
intelectuais; digamo-lo, um mínimo de referente realista, e isso é
insuportável a um bom número de pós-modernos.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo de que não falamos?
Stéphane Vinolo – Preciso apresentar rapidamente as
últimas conclusões paradoxais para as quais nos conduz hoje a obra de
Girard, para incitar os leitores a irem vê-lo mais de perto. Sabemos que
para Girard é a lógica do bode expiatório que sempre estabilizou as
sociedades humanas, deslocando a violência de todos sobre um só. Isso
era fundamentalmente terrível e injusto, mas pelo menos funcionava,
protegia a comunidade de sua própria violência. Ora, o Cristo deixou mal
este mecanismo, revelando sua falsidade sobre a Cruz. Aceitando a Cruz,
ele aceitou ser o último bode expiatório, aquele que revela
(desmascara) todos e nos impede repeti-los ao infinito. Mas, então,
surge um novo problema e é aquele ao qual o mundo deve agora enfrentar.
Se o ritual com o qual a humanidade podia gerir sua violência
desapareceu, como proceder agora, pois, se o cristianismo suprime a
condução à morte do inocente, ele não suprime o desejo nem a violência.
Como fazer para administrá-los, quando não temos mais o instrumento para
manter o respeito, coisa que nos protegeu durante séculos? Deve-se
dizer, então, que a violência já não pode mais ser freada? Poderia ser
este o caso. Não é isso, no fundo, o que os cristãos sempre chamaram o
Apocalipse, tecendo um elo tão firme entre a revelação de um segredo, o
fato de ser erguido um véu que nos ocultava a verdade, isto é, a
destruição total pelo desencadeamento da violência que ninguém mais pode
frear? Hoje em dia, é preciso refletir muito seriamente sobre isso,
pois talvez ainda haja tempo.
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Reportagem Por: Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger
Fonte: IHU on line, 26/05/2012
Imagem da Internet - René Girard
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