Marcelo Coelho*
O morto se torna apenas um objeto, uma coisa, indiferente à mosca que entra em sua boca
Em 1946, Alberto Giacometti morava numa edícula, ao fundo de um jardim maltratado, e viu seu vizinho morrer.
"Vi-o, largado em sua cama, a pele amarelo marfim, recolhido em si mesmo
e já estranhamente distante, e tornei a vê-lo pouco depois, às três da
manhã, morto, os membros de uma magreza esquelética, projetados,
esparramados, abandonados longe do corpo, uma imensa barriga inchada, a
cabeça jogada para trás, a boca aberta."
O texto, publicado no catálogo da atual exposição do escultor, na Pinacoteca, continua com um toque surrealista e macabro.
"Eu olhava para aquela cabeça que se tornara um objeto, uma pequena
caixa, mensurável, insignificante. Naquele momento, uma mosca
aproximou-se do buraco negro de sua boca e vagarosamente desapareceu
dentro dela."
Eis uma imagem da morte ao mesmo tempo simples e impressionante. O morto
se torna apenas um objeto, uma coisa, indiferente à mosca que entra em
sua boca. Mas essa boca, sendo um "buraco negro", é ela própria um
símbolo da morte. O morto e a morte se tornam uma coisa só. A
experiência de Giacometti já tinha muito de aterrorizante em si mesma,
mas as coisas ainda iriam piorar na vivência do escultor.
O morto, a quem ele chama de T., passaria a estar presente por toda
parte. "Por toda parte, menos no lamentável cadáver que estava sobre a
cama", diz Giacometti. "T. não tinha mais limites."
Toalhas, cadeiras, pessoas, tudo tinha sido invadido pela morte. "Todos
os vivos estavam mortos, essa visão repetiu-se muitas vezes."
Um garçom, por exemplo: "Imóvel, debruçado sobre mim, com a boca aberta,
sem nenhuma relação com o movimento anterior, com o momento seguinte, a
boca aberta, os olhos paralisados numa imobilidade absoluta".
A sensação é fantasmagórica, mas também, de outro ponto de vista,
corresponde a uma coisa banalíssima. Essa imobilidade, sem relação com o
passado nem com o futuro, se manifesta em qualquer fotografia. Quantas
bocas abertas e olhos fechados não aparecem na mais inocente foto
caseira?
Para qualquer artista plástico, sem dúvida, a fotografia tem algo de
ameaçador. Os desenhos de Giacometti, de que há belos exemplos na
Pinacoteca, parecem uma resposta particular a essa ameaça.
Quando ele retrata um rosto, não se contenta em captar a fisionomia da
pessoa em poucos traços. As linhas se repetem, umas por cima das outras,
formando uma imagem "tremida", como se vários negativos fotográficos
criassem volumes superpostos. Na arte cubista, a ideia era mostrar um
objeto visto de vários ângulos ao mesmo tempo. Nos desenhos de
Giacometti, parece haver o inverso disso. Um objeto é visto do mesmo
ângulo, mas a partir de vários instantes sucessivos.
Cada pequeno movimento do modelo, cada inclinação de cabeça ou piscar de
olhos, teria assim de ser integrado à imagem do momento anterior. Tudo
treme sobre a imobilidade do papel: morte e vida.
Morte e vida se misturam de outra forma nas esculturas do autor. Cada
ser humano, esquálido como um pavio, está com os pés firmemente presos
no pedestal de bronze.
Toda aquela imobilidade não se confunde com solidez, e mal tem volume
próprio: quer reduzir-se ao estado de perfil, de recorte, de rabisco. Na
época em que viu o cadáver de T., Giacometti começava a experimentar em
sua escultura a sensação do isolamento. Ao fazer a escultura de uma
cabeça, Giacometti diz que via "o vazio em torno dela".
Nas estátuas mais típicas de Giacometti, esse vazio ganha uma dimensão
no tempo. Não se trata apenas de um espaço vago, sem nada.
É um vazio que parece crescer e mover-se no tempo, corroendo a figura humana, reduzindo-a a poucos fiapos de carne e vértebra.
No octógono da Pinacoteca, vemos o "Homem que Anda": a estátua de Giacometti lembra outra, com o mesmo tema, feita por Rodin.
O andarilho de Rodin dava seus primeiros passos, fortes e dolorosos,
após a expulsão do paraíso. O de Giacometti se inclina num ângulo
difícil, já próximo do final de seu caminho.
Não inspira desprezo nem compaixão, contudo. Ele se move com cautela,
carcomido e frágil, mas seu rosto ainda olha para a frente. Não nos viu.
Não devolve o nosso olhar. Mesmo assim, acho que devemos saudá-lo com
respeito. Ele anda, mas não passará tão cedo.
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* Colunista da Folha
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