João Pereira Coutinho *
Espero que Obama continue a "evoluir" no assunto e nos brinde com a defesa apaixonada da poligamia
TENHO PENSADO ultimamente nas vantagens da poligamia. O amor exige fidelidade e exclusividade?
Admito que sim. E também admito que existe uma certa nobreza na velha
ideia platônica de que somos seres incompletos, em busca da outra metade
que nos falta. Os românticos não inventaram nada. Limitaram-se a ler "O
Banquete".
Mas, por outro lado, não é justo, nem fácil, nem humanamente possível
exigir de uma mulher que ela seja tudo e o seu contrário. Boa amante.
Ótima confidente. Excelente dona de casa. Mãe aprumada. Parceira
intelectual distinta. Enfermeira nas horas funestas.
A mulher perfeita não existe. Ou, melhor dizendo, ela existe, sim. Só que é composta por várias mulheres distintas.
Anos atrás, em viagem pelo Marrocos, visitei um amigo que me levou a
conhecer as suas duas famílias: uma em Casablanca, a outra em Agadir.
A primeira mulher era a encarnação perfeita da sensualidade magrebina
-olhos negros, cabelo idem, lábios generosos e carnudos. Cinco minutos
bastaram para perceber a função daquela senhora na vida daquele homem
feliz.
A segunda mulher era menos exuberante (digamos assim); mas fazia um
cuscuz como só voltei a provar em viagem recente ao Nordeste do Brasil.
Tão diferentes, mas tão complementares.
Fiquei convencido sobre as vantagens do arranjo. E antes que a leitora
me acuse de machismo obscurantista, esclareço já: quem fala em poligamia
fala em poliandria.
Nenhum homem pode ser tudo para uma só mulher. Por isso esperava um
pouco mais das declarações de Barack Obama sobre o casamento gay -mais
do que apenas "hélas" sobre o casamento gay.
O presidente americano, em gesto inédito para ano eleitoral, disse na
televisão que "evoluiu" sobre o assunto. É agora favorável à união
matrimonial de lésbicas e homossexuais, embora deixe para os Estados a
decisão final sobre o assunto.
O raciocínio de Obama é conhecido: quem somos nós, a maioria
heterossexual e opressora, para negar a felicidade a duas pessoas do
mesmo sexo que querem se casar?
Eis, em resumo, a essência do pensamento progressista. Um pensamento que os filósofos Sherif
Girgis, Robert P. George e Ryan T. Anderson analisaram no melhor ensaio que conheço sobre o tema: "What is Marriage?".
O casamento, para o pensamento progressista, é uma mera construção
social, sem uma história ou um propósito distintos. O casamento deve
apenas basear-se no afeto; e basta que exista afeto entre dois seres
humanos adultos para que o Estado reconheça o vínculo matrimonial,
distribuindo direitos e deveres pelos cônjuges.
O problema, escrevem os autores do ensaio, é que essa definição
sentimental de casamento não pode se limitar a lésbicas e homossexuais.
Se o casamento pode ser tudo o que quisermos, não há nenhum motivo para
recusar o privilégio a um homem que queira se unir a várias mulheres. Ou
a uma mulher que queira se unir a vários homens.
O próprio Obama deveria saber disso: só nos Estados Unidos, é possível
que existam mais de 500 mil relações poligâmicas, informava há tempos a
revista "Newsweek", citada no ensaio. O número de homossexuais que
desejam casar-se é superior a esse número?
Talvez. Mas falamos de um princípio, não de uma questão numérica: se 500
mil relações poligâmicas vivem à margem da lei, não devemos também
respeitar a felicidade -no fundo, o "afeto" dessa vasta legião de
apaixonados?
Por mim, ficaria encantado. Até porque as relações poligâmicas não vivem
apenas à margem da lei. Elas são punidas pela lei. Eu invejo o meu
amigo marroquino. Mas, se pretendesse imitar o seu modo de vida,
casando-me com duas donzelas da minha preferência, a Justiça não
perdoaria o crime.
Moral da história? O mundo não acaba com os direitos dos homossexuais. E
não é possível defender o casamento gay sem defender também todas as
outras formas de união conjugal. Abrir uma exceção é abrir todas as
exceções. Negar isso é perpetuar a intolerância.
Espero que o presidente Obama continue a "evoluir" sobre o assunto e nos
brinde em breve com a defesa apaixonada que a poligamia merece.
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* Colunista da Folha
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