Alexandre Pilati*
Nova coletânea de textos de Roberto Schwarz repõe em jogo a
necessidade de pensar o Brasil a partir da politização da análise
estética
Martinha versus Lucrécia (Cia das Letras, 2012), último livro do
crítico literário Roberto Schwarz, chegou às livrarias mês passado e
abasteceu os cadernos culturais de alguns de nossos periódicos com um
saudável bafejo de polêmica, embora esta não tenha nem duração e nem
aprofundamento garantidos, pois, nesses tempos pra lá de pós-modernos,
de pauperização encefálica da grande imprensa, polemizar a sério é algo
desconectado da fruição irrestrita do “curti/não-curti”, cada vez mais
arraigada nos “melhores talentos” intelectuais brasileiros. De qualquer
forma, a polêmica se justificou basicamente por dois motivos: 1) pela
análise cerrada do ambíguo livro Verdade Tropical de Caetano
Veloso e 2) pela, segundo alguns, injustificada insistência do crítico
em interpretar a experiência histórica brasileira a partir de suas
experiências culturais, especialmente aquelas provindas do campo da
literatura, atualmente muito combalida como atividade estética de
escavação do real. Se desde o título o livro de Schwarz carrega a marca
do acirramento do debate, em chave dialética, não haveríamos de esperar
outra coisa. Talvez esteja aí um pouco do seu mérito.
Para além do inquietar do Narciso pop tropical (Caetano deu
entrevistas e aproveitou o espaço na mídia como sói acontecer desde a
Tropicália) e dos narcisos da intelligentsia conservadora tropicaleira
(que usaram a imprensa para esbravejar contra o vitupério que é um
crítico literário ousar pensar sobre o país de um ângulo diferente do
dos proprietários), o livro carrega o desafio de manter em dia e em boa
forma o olhar dialético e prenhe de negatividade de Schwarz, após uma
década ou duas que o tornaram quase um clássico da crítica literária
acadêmica no Brasil. Diga-se, aliás, que nada poderia ser mais contrário
à sua disposição antimetódica do que tornar-se jargão universitário.
Esse é um dos motivos fortes para saudarmos a obra; motivo este que, é
claro, o polemismo atacanhado dos últimos dias não captou nem de longe.
Martinha versus Lucrécia dá ao leitor o velho crítico adorniano, em uma
prosa amadurecida nos melhores exercícios da reflexão dialética. A
sintaxe está elegante, irônica e alimentada impiedosamente pelas
contradições, como se fosse uma chave que se adequa aos problemas novos
que se impõem. A escolha dos textos contempla tanto a crítica literária,
como entrevistas e “textos de intervenção” (prefácios, saudações,
arguições). O painel é vário, mas a sua força está na unidade de
disposição, que poderíamos resumir recorrendo a um meio de parágrafo do
autor, em que se trata da tomada de partido histórica na análise da
forma estética, a qual “seria um princípio ordenador individual, que
tanto regula um universo imaginário como um aspecto da realidade
exterior”.
No que se refere à crítica especificamente literária, o volume nos
reconcilia com velhas “ideias fixas do crítico”, por meio da leitura de
Machado de Assis em tratamento adensado noutro plano, pois que armado
para o debate literário cosmopolita, como nos ensaios “Leituras em
competição” e “A viravolta machadiana”. É basilar nesses dois textos a
disposição para debater internacionalmente sobre a validade da obra
machadiana, tentando fazer ver, em que medida radicalmente política, “os
rearranjos em matéria e forma operados por Machado faziam que um
universo ficcional modesto e de segunda mão subisse à complexidade da
arte contemporânea mais avançada”. Com esses dois textos, Schwarz revisa
Machado para o leitor de fora, escarafunchando um pouco os motivos
falsos e frágeis de sua bela e recente aceitação no exterior. Mas
revisando-o para o leitor estrangeiro, o crítico acaba por revisá-lo
também para o leitor brasileiro, às vezes estranho ao Brasil, de tão
emaranhado que está na mais nova moda crítica exógena.
É, todavia, o conjunto de textos que se segue à entrevista “Sobre
Adorno” que esconde o detonador da polêmica que cercou saudação do
livro. São três textos sobre literatura brasileira contemporânea, entre
os quais o violento ensaio inédito sobre Verdade tropical. Por si só, o
texto sobre o narrador volúvel de Caetano vale o ingresso e se sustenta
sozinho. Contudo, bem pensado o seu lugar na economia do livro, ele
funciona bem melhor quando se leem os dois ensaios que lhe fazem fila.
Seria um despropósito pensar que os ensaios sobre O elefante, de Chico
Alvim (“Um minimalismo enorme”), e sobre Leite derramado, de Chico
Buarque (“Cetim laranja sobre fundo escuro”), estão colocados em
sequencia como complementos críticos da análise sobre Verdade tropical?
Creio que não, se pensarmos que nesses dois Chicos, Alvim e Buarque,
paradigmas de um realismo vigente e furioso na literatura brasileira
contemporânea, encontra-se uma correção em acorde negativo da mimese do
contemporâneo diagnosticada por Schwarz na forma narrativa de Caetano.
Se, no narrador deste, a posição de privilégio de classe atua em favor
de uma postura narrativa que mescla diretrizes contrárias, em prejuízo
da pesquisa estética das contradições da experiência (ou da verdade)
tropical, naqueles, segundo o crítico, esta mesma posição se remonta,
para ouvir e rearranjar, em ritmo derrisório e desencantado, as
contradições brasileiras. Tudo engendrado a partir de uma perspectiva
literária capaz de fender o sorriso ignóbil da farsa proprietária,
tornando-o irremediavelmente escandaloso no país miserável do século
XXI. Diria Chico Alvim: “Quer ver/ escuta”.
Com isso, estão ligadas “as duas pontas do novelo”: Machado e as
letras do Brasil contemporâneo. A análise de Schwarz acerca do fenômeno
machadiano baseia-se fortemente na capacidade que a viravolta formal dos
romances de segunda-fase apresenta de dramatizar as contradições da
perspectiva proprietária da história brasileira (e todas as suas
implicações que tanto conhecemos intimamente). Não é difícil aproximar
as leituras de Verdade tropical, O elefante e Leite derramado pois elas
são faces da tendência do crítico a analisar a comédia de classes no
Brasil a partir da equação literária da voz narrativa ou lírica dos
protagonistas. Em Caetano, temos o bom e velho narrador conciliador,
desejoso de ativar as potências e riquezas que jazem no Brasil atrasado,
desde que isso não implique em democratização e socialização da
cultura, pois seu ponto de vista dúbio caminha sempre a depender do
sucesso de instauração de mecanismos intensificadores da indústria do
espetáculo em terra periférica. De defensor da liberdade individual
destinado a contar uma verdade (tropical?) a porta-voz refinado do
neoliberalismo (é bom lembrar que o livro é de 1997) e da regressão
artística, apresentada sempre em chave cínica de avanço e emancipação da
arte tornada artigo pop: eis uma possível interpretação do caminho do
narrador de Verdade tropical na perspectiva de Schwarz. O trocadilho é
infame, mas irresistível – a verdade tropical é no fundo a verdade
do-capital. Embora seja cáustico, não deixa de ser revelador da
experiência brasileira pós-golpe. Assim se dá também no caso de Alvim e
Buarque. Entretanto, as formas literárias aqui estão fazendo pouco do
refinamento intelectual da nossa elite e reagindo à miséria periférica
(aparatada com pseudomodernização), tornando problemáticas as próprias
possibilidades de representação da história universal sob os mecanismos
miméticos que essa mesma história legitimou e consolidou ao longo da
formação brasileira. Sem verdade disponível, pois que ela está
apropriada pelos impropérios da classe dominante, Buarque e Alvim buscam
um mínimo, que no caso é enorme: como representar o irremediável da
modernização à brasileira.
Monta-se assim o poliedro do duro problema da leitura do país a
partir da literatura e vice-versa, com o selo da crítica dialética,
comprometida com a materialidade das formas e da história, malgrado o
pouco apreço de algumas “estrelas-alfa” (Bandeira em “Nova poética”) da
nossa crítica. No ritmo da arenga criada por sua vinda a lume, a verdade
dos proprietários literatizada vis-à-vis a análise da cultura
brasileira interessada no conflito de classes, Martinha versus Lucrécia
deve ser acolhido como ponto a favor desta; e com júbilo, por reativar,
em diversos campos, algumas pulsões obscuras latentes no tropicalíssimo
“legado de nossa miséria”.
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*Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília, autor, entre outros, de A nação drummondiana (7Letras, 2009).
Fonte: http://www.outraspalavras.net/2012/05/07/verdade-versus-analise/
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