Jairo Marques*
Todos os dias, "peritos" barram pessoas usando suas próprias restrições na maneira de ver a vida
Jamais imaginei que conseguisse pular naquele abismo. Tinha um medão,
uma certa aflição do desconhecido. Era parado em uma barreira que
botaram em mim de que seria impossível. Mas tomei um balde cheio de
coragem e fui. Na real, fui empurrado rumo ao nada em uma espécie de
cadeirinha acolchoada. A partir daquele momento, em um hotel-fazenda
escondido no interior de São Paulo, em Socorro -nome providencial-,
passei ao grupo dos "corajosos" e "capacitados" que saltam de tirolesa,
no atrevimento de pensar que estão beliscando o manto divino.
Mesmo sendo eu um rapazinho todo quebrado do esqueleto, com auxílio de
adaptação, com apoio e com disposição minha e dos outros, senti que
"dava" para me aventurar -e deu!
Julgar a capacidade do outro de poder ou não poder fazer algo tinha de
exigir faculdade de uns cinco anos para graduação. Seria focada em
direitos humanos, em psicologia, em pitadas de física, de anatomia e de
muita, muita, disposição para ouvir e entender que aquilo que um não
consegue realizar pode ser feito tranquilamente, ou de forma adaptada e
ajustada, por outro.
Já vi gente que dirige com os pés. Quero dizer, apenas com os pés, pois
tinha as mãos e os braços ausentes; já presenciei mães sem nenhuma visão
cuidarem dos filhos com olhos de leoa; já vi veterinário tocando vacas
para o curral a bordo de uma cadeira de rodas motorizada; já li que um
dos cientistas mais bambambãs do mundo não fala, não se mexe nem nada,
apenas pensa de maneira extraordinária.
Por mais que se difunda que "não há limites" para a capacidade humana, a
realidade é um tapa na cara desse conceito. Todos os dias, "peritos"
barram pessoas em concursos, em testes de habilidades ou em vagas para o
mercado de trabalho usando, em primeiro lugar, suas próprias restrições
na maneira de ver a vida.
Entendo que sempre é preciso levantar o estandarte da segurança, do bom
funcionamento da engrenagem do dia a dia, do direito de ver algo bem
feito sendo produzido.
Mas o custo disso não pode ser o preconceito, a avaliação ligeira e o desprezo de habilidades que fogem ao comum.
Empurrar para os escombros da inutilidade gente que tem potencial é
privar uma nação inteira de ter mais massa de pessoas úteis para a
garantia do progresso, para a promoção do desenvolvimento. Apenas em
casos muito isolados, realmente, é possível se configurar uma
incapacidade. Quais, por exemplo? Não me arrisco a elencar.
Histórias de superação costumam motivar e inspirar as pessoas a tomarem
novos rumos, a readequar seus próprios dramas, que viram caixas de
fósforos diante dos tonéis de concreto que alguns carregam na lomba.
Mas apenas chorar e achar "lindo" o que os outros passam, sem dar
crédito e oportunidades a seus potenciais, nada muda de fato e novos
capítulos carregados de dramas vão ser escritos por aí.
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* Jornalista. É chefe de reportagem da Agência Folha, coordenando a
produção da equipe de correspondentes nacionais do jornal e mais um
grupo de repórteres na sede, em São Paulo, e colunista do caderno
“Cotidiano”, onde escreve quinzenalmente, às terças-feiras.
Nasceu em Três Lagoas (MS). É cadeirante desde a infância.
Nasceu em Três Lagoas (MS). É cadeirante desde a infância.
Fonte: Folha on line, 03/07/2012
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