Gianni Vattimo*
Nós somos – historicamente –
aquela humanidade que
também descobriu, se assim for,
o bóson de Higgs; mas esta descoberta
é um momento da nossa história.
Pode até ser verdade que o evento – só assim podemos chamá-lo – que rompeu a quietude uniforme do "todo" antes do nascimento das coisas teve um peso decisivo na produção daquela diferenciação de partículas da qual começou, pelo que sabemos, o curso da evolução, da qual, por bem ou por mal, nós somos por enquanto o ponto de chegada. Mas falar do bóson de Higgs como se fosse Deus é realmente um pouco demais.
Não porque se trate de uma blasfêmia ("Deus bóson" seguramente é uma expressão que até hoje ainda não tinha vindo à mente de nenhum ateu blasfemo, embora douto e ávido). No máximo, expressa uma atitude mental que não tem mais nenhuma escuta junto aos teólogos, filósofos, homens de fé. De fato, reflete a convicção de que Deus pode, de algum modo, ser descoberto neste ou naquele aspecto da natureza. Mas desde que Gagarin, enviado ao cosmos com a nave espacial, obviamente ateia, da URSS foi capaz de explorar o céu sem encontrar Deus, essa expectativa "positivista" perdeu todo o sentido, se é que alguma vez tivera algum.
As cinco vias clássicas de São Tomás – aquelas que "demonstravam" a existência de Deus a partir do mundo, do qual Deus seria a causa primeira ou o motor último – eram, sim, muito mais sofisticadas do que o ingênuo ateísmo de Kruschev, mas também elas pouco resistiram à afirmação progressiva do convencionalismo científico moderno.
Agora atribuímos apenas ao homem primitivo – aquele para o qual o trovão ou o relâmpago são obra de algum sujeito supremo – a ideia de que o mundo material deve ter sido produzido por uma vontade original considerada onipotente. O próprio São Tomás observava que, do ponto de vista de Aristóteles, teria sido muito mais racional pensar o mundo como eterno. Senão, como poderia uma vontade perfeita e subtraída do devir, isto é, imutável, em um certo ponto, decidir criá-lo?
O relato da criação é um conteúdo da fé, no qual se crê (quem nele crê) como em um mito fundador da nossa existência individual e social que aceitamos porque sentimos que, sem ele, o que pensamos e fazemos perderia todo o sentido. Mas quase ninguém mais tenta falar sobre isso em termos de ciência física.
Se também devemos pensar que o bóson de Higgs não tem nada a ver com Deus, é verdade, porém, que descobertas como a de hoje têm um poderoso reflexo sobre a nossa vida, sobre a visão do mundo e, portanto, sobre a nossa religiosidade. É uma espécie de efeito que só podemos chamar de "neutralizante" com relação à nossa história vivida.
Como comparar os poucos milênios da história da espécie humana com os intermiváveis horizontes das eras geológicas, da formação do cosmos físico e, justamente, com os minutos seguintes ao Big Bang. A ciência moderna, além disso, se formou também e acima de tudo criticando o relato do Gênesis, acima de tudo contestando o geocentrismo bíblico (lembre-se o Galileu de Brecht, que inspira em muitos a ideia de que tudo já é permitido).
E isso não só pela má vontade das autoridades religiosas de defender uma cosmologia "revelada" que vinha se dissolvendo progressivamente; mas também e sobretudo porque, efetivamente, não era e não é fácil pensar na nossa história humana em termos de história da salvação, ou mesmo apenas, em termos laicos, como história da civilização, e ao mesmo tempo na nossa posição no cosmos, um bater de asas de borboleta destinado a durar um átimo e a ser engolido pelo silêncio cósmico.
A obstinação com que a Igreja sempre tentou contrastar a cosmologia moderna e o seu espírito iluminista reflete a preocupação, não tão irracional, de conservar um sentido à história humana – e, portanto, à ética, à política, à sociedade – contra o sentido niilista, leopardiano, suscitado pelo sentimento do infinito cósmico. Não há uma saída consoladora e pacificadora para esse dilema. Nós somos – historicamente – aquela humanidade que também descobriu, se assim for, o bóson de Higgs; mas esta descoberta é um momento da nossa história. Não é uma constatação resolutiva, mas é com essa condição dupla, equilibrada entre história e natureza, que devemos acertar as contas.
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* A análise é do filósofo italiano e deputado europeu Gianni Vattimo, em artigo publicado no jornal La Stampa, 05-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line.07/06/2012
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